Segunda Leitura

Segunda Leitura: O juiz que não mora na comarca é mal visto

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  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

10 de agosto de 2008, 0h00

Vladimir Passos de Freitas 2 - por SpaccaSpacca" data-GUID="vladimir_passos_freitas1.jpeg">O juiz tem, entre as suas obrigações, de morar na comarca. É regra constitucional (CF, art. 93, VII), legal (Loman, art. 35, V) e regulamentar (CNJ, Resolução 37/2007), sendo que esta autoriza, em casos especiais, que o tribunal permita ao juiz residir em outra localidade. O que se quer com esta imposição é que o magistrado se integre na comunidade, inteire-se dos seus problemas e, ao julgar os conflitos que lhe são submetidos, o faça com conhecimento e segurança.

No passado era bem diferente. Os primeiros desembargadores vieram de Portugal para atuar na Relação da Bahia, primeiro tribunal em solo brasileiro (1609), “estavam proibidos de freqüentar casas de jogo e ir à casa de outras pessoas, podendo apenas visitar uns aos outros, e aos presidentes dos ditos Tribunais. Também não podiam casar — o que foi explicitamente proibido aos desembargadores do Brasil — nem tomar afilhados dentro de sua jurisdição” (Memória da Justiça Brasileira, TJ-BA 1993, p. 58).

Superados os extremos dos tempos de antanho, chegamos ao início deste complexo Século XXI. O impressionante aumento populacional, a velocidade das comunicações interligando regiões distantes, a migração campo/cidade, a conurbação ligando municípios vizinhos, o ingresso da mulher na magistratura, o ir e vir diário como forma de vida, tudo isto originou situações antes sequer imaginadas.

O morar na comarca, regra geral no passado recente, foi diminuindo. Rodovias asfaltadas reduziram tempo e distâncias. A idade média dos juízes (mesmo com a exigência dos 3 anos) diminuiu. O casamento foi adiado para depois dos 30. A gestação postergada ou evitada. Ademais, surgiram enormes cidades na periferia das capitais, de baixo nível social, onde, obviamente, magistrados não querem (até por razões de segurança) residir. Outrossim, as cidades de maior porte não justificam mais o invocado relacionamento juiz/comunidade, simplesmente porque nelas o juiz é um anônimo e, se é assim, tanto faz que ele resida aqui ou ali.

Quais as conseqüências de tais situações no exercício da jurisdição? Ou, reflexamente, na vida de um jurisdicionado? Muitas. Antes de mais nada, o juiz não residente é visto com pouca simpatia. Depois, o morar longe cria hábitos. O tempo e o cansaço levam a ir na terça-feira e voltar na quinta-feira. No dia em que se vai, chega-se cansado. No que se volta, o estado é de ansiedade. E não é só isto. Nos dias em que não está na Vara, os processos param. Por exemplo, um pedido de liberdade provisória tem seu exame retardado por dias. Nos fins-de-semana, não há plantão. Mais ainda, o juiz que falta não tem condições de cobrar a presença dos funcionários. A tolerância se instala, porque a ambos interessa.

E os tribunais, como regulamentam a questão? Regra geral, sem estudos científicos (médicos, por exemplo). Quantas horas alguém pode viajar diariamente e exercer as funções de juiz? É possível dirigir 70 ou 90 km por dia e trabalhar? Ou a partir de que nível de estresse a irritabilidade aumentará e a produção diminuirá? E a presença diária, é cumprida? Ou é tolerada a ausência um ou mais dias por semana? Como reage a comunidade jurídica local? Criticando à boca pequena ou expondo o fato à corregedoria, através da OAB local, com franqueza e lealdade? E como reage o corregedor? Atribuindo-se a condição de pessoa preocupada com o interesse público e investigando? Ou buscando a tentadora posição de ser popular junto à primeira instância?

Conexo a este tema situa-se o do tempo de permanência do juiz na vara. Em alguns casos o juiz assume e logo em seguida, um ou dois meses depois, é removido ou promovido para outra vara. Já “entra de costas” para usar uma expressão popular. Deixa na curta passagem um rastro de processos parados ou tumultuados. Neste caso a exigência rígida de um prazo mínimo de permanência, que nunca deve ser inferior a um ano, é a única solução para evitar o caos. Sem “jeitinho” ou flexibilização.

Tais aspectos, essenciais para uma Justiça eficiente e humana, não são objeto de estudos. Mas influem diretamente na vida de milhares de pessoas que buscam a Justiça e nela depositam suas esperanças. Quando o problema é suscitado, as coisas se resolvem mais pelo exame dos problemas do juiz do que pela necessidade da sociedade local. Esta, regra geral pouco organizada, sofre calada os efeitos. Por vezes, nem mesmo se dá conta.

E assim as coisas ficam mais no critério de cada um. Existem aqueles que fazem da magistratura uma opção de vida, a ela dedicando todas suas forças e fazendo o bem à sociedade e a si próprios. Mas há também os que se supõem merecedores de todos os direitos e de nenhuma obrigação, criados no sistema de educação do “tudo pode”. E existem, ainda, os que são encarregados de examinar a conduta de todos, ou seja, corregedores, membros de Conselhos da Magistratura, Órgão Especial, etc. e que, por comodidade ou covardia, abstêm-se de qualquer medida que se revele impopular. Os primeiros merecem, de todos, o reconhecimento, inclusive por escrito. Os segundos, a repulsa, sem meio termo. E os terceiros, um pedido: por favor, aposentem-se.

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