Direito real

Entrevista: Amaro Moraes e Silva Neto, advogado

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9 de agosto de 2008, 0h00

Amaro Moraes e Silva Neto - por SpaccaSpacca" data-GUID="amaro_moraes_silva_neto.jpeg">A idéia de que é difícil combater crimes cometidos pela internet ou enquadrar as ações da rede mundial por falta de lei é estória para boi dormir. O que falta é preparo dos agentes da Polícia e da Justiça e boa vontade de interpretar a legislação que já existe para aplicar às infrações cometidas com a ajuda de computadores.

A opinião é do advogado Amaro Moraes e Silva Neto, um dos primeiros a estudar e escrever sobre a aplicação do Direto às novas tecnologias. Para o advogado, a lei precisa só de pequenos ajustes para fazer frente à internet. “São as pessoas que cometem os crimes e fazem as irregularidades. Só deve existir ciberdireito quando as máquinas fizerem isso sozinhas”, afirma.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Amaro Moraes defendeu que as regras que valem para o mundo físico valem para o digital. Aliás, trata-se do mesmo mundo. “Para existir ciberdireito é preciso de uma ciberconstituição, que autorizaria a abertura de cibercódigos para cibercoisas.”

Formado em Direito pela Universidade Mackenzie, em São Paulo, Amaro Moraes é advogado e autor de diversos livros sobre o Direito e a tecnologia. No livro E-mails Indesejados à Luz do Direito Brasileiro, lançado há mais de cinco anos, já defendia parte das idéias sobre as quais discorre na entrevista.

Para ele, é perfeitamente possível punir o envio de spam sem precisar mudar uma alínea sequer da legislação. Basta usar o Código de Defesa do Consumidor. “O spammer é o vendedor que liga a cobrar”, brinca. Defende que a internet não criou um novo bem jurídico a ser tutelado. “Quando surgiu o telefone, não surgiu o Direito Telefônico. Quando surgiu a TV, não surgiu o Direito Televisivo.”

Leia a entrevista

ConJur — Há tipificação legal para enquadrar o spam como crime ou, pelo menos, irregularidade?

Amaro Moraes e Silva Neto — Diretamente, não. Mas é possível punir o spammer por vias transversas. De acordo com o Código de Defesa do Consumidor, você só pode fazer parte de um banco de dados se requereu ou assentiu com sua inclusão nele. Para enviar a mensagem, o spammer precisa de um banco de dados. No caso do spam, o banco de dados foi formado ilegalmente. Seguindo a teoria da árvore envenenada — se a arvore está envenenada, os frutos que ela dá também estão — existe uma ilicitude, no mínimo, civil na formação do banco de dados. Logo, o spam é ilegal.

ConJur — Mas para mandar um spam é preciso de um banco de dados?

Amaro Moraes — Necessariamente, porque o banco de dados é justamente o que permite a profusão do spam.

ConJur — Não existe um spam aleatório?

Amaro Moraes — Não. Tem que ser necessariamente organizado. A pessoa que envia o spam pode conseguir os endereços aleatoriamente, mas terá que montar um banco de dados para funcionar. O spam segue um critério lógico: endereço, arroba, destino, ponto, etc.. Provavelmente, irão saber meu nome, profissão, traçar um perfil. A obtenção dos dados pode ser aleatória, mas a confecção é necessariamente una. O spammer é o vendedor que liga a cobrar.

ConJur — Então, essa conversa de que a internet não tem regras é balela.

Amaro Moraes — Sim. No fundo, essa estória toda de Direito Digital é balela. Quem entende muito bem disso é minha manicure.

ConJur — Não é preciso ter regras específicas?

Amaro Moraes — As situações são as mesmas, apenas acontecem em outro meio. Eu posso ofender uma pessoa ao vivo ou posso ofender pela internet. Há os que defendem punição maior quando acontece pela internet. Na verdade, tem que punir menos. Que situação é mais perigosa: um roubo a banco pela internet ou na agência com metralhadoras empunhadas? O dano do roubo pela internet é menor. Na questão de crimes contra a honra é diferente porque a divulgação se alastra de forma muito mais ampla. Ainda assim é preciso observar o princípio da proporcionalidade da pena. Não pode um crime ter o dobro de penalidade porque aconteceu na internet.

ConJur — Mas há ações típicas de internet ou das novas tecnologias que não estejam tipificadas?

Amaro Moraes — Existem algumas coisas novas. Por exemplo, a manutenção dos logs [registros de navegação] é uma situação que não havia sido prevista. Mas isso é mais uma questão administrativa para se colocar dentro dos parâmetros dos próprios provedores. Talvez com legislação para determinar: “têm de ser guardado durante tanto tempo, em tais circunstâncias”. Mas isso não deixa de ser perigoso, porque eu não sei o que um camarada reunindo as informações durante tanto tempo pode fazer.


ConJur — O grande problema da internet é sua grande vantagem, que é sua natureza livre. Como estabelecer regras para o uso?

Amaro Moraes — É como nosso mundo. Somos educados para sermos livres, mas temos de obedecer a certas regras. A internet nada mais é do que uma sombra do nosso mundo. O que acontece aqui é projetado na internet. Não tem diferença. As regras que valem aqui valem lá. Não existem ciberdireitos. Para existir ciberdireito é preciso de uma ciberconstituição, que autorizaria a abertura de cibercódigos para cibercoisas. Quando surgiu o telégrafo, não surgiu o Direito Telegráfico. Quando surgiu o telefone, não surgiu o Direito Telefônico. Quando surgiu a TV, não surgiu o Direito Televisivo. Aí surgiu a internet e disseram: “quebraram-se as bases da civilização ocidental e nós temos que repensar tudo de novo”. Isso não existe.

ConJur — Quando surgiu a imprensa, com Gutenberg, quiseram controlar a produção de papel nas fábricas.

Amaro Moraes — A internet faz parte do nosso mundo. Logo, o que acontece no nosso mundo acontece também na internet. Eu posso roubar pela internet e até matar, porque posso acessar um banco de dados de determinado hospital e mudar a medicação do paciente.

ConJur — O problema é identificar os autores dos crimes na internet. Isso é muito mais difícil, não?

Amaro Moraes — Essa é outra questão. A lei existe, mas aí nós entramos no desafio de aplicá-la. A Polícia, os juízes e os advogados devem se aparelhar melhor para isso. Na internet, o usuário deixa muitos rastros. O ponto crucial é que se chega à máquina, não ao homem. Então, quem cometeu aquele crime? Pode-se descobrir o perfil da pessoa. As mensagens denotam determinada linguagem, traçam determinado tipo psicológico e aí é possível alcançar a pessoa.

ConJur — Há desconhecimento?

Amaro Moraes — Sim. É questão de hermenêutica. Ninguém está interessado em interpretar determinada lei e, por isso, fazem uma lei nova, que nem sempre é benéfica. O assédio sexual era punido no Brasil sob a égide de outro dispositivo, que era quase como o temor reverencial. Logo, poderia ser aplicada em ambiente. Então, veio a lei específica do assédio sexual, que acrescentou um artigo ao Código Penal. Esse artigo determinou que o “assédio sexual se dá no ambiente de trabalho”. Ou seja, a primeira grande burrice é limitar a lei, que era abrangente. Antes, o assédio sexual podia se dar em qualquer situação. Hoje, de acordo com a tipificação penal, se dá em ambiente de trabalho. Também aumentou a pena de um ano de prisão para dois anos, o que não mudou nada na prática porque ainda ficou na esfera de crime de pequeno potencial ofensivo.

ConJur — E só aumentar pena não adianta.

Amaro Moraes — No final do século XVI, a Inglaterra vivia em uma miséria terrível. Por isso, começaram a aumentar os casos de furto e roubo. O que fez o rei, sabiamente? Passou a punir o roubo com pena de morte. O que aconteceu? Aumentou o número de homicídios. Antes, o ladrão deixava a vítima viva. Agora, se a vítima o reconhecer, ele será morto. Então, mata a vítima. Não é o tamanho da pena que vai dar resultado, é a aplicação dela.

ConJur — Uma das dificuldades no combate aos crimes que ocorrem na internet é a questão da territorialidade. Aplica-se a lei de qual lugar?

Amaro Moraes — De onde o crime ocorreu. Se há um caso na internet que eu acesso de qualquer lugar do mundo, qualquer lugar do mundo é apto para julgar o caso.

ConJur — Mas isso depende muito mais da boa vontade dos agentes da internet do que da lei. O Brasil depende muito mais da boa vontade da Google, que está lá nos Estados Unidos, para poder exigir dela, não?

Amaro Moraes — Não, porque a Google tem representantes no Brasil que respondem pelos atos da empresa.

ConJur — E se não tivesse representante?

Amaro Moraes — Aí não há muito que fazer. Podemos contratar um advogado no país onde ocorreu o fato para tomar medidas. Se o site estiver nos Estados Unidos, por exemplo, nós não temos convênio para o cumprimento de rogatórias. Então, se alguém de lá me faz um mal, eu posso entrar com medida judicial para tirar esse site ou parte dele do ar aqui no Brasil, mesmo que não haja representantes aqui. Os problemas em torno do princípio da territorialidade podem ser contornados com o mínimo de boa vontade na análise da lei e na sua aplicação.

ConJur — O problema da territorialidade se confunde com a execução da sentença?

Amaro Moraes Silva Neto — Isso é outra coisa. Depende de qual é o objetivo. Se for o de ressarcimento econômico, será problemático. Se for o de fazer cessar determinada atividade, aí está dentro da nossa legislação e pode ser perfeitamente atingido. Veja como isso pode se dar em outro meio, que não na internet. Uma empresa situada em outro país pode fazer qualquer picaretagem por meio de anúncio em jornal.


ConJur — De quem é a responsabilidade pelo que está na internet? É de quem coloca na internet ou do provedor?

Amaro Moraes — A responsabilidade normalmente é do agente. Mas se olharmos a Lei de Imprensa, o responsável é o jornal. Se eu for entrar com uma ação contra alguém que copiou um artigo meu, eu vou processar a empresa que publicou o artigo.

ConJur — Então, quem é o agente na internet?

Amaro Moraes — Depende da situação. O site de notícias é responsável pelo que publica. Mas, se uma pessoa física faz uma ofensa por meio do site e ele toma providências para fazer cessar aquele malefício, ele pode ter a sua responsabilidade excluída. Nada obsta que o site processe aquela pessoa que cometeu o ato ilícito nas normas comuns do Direito.

ConJur — No caso de comentários de leitores, de quem é a responsabilidade?

Amaro Moraes — É do site. Há decisões recentes nesse sentido. O site que processe essa pessoa depois.

ConJur — Não falta lei para regulamentar especificamente questões como essas?

Amaro Moraes — Falta interpretação e boa vontade. Há um monte de vaidosos que querem inventar um novo campo do Direito: “Ah, eu sou especialista nisso”. Especialista, para mim, é o João de Barro. É limitado. Sabe fazer aquilo e ponto. O advogado tem que ser um ser eclético, ele tem que ter uma visão holográfica do que passa a sua volta porque uma questão do Direito Civil interfere em outra de Direito Penal e em outra questão. Como disse Millôr Fernandes, o máximo da especialidade é saber absolutamente tudo sobre nada.

ConJur — O senhor acompanha o projeto de lei que tipifica os crimes pela internet?

Amaro Moraes — Parei de acompanhar. Já fiz análises onde mostrei que tudo o que o projeto prevê já está legislado.

ConJur — Onde se enquadra o envio de vírus?

Amaro Moraes — O vírus é uma questão de dano. Segundo o Direito Penal, não se pode ter um raciocínio analógico, mas se pode ter um raciocínio extensivo. Muitos advogados preferem fazer de conta que não existe raciocínio extensivo e defendem uma lei específica para a questão de disseminação de vírus. Mas, veja, quando eu digo que não deve ser feito nada, não me tome como absolutista. Eu entendo que é preciso fazer ajustes, mas não precisamos de um diploma para chamados os crimes cibernéticos — que não tem nenhum sentido para serem chamados assim porque são crimes cometidos por pessoas físicas, já que não existe nenhuma maquininha sozinha fazendo isso.

ConJur — Foram criados códigos maliciosos para que seu computador dispare sozinho os vírus.

Amaro Moraes — Mas aí é que está o ponto. Uma pessoa determinou o que vai ser feito ou o que não vai ser feito. Logo, não é cibercrime.

ConJur — O Brasil é mesmo líder mundial em envio de spam?

Amaro Moraes — Sim, mas é indiretamente. Usam os computadores daqui para fazer a distribuição das mensagens, mas as ordens não partem daqui. As máquinas estão sendo usadas indevidamente.

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