Dignidade do réu

Decisão do STF que restringe uso de algemas, vale para todos

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7 de agosto de 2008, 19h30

O uso de algemas viola o princípio constitucional da dignidade humana e por isso elas só devem ser empregadas em casos excepcionais. O posicionamento foi firmado pelo Supremo Tribunal Federal, nesta quinta-feira (7/9). Para os ministros, a pessoa só pode ser algemadas quando houver risco de fuga ou quando ela colocar em risco a segurança dela e de outras pessoas.

O Supremo decidiu ainda editar uma Súmula Vinculante sobre a questão, o que obriga os juizes de todas as instâncias bem como a administração pública a seguir o seu entendimento. Cópias da decisão serão enviadas ao ministro da Justiça, Tarso Genro, e aos 26 secretários de Segurança Pública.

A decisão foi tomada no Habeas Corpus que pediu a anulação do Juri de um reú que permaneceu algemado durante todo o julgamento. Antonio Sérgio da Silva, o réu, condenado pelo Tribunal do Júri de Laranjal Paulista (SP) a 13 anos de prisão por homicídio qualificado. Para o defesa, o uso das algemas durante o julgamento, além de representar constrangimento ilegal, influenciou a decisão dos jurados.

O ministro Marco Aurélio, relator do caso, afirmou que manter um réu algemado durante o julgamento contraria a Constituição. Isso porque é preciso considerar o princípio da não-culpabilidade. “É certo que foi submetida ao veredicto dos jurados pessoa acusada da prática de crime doloso contra a vida, mas que merecia o tratamento devido aos humanos, aos que vivem em um Estado Democrático de Direito”, anotou o ministro.

Para fundamentar o seu entendimento, Marco Aurélio cita diversas garantias constitucionais das pessoas presas como o respeito à integridade física e moral e à informação de seus direitos. Segundo o ministro, esses preceitos repousam no necessário tratamento humanitário do cidadão.

“Manter o acusado em audiência, com algema, sem que demonstrada, ante práticas anteriores, a periculosidade, significa colocar a defesa, antecipadamente, em patamar inferior, não bastasse a situação de todo degradante”, reforçou Marco Aurélio. O ministro lembrou que o julgamento de júri é feito por pessoas leigas, que ao verem o réu algemado podem imaginar que ele é perigoso.

Marco Aurélio cita decisão do próprio Supremo no Habeas Corpus 71.195, relatado pelo ministro aposentado Francisco Rezek em 1995, no qual a 2ª Turma entendeu que as algemas só podem ser usadas em julgamento quando não for possível outros meios. No ano passado, a 1ª Turma tomou decisão no mesmo sentido.

O ministro aproveitou seu voto para fazer um histórico da questão. Em 1821, o príncipe regente Dom Pedro I decretou que “a prisão deve só servir para guardar as pessoas e nunca para as adoecer e flagelar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões e outros quaisquer ferros”. As reformas processuais ao longo da história mantiveram posição parecida.

Segundo Marco Aurélio, até o Direito Penal Militar entende que o uso da algema é excepcional. O artigo 234 do Código de Processo Penal Militar afirma que “o emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor”.

Se as pessoas nessa situação não podem ser submetidas às algemas, “o que se dirá no tocante àquele que, vindo sob a custódia do Estado há algum tempo, já se encontra fragilizado e comparece ao tribunal para ser julgado?”, questiona o ministro.

Para ele, a falta de uma lei, que prevê a retirada de algemas durante o julgamento, não conduz à possibilidade de manter o réu algemado.

“É hora de o Supremo emitir entendimento sobre a matéria, inibindo uma série de abusos notados na atual quadra, tornando clara, até mesmo, a concretude da lei reguladora do instituto do abuso de autoridade, considerado o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, para a qual os olhos em geral têm permanecido cerrados”, anota ministro.


Leia a íntegra do voto

HABEAS CORPUS 91.952-9 SÃO PAULO

RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO

PACIENTE(S) : ANTONIO SÉRGIO DA SILVA

IMPETRANTE(S) : KATIA ZACHARIAS SEBASTIÃO E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Adoto, como relatório, as informações prestadas pela Assessoria:

Consta do processo que o paciente foi denunciado como incurso nos artigos 121, § 2º, incisos II — motivo fútil -, III — meio cruel — e IV — mediante recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Também foi recebida a denúncia oferecida pelo Ministério Público, em que lhe imputada infração ao artigo 10 da Lei nº 9.437/97, em virtude de possuir, portar e manter arma de fogo, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. O réu foi pronunciado (folha 155 a 163 do apenso). Desprovido o recurso em sentido estrito interposto contra a decisão (folha 214 a 219 do apenso), foi submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, sendo condenado à pena de treze anos e seis meses de reclusão, por infração ao artigo 121,§ 2º, incisos II, III e IV, do Código Penal e à pena de um ano de detenção e dez dias-multa, como incurso no artigo 10 da Lei nº 9.437/97, observado o disposto no artigo 69 do Código Penal.

A defesa interpôs recurso de apelação, argüindo preliminares de nulidade do julgamento: a) por erro de votação do terceiro quesito; b) em virtude do fato de o réu ter permanecido algemado durante a assentada em que realizado o júri; c) porque indeferidos, pelo Juiz togado, quesitos pertinentes à absorção do delito de porte de arma pelo de homicídio. No mérito, pleiteou o reconhecimento da legítima defesa, da inexigibilidade de conduta diversa, do estado de violenta emoção após injusta provocação da vítima. Insurgiu-se, também, contra as qualificadoras acolhidas no julgamento e quanto ao regime de cumprimento da pena integralmente fechado.

O Tribunal de Justiça proveu parcialmente o apelo, tão-só para fixar o regime semi-aberto para o cumprimento da pena atinente ao porte de arma. Interpostos embargos de declaração, foram estes desprovidos. O recurso especial protocolado pela defesa não foi admitido e o agravo de instrumento formalizado contra esta decisão aguarda a remessa ao Superior Tribunal de Justiça.

Nesse interregno, no Superior Tribunal de Justiça, mediante habeas corpus, os impetrantes alegaram nulidade do julgamento: a) por erro de votação do terceiro quesito; b) em virtude do fato de o réu ter permanecido algemado durante a assentada em que realizado o Júri; c) o regime de pena integralmente fechado, em relação ao crime de homicídio. O ministro Gilson Dipp deferiu a liminar, assegurando ao paciente o direito à progressão de regime prisional, observados os pressupostos e requisitos previstos na Lei de Execuções Penais (folha 167 do apenso). No julgamento do mérito da impetração, a ordem foi parcialmente concedida: confirmou-se a liminar mediante a qual acolhido o pleito de reconhecimento do direito à progressão prisional, sendo indeferidos os pedidos atinentes à nulidade do julgamento por erro de votação do terceiro quesito apresentado aos jurados e relativamente ao fato de o réu ter permanecido algemado durante a sessão do Júri.


Este habeas está voltado a infirmar esse ato, no ponto em que pretendida a nulidade do veredicto popular em razão de o réu ter permanecido algemado durante todo o julgamento realizado pelo Tribunal do Júri.

Os impetrantes sustentam o cabimento da ordem, ainda que pendente de julgamento o agravo formalizado contra a inadmissão do recurso especial. Evocam precedente do Supremo, no qual assentado que “não impedem a impetração de habeas corpus a admissibilidade de recurso ordinário ou extraordinário da decisão impugnada, nem a efetiva interposição deles” – Habeas Corpus nº 83.346-2/SP, relator ministro Sepúlveda Pertence, acórdão publicado no Diário da Justiça de 19 de agosto de 2005. No mérito, afirmam que, de acordo com o que decidido no Habeas Corpus nº 89.429-1/RO, relatora ministra Cármen Lúcia, o uso de algemas há de obedecer aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, sob pena de nulidade.

Ressaltam que, no caso em exame, não havia razão plausível para tanto. Alegam que a garantia da ordem pública, a conveniência da instrução criminal e a certeza da aplicação da lei penal, pressupostos para a decretação da prisão preventiva, não servem de base para o procedimento adotado pelo Presidente do Tribunal do Júri, uma vez que, na decisão de pronúncia, não constou a existência de indícios de periculosidade ou de animosidades no paciente. Afirmam que a circunstância de o réu permanecer algemado não pode ser confundida com os requisitos da prisão cautelar, mostrando-se insubsistente também o argumento de que o réu teria permanecido algemado em todas as audiências ocorridas antes da pronúncia. Asseveram paradoxal a assertiva de a segurança no Tribunal ser “realizada por apenas dois policiais civis”, porquanto tal fato demonstraria a desnecessidade do uso das algemas, por não cuidar-se de réu perigosíssimo, como, à primeira vista, poderia transparecer. Apontam ter havido desrespeito ao princípio da isonomia, com desequilíbrio na igualdade de armas que há de ser assegurada à acusação e à defesa. Dizem da existência de constrangimento ilegal no uso das algemas quando não verificadas as condições de efetiva periculosidade. Aduzem que o procedimento, além de implicar ofensa à dignidade da pessoa humana, influiria negativamente na concepção dos jurados no momento de decidir. Requerem a concessão da ordem, para declarar nulo, a partir do libelo, o Processo-Crime nº 7/2003, em curso no Juízo de Direito da Comarca de Laranjal Paulista, e a submissão do paciente a novo julgamento, desta vez sem as “malsinadas algemas”.

A Procuradoria Geral da República, no parecer de folha 30 a 35, manifesta-se pelo indeferimento da ordem. Entende que o uso de algemas não afronta o princípio da presunção de não-culpabilidade e a manutenção do réu algemado durante a sessão plenária do Tribunal do Júri não configura constrangimento ilegal se a medida se mostra necessária ao bom andamento do julgamento e à segurança das pessoas que nele intervêm. A adoção do procedimento ficaria a critério do Juiz-Presidente do Tribunal do Júri no exercício da polícia das sessões.

Lancei visto no processo em 2 de julho de 2008, liberando-o para ser julgado no Pleno a partir de 6 de agosto seguinte, isso objetivando a ciência dos impetrantes.

É o relatório.

VOTO


O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) — O julgamento perante o Tribunal do Júri não requer a custódia preventiva do acusado, até então simples acusado — inciso LVII do artigo 5º da Lei Maior. Hoje não é necessária sequer a presença do acusado — Lei nº 11.689/08, alteração do artigo 474 do Código de Processo Penal. Diante disso, indaga-se: surge harmônico com a Constituição manter o acusado, no recinto, com algemas? A resposta mostra-se iniludivelmente negativa.

Em primeiro lugar, levem em conta o princípio da não-culpabilidade. É certo que foi submetida ao veredicto dos jurados pessoa acusada da prática de crime doloso contra a vida, mas que merecia o tratamento devido aos humanos, aos que vivem em um Estado Democrático de Direito. Segundo o artigo 1º da Carta Federal, a própria República tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Da leitura do rol das garantias constitucionais – artigo 5º —, depreende-se a preocupação em resguardar a figura do preso. A ele é assegurado o respeito à integridade física e moral — inciso XLIX. Versa o inciso LXI, como regra, que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

Além disso, existe a previsão de que a custódia de qualquer pessoa e o local onde se encontre hão de ser comunicados imediatamente ao juiz competente, à família ou à pessoa por ele indicada – inciso LXII. Também deve o preso ser informado dos respectivos direitos, entre os quais o de permanecer calado, ficando-lhe assegurada a assistência da família e de advogado – inciso LXIII. O inciso LXIV revela que o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial. Mais ainda, a prisão ilegal há de ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciária – inciso LXV — e ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança – inciso LXVI.

Sob o ângulo do cumprimento da pena, impõe-se a separação em estabelecimentos prisionais considerada a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado – inciso XLVIII.

Ora, estes preceitos – a configurarem garantias dos brasileiros e dos estrangeiros residentes no país — repousam no inafastável tratamento humanitário do cidadão, na necessidade de lhe ser preservada a dignidade. Manter o acusado em audiência, com algema, sem que demonstrada, ante práticas anteriores, a periculosidade, significa colocar a defesa, antecipadamente, em patamar inferior, não bastasse a situação de todo degradante. O julgamento no Júri é procedido por pessoas leigas, que tiram as mais variadas ilações do quadro verificado. A permanência do réu algemado indica, à primeira visão, cuidar-se de criminoso da mais alta periculosidade, desequilibrando o julgamento a ocorrer, ficando os jurados sugestionados.

O tema não é novo. Na apreciação do Habeas Corpus nº 71.195-2/SP, relatado pelo ministro Francisco Rezek, cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 4 de agosto de 1995, a Segunda Turma assentou que a utilização de algemas em sessão de julgamento somente se justifica quando não existe outro meio menos gravoso para alcançar o objetivo visado:

HABEAS CORPUS. CONCURSO MATERIAL DE CRIMES. PROTESTO POR NOVO JÚRI. PENA INFERIOR A VINTE ANOS. UTILIZAÇÃO DE ALGEMAS NO JULGAMENTO. MEDIDA JUSTIFICADA.

[…]


II – O uso de algemas durante o julgamento não constitui constrangimento ilegal se essencial à ordem dos trabalhos e à segurança dos presentes.

Habeas corpus ideferido.

Assim também decidiu a Primeira Turma desta Corte no Habeas Corpus nº 89.429-1/RO, relatora ministra Cármen Lúcia, acórdão veiculado no Diário da Justiça de 2 de fevereiro de 2007. Assentou o Colegiado:

[…] o uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo.

No Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso de Habeas Corpus nº 5.663, do qual foi relator o ministro William Patterson, acórdão publicado no Diário da Justiça de 23 de setembro de 1996, outro não foi o entendimento, como se constata da seguinte ementa:

Penal. Réu. Uso de algemas. Avaliação da necessidade.

– A imposição do uso de algemas ao réu, por constituir afetação aos princípios de respeito à integridade física e moral do cidadão, deve ser aferida de modo cauteloso e diante de elementos concretos que demonstrem a periculosidade do acusado.

– Recurso provido.

Deste julgamento, sem voto discrepante, participaram os ministros Luiz Vicente Cernicchiaro, Vicente Leal, Fernando Gonçalves e Anselmo Santiago.

De modo enfático, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento da Apelação Criminal nº 74.542-3, acórdão publicado na Revista dos Tribunais nº 643/285, estabeleceu que “algema não é argumento e, se for utilizada sem necessidade, pode levar à invalidação da sessão de julgamento”.

Essa postura remonta ao tempo do Império. Dom Pedro, quando ainda Príncipe Regente, em Decreto de 23 de maio de 1821, ordenou:

[…] que em caso nenhum possa alguém ser lançado em segredo, em masmorra estreita, escura ou infecta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas e nunca para as adoecer e flagelar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões e outros quaisquer ferros, inventados para martirizar homens, ainda não julgados, a sofrer qualquer pena aflitiva, por sentença final; entendendo-se, todavia, que os Juízes e Magistrados Criminais poderão conservar por algum tempo, em casos gravíssimos, incomunicáveis os delinqüentes, contanto que seja em casas arejadas e cômodas e nunca manietados ou sofrendo qualquer espécie de tormento. (Em “Coleção das Leis do Brasil de 1821”, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1889, Parte II, p. 88 e 89).


O Código de Processo Criminal do Império – de 29 de novembro de 1832 -, no capítulo “Da Ordem de Prisão”, dispunha, no artigo 180, que, “se o réu não obedecer e procurar evadir-se, o executor tem direito de empregar o grau da força necessária para efetuar a prisão, se obedecer porém, o uso da força é proibido”. A Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, reformou o Código de Processo Criminal, mas manteve a mencionada norma.

Nova reestruturação do processo penal brasileiro somente ocorreu trinta anos depois, com a Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto nº 4.824, de 22 de novembro do mesmo ano. O artigo 28 deste último preceituava que o preso não seria “conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo condutor; e quando o não justifique, além das penas em que incorrer, será multado na quantia de dez a cinqüenta mil réis, pela autoridade a quem for apresentado o mesmo preso”.

A Constituição de 1891 conferiu às unidades federativas a competência para legislar sobre matéria processual penal. Algumas exerceram a competência legislativa, enquanto outras se limitaram a adotar a legislação do Império. O artigo 28 do referido decreto regulamentar, então, acabou repetido em várias leis.

Com a Carta da República de 16 de julho de 1934, foi restabelecida a competência privativa da União para legislar sobre direito penal. Em 15 de agosto de 1935, sendo Ministro da Justiça e Negócios Interiores Vicente Ráo, foi apresentado o Projeto de Código de Processo Penal, cujo artigo 32 vedava “o uso de força ou o emprego de algemas, ou de meios análogos, salvo se o preso resistir ou procurar evadir-se”. O projeto não vingou, em virtude da Constituição promulgada com o golpe de Estado de 1937 (em José Frederico Marques, “Tratado de Direito Processual Penal”, São Paulo, Saraiva, 1980, v. I, § 83, p. 123).

O novo Código somente veio à balha em 3 de outubro de 1941, passando a viger desde então o artigo 284 — “Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso” -, que, embora não se refira expressamente ao uso de algemas, sinaliza as situações de fato extremas em que poderão ser utilizadas. É o que se constata, ainda, no artigo 292 dele constante, a revelar que, se houver, mesmo que por parte de terceiros, “resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas”.

Na Lei de Execução Penal – nº 7.210/84 –, bem se revelou o caráter excepcional da utilização de algemas, instando-se o Poder Executivo à regulamentação no que previsto, no artigo 159, que o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal. Se, quanto àquele que deve cumprir pena ante a culpa formada, o uso de algemas surge no campo da exceção, o que se dirá em relação a quem goza do benefício de não ter a culpa presumida, ao simplesmente conduzido, indiciado ou mesmo acusado que responda a processo-crime?

Até mesmo na área penal militar, a utilização de algema é tida como excepcional. Consta do artigo 234 do Código de Processo Penal Militar:

O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas.


O § 1º do citado artigo, harmônico com a Carta de 1988, revela especificamente que:

O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242.

O artigo 242 prevê que:

Art. 242 — Serão recolhidos a quartel ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão, antes de condenação irrecorrível:

a) os ministros de Estado;

b) os governadores ou interventores de Estados, ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários e chefes de Polícia;

c) os membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembléias Legislativas dos Estados;

d) os cidadãos inscritos no Livro de Mérito das ordens militares ou civis reconhecidas em lei;

e) os magistrados;

f) os oficiais das Forças Armadas, das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, Militares, inclusive os da reserva, remunerada ou não, e os reformados;

g) os oficiais da Marinha Mercante Nacional;

h) os diplomados por faculdade ou instituto superior de ensino nacional;

i) os ministros do Tribunal de Contas;

j) os ministros de confissão religiosa.

Pois bem, se fica excluída a utilização da algema seja qual for o quadro, quanto a essas pessoas, o que se dirá no tocante àquele que, vindo sob a custódia do Estado há algum tempo, já se encontra fragilizado e comparece ao tribunal para ser julgado?


Vale registrar, ainda, que o item 3 das regras da Organização das Nações Unidas para tratamento de prisioneiros estabelece que o emprego de algemas jamais poderá se dar como medida de punição. Isso indica, à semelhança do que antes previsto no artigo 180 do Código de Processo Criminal do Império, que o uso desse instrumento é excepcional e somente pode ocorrer nos casos em que realmente se mostre indispensável para impedir ou evitar a fuga do preso ou quando se cuidar comprovadamente de perigoso prisioneiro.

A ausência de norma expressa prevendo a retirada das algemas durante o julgamento não conduz à possibilidade de manter o acusado em estado de submissão ímpar, incapaz de movimentar os braços e as mãos, em situação a revelá-lo não um ser humano que pode haver claudicado na arte de proceder em sociedade, mas uma verdadeira fera.

Não bastasse a clareza vernacular do artigo 284, a afastar o emprego de força, tomada esta no sentido abrangente – ante abusos de toda sorte, vendo-se, nos veículos de comunicação, algemadas pessoas sem o menor traço agressivo, até mesmo outrora detentoras de cargos da maior importância na República, em verdadeira imposição de castigo humilhante, vexaminoso -, veio à balha norma simplesmente interpretativa, e, portanto, pedagógica, específica quanto à postura a ser adotada em relação ao acusado na sessão de julgamento pelos populares, pelos iguais, alfim, pelo Júri. A recente Lei nº 11.689, de 9 de junho de 2008, ao implementar nova redação ao artigo 474 do Código de Processo Penal, tornou estreme de dúvidas a excepcionalidade do uso de algemas.

Eis o preceito:

Artigo 474 […]

§ 3º Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes.

É hora de o Supremo emitir entendimento sobre a matéria, inibindo uma série de abusos notados na atual quadra, tornando clara, até mesmo, a concretude da lei reguladora do instituto do abuso de autoridade, considerado o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, para a qual os olhos em geral têm permanecido cerrados. A Lei em comento – nº 4.898/65, editada em pleno regime de exceção —, no artigo 4º, enquadra como abuso de autoridade cercear a liberdade individual sem as formalidades legais ou com abuso de poder – alínea “a” — e submeter pessoa sob guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado por lei — alínea “b”.

No caso, sem que houvesse uma justificativa socialmente aceitável para submeter um simples acusado à humilhação de permanecer durante horas e horas com algemas, na oportunidade do julgamento, concluiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que a postura adotada pelo Presidente do Tribunal do Júri, de não determinar a retirada das algemas, fez-se consentânea com a ordem jurídico-constitucional. Proclamou a Corte que “a utilização das algemas durante o julgamento não se mostrou arbitrária ou desnecessária e, por conseguinte, não vinga a nulidade argüida”, aludindo, no entanto, a precedente da Segunda Turma do Supremo que vincula a permanência do preso algemado à necessidade de manutenção da ordem dos trabalhos e de garantia da segurança dos presentes (folhas 408 e 409, numeração de origem, dos autos em apenso).

Vale frisar, por oportuno, que, abertos os trabalhos do Júri — o acusado já estava preso há um ano e meio — o defensor, Dr. Walter Antônio Dias Duarte, pediu a palavra e assim se manifestou:


MM. Juíza: Hão (com a correção vernacular) que ser retiradas as algemas do acusado para que algemado não influencie indevidamente o ânimo dos senhores jurados. Se necessário for a defesa apontará a Vossa Excelência as correspondentes folhas dos autos onde o meritíssimo Juiz de então cancelou dois dos motivos que autorizavam a decretação da preventiva, vez que a garantia da ordem pública e a conveniência da instrução criminal não mais integravam o rol dos motivos que autorizam a decretação desta custódia (fls. 115). Se, como precedente jurisprudencial e julgado do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que tem por ementa: “Írríto o julgamento do Júri se o réu permaneceu algemado durante o desenrolar dos trabalhos sob a alegação de ser perigoso, eis que tal circunstância interfere no espírito julgador e, conseqüentemente, no resultado do julgamento, constituindo constrangimento ilegal que dá causa a nulidade”.(RT. 643/285) — confiram com a ata da sessão realizada, que se encontra às folhas 301 e 302 do apenso, numeração de origem.

O Ministério Público se opôs à retirada das algemas. Afirmou que ficara o réu algemado durante todas as audiências de instrução, reclamando fosse guardada a coerência. Olvidou, com essa óptica, que o erro anterior não justificava a manutenção da violência.

Então, a Juíza deliberou:

Entendo que não constitui constrangimento ilegal o réu permanecer algemado em Plenário, sobretudo porque tal circunstância se faz estritamente necessária para preservação e segurança do bom andamento dos trabalhos, já que a segurança hoje está sendo realizada por apenas dois policiais civis. Assim, indefiro o pleito da defesa, observando ainda, como bem notou a Dra. Promotora de Justiça que o réu permaneceu algemado em todas as audiências ocorridas antes da pronúncia.

Não foi apontado, portanto, um único dado concreto, relativo ao perfil do acusado, que estivesse a ditar, em prol da segurança, a permanência com algemas.

Quanto ao fato de apenas dois policiais civis fazerem a segurança no momento, a deficiência da estrutura do Estado não autorizava o desrespeito à dignidade do envolvido. Incumbia sim, inexistente o necessário aparato de segurança, o adiamento da sessão, preservando-se o valor maior, porque inerente ao cidadão.

Concedo a ordem para tornar insubsistente a decisão do Tribunal do Júri. Determino que outro julgamento seja realizado, com a manutenção do acusado sem as algemas. Informo que, hoje, ante pronunciamento em outro Habeas Corpus, o de nº 86.453-8/SP, o paciente encontra-se em liberdade há cerca de três anos, sendo que a sentença de pronúncia – último ato que sobeja, prevalecente o voto, a interromper a prescrição, no caso de vinte anos — data de 2004.

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