Legítima defesa

Desembargador não tem de indenizar colega por danos morais

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6 de agosto de 2008, 9h56

O desembargador Bernardo Moreira Garcez Neto, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, não terá de pagar R$ 50 mil de indenização por danos morais ao desembargador Gabriel de Oliveira Zefiro. A 17ª Câmara Cível do TJ fluminense entendeu que Garcez agiu em legítima defesa ao dar um golpe com a cabeça em Zefiro. Cabe recurso. A informação foi publicada na coluna do jornalista Ancelmo Góis. No jornal O Globo.

Para o relator da apelação, desembargador Edson Vasconcelos, o cerne da questão ficou em torno de saber se Garcez agiu ou não em legítima defesa. Analisando os depoimentos de testemunhas, Vasconcelos concluiu que Garcez tinha motivos para acreditar que seria agredido por Zefiro e reagir do modo como o fez.

Isso porque, segundo uma das testemunhas, o juiz Célio Magalhães Ribeiro, o incidente foi precedido, dias antes, de outra situação. Magalhães Ribeiro contou que, na mesma agência bancária em que ocorreu a agressão, Garcez estendeu a mão para cumprimentar Zefiro, mas foi ignorado e chamado de “fingido”.

“No mínimo, agiu o réu em legítima defesa putativa, já que, como afirmou em sua contestação, teria presumido naquela suposta tentativa de cumprimento o início de uma imobilização física com golpe denominado ‘mão de vaca’”, afirmou o relator.

O incidente aconteceu, em 2004, dentro da agência do extinto Banco do Estado do Rio de Janeiro (Banerj), que ficava dentro do Fórum Central do Rio. Outros juízes estavam presentes. Zefiro teria tentado segurar o braço de Garcez, que reagiu. O golpe causou em Zefiro fraturas no nariz e ferimentos no supercílio.

Gabriel Zefiro entrou com uma ação contra Garcez pedindo indenização por danos morais. Ele afirmou que brincou com Garcez nos seguintes termos: “Aí, meu irmão, como é que é? Não está mais falando mal de mim não, né?”. A frase, segundo Zefiro, foi suficiente para que o desembargador lhe desse um soco e uma cabeçada. De acordo com Zefiro, apesar de ter conhecimento de que Garcez estava falando mal dele, sempre teve uma convivência harmoniosa com o desembargador.

Já Garcez conta que o conflito começou quando era corregedor do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro. Ele dispensou Zefiro, que, em 1997, era seu auxiliar. Segundo o ex-corregedor, a partir da dispensa passou a ser intimidado por Zefiro, que na época era juiz. Garcez conta que um mês antes do episódio, na mesma agência, Zefiro disse: “Quero ver se você é homem de falar na minha frente o que fala por trás”.

Em primeira instância, o pedido foi julgado procedente pelo juiz Álvaro Henrique Teixeira de Almeida, da 12ª Vara Cível do Rio. Garcez foi condenado a pagar R$ 50 mil a Zefiro.

Ambos recorreram da decisão. Garcez alegou legítima defesa e pediu a reforma da decisão para que não fosse condenado a pagar a indenização. Zefiro recorreu para que o valor fosse aumentado.

Por unanimidade, a 17ª Câmara do TJ do Rio reformou a decisão. “Exigir-se moderação naquelas circunstâncias seria transformar os requisitos da legítima defesa de observância possível apenas por super-homens nietzschianos”, afirmou o desembargador que reformou a decisão.

Leia a decisão

RELATÓRIO

GABRIEL DE OLIVEIRA ZEFIRO propôs ação, pelo procedimento ordinário, posteriormente convolado em sumário, em face de BERNARDO MOREIRA GARCEZ NETO alegando ter sido por este agredido, com soco e cabeçada, no dia 02 de abril de 2004, por volta das 12:30 horas, quando ambos se encontravam no posto do Banco do Estado do Rio de Janeiro, localizado no fórum central da Comarca da Capital do Rio de Janeiro. A agressão teria ocorrido porque o réu se descontrolou quando o autor lhe perguntou, em tom de brincadeira, se o mesmo continuava a falar mal dele, autor. O autor sofreu fratura cominutiva no nariz e septo nasal, cujo tempo de consolidação varia de 30 a 45 dias. O fato ocorreu na presença de outros magistrados, repercutindo amplamente na imprensa. Afirma o autor ausência de qualquer desavença anterior que motivasse o fato, não obstante ter conhecimento de que o réu estaria falando mal de sua pessoa. Alega, ainda, ter sido juiz auxiliar do réu quando o mesmo exercia a função de Corregedor da Justiça Eleitoral, tendo dele se afastado em razão de discordar da sua forma de atuação. Requer indenização por danos morais, estéticos, em valor a ser arbitrado pelo juízo, bem como ressarcimento de todas as despesas que decorrentes do acompanhamento médico, conforme liquidação por artigos (fls. 02/12).

Recurso de agravo interposto pela parte ré, na forma retida, em audiência de instrução e julgamento, voltando-se contra decisão que rejeitou contradita às testemunhas arroladas pelo autor (fls. 348/351).

Foi interposto agravo de instrumento nº 15.893/2004, contra decisão do Juízo que modificou o valor da causa de R$ 10.000,00 para R$ 20.000,00 e modificou o procedimento para sumário. Esta egrégia Câmara deu provimento ao recurso para casar a decisão, mantido, no entanto, o procedimento sumário (v. apenso, fls. 112/118 e 130/133).


A sentença julgou procedente em parte o pedido para condenar o réu no pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), atualizado a partir da data da prolação, com acréscimo de juros de 1% (um por cento) ao mês a contar da data do fato. Como o autor restou vencido quanto aos pedidos de reparação a título de dano estético e de custeio de tratamento médico futuro, declarou-se incidência do art. 21 do CPC (fls. 407/416).

Da sentença foram opostos pelo réu os embargos de declaração de fl. 418, postulando declaração a respeito da aplicação do art. 406 do Código Civil.

Apela o autor reeditando os argumentos constantes da inicial para requerer a reforma da sentença, mercê de majoração da verba indenizatória fixada a título de danos morais, pleiteando ainda a condenação do réu no pagamento de indenização pelo dano estético sofrido e para custeio das despesas médicas eventualmente necessárias, incidente no caso, para efeito da sucumbência, a regra do art. 21, parágrafo único, do CPC (fls. 420/435).

Contra-razões do réu argüindo preliminar de intempestividade do recurso do autor, em razão de a interposição ter ocorrido antes da publicação da decisão proferida nos embargos de declaração (fls. 458/472).

Apelação do réu pugnando pelo julgamento do recurso de agravo interposto na forma retida. Sustenta contradita de testemunhas consideradas suspeitas em razão de amizade com o autor, fato confirmado quando da oitiva em juízo. Alega que outras pessoas, sem impedimento legal, poderiam ter sido arroladas como testemunhas, pelo que pleiteia anulação da decisão que tomou compromisso legal das referidas testemunhas, as quais somente poderiam ser ouvidas na qualidade de informantes. No mérito, alega inexistência de ato ilícito capaz de gerar dever indenizatório, na forma da excludente de ilicitude consistente em legítima defesa. Assevera existência de problemas de relacionamento entre as partes desde a época em que trabalharam no Tribunal Regional Eleitoral. Alega que, alguns dias antes do evento, houve um incidente entre as partes, tendo o autor falado em tom intimidador e agressivo: “quero ver se você é homem de falar na minha frente o que fala por trás!”, não tomando o incidente maiores proporções em razão de se ter retirado do local. Assevera que, em razão dos antecedentes comprovados, com os depoimentos prestados pelas testemunhas, bem como pelo comportamento do autor no dia do fato, sua conduta foi no sentido de repelir agressão iminente.

Sustenta ausência de repercussão social do fato, sendo certo que a publicação em jornal somente ocorreu por iniciativa do próprio autor. No caso do reconhecimento do dever de indenizar, postula redução do valor da condenação para quantia não superior ao equivalente a 5 (cinco) salários mínimos, na forma da jurisprudência colacionada (fls. 473/499).

Contra-razões do autor prestigiando a sentença apelada (fls. 506/512).

Recursos se encontram devidamente preparados.

É o relatório.

VOTO

Na partida, rejeitam-se os agravos retidos interpostos pelo segundo apelante com pretensão de impugnar os depoimentos das testemunhas Luiz Roberto Ayoub e Luiz Umpierre de Mello Serra, pois não se faz presente o impedimento previsto no art. 405, § 3º, do Código de Processo Civil, consoante salientou o Juízo nas decisões atermadas a fls. 348/352. Adota-se a fundamentação das mesmas como razões decisórias.

Afastada a prévia, relembre-se que, em concepção filosófica, nem sempre existe sintonia entre o ato e o fato no mundo sensível, pois o homem está em contato permanente com diversos tipos de realidades, umas inteligíveis, outras sensíveis. As inteligíveis retratam a realidade e por isto são concretas, permanentes, imutáveis; as sensíveis se revelam nas coisas que afetam os sentidos, afigurando-se realidades dependentes, mutáveis e são projeções das realidades inteligíveis.

Na hipótese em exame, temos um fato social desastroso, que pode perfeitamente caracterizar a vertente inteligível da situação, e duas realidades subjetivas antagônicas, ao menos no terreno das teses jurídicas encampadas pelos patrocínios dos interesses das partes, como representação da realidade sensível.

O fato social é desastroso porque retrata um desforço físico, do qual resultaram lesões corporais, entre dois respeitáveis magistrados, ambos experientes nas técnicas de mediação e solução de conflitos de interesses, o que se faz pela via processual, que visa exatamente o afastamento dos meios individuais violentos que podem eclodir nas divergências ocorridas nas relações humanas. Foi bem por isto que o fato tomou vulto muito superior ao que normalmente acontece em situações de idêntica natureza, tendo sido veiculado, de forma até jocosa, pela imprensa do Rio de Janeiro e nacional, o que, de certa forma, atingiu até mesmo o Poder Judiciário como uma instituição que se caracteriza pelo equilíbrio do comportamento de seus integrantes.


A realidade sensível reconduz à complexidade da subjetividade humana e joga com sentimentos e valores individuais dos dois magistrados que figuram como partes antagônicas. Neste campo, não se pode exigir dos envolvidos o comportamento adequado ao rigor do cargo que ocupam, mais sim uma conduta em consonância com a imanência humana e isto os põe em pé de igualdade com todas as pessoas que integram o espaço comunitário. Autor e réu sujeitam-se aos condicionamentos psicológicos inerentes a todos os homens e, por isto mesmo, não podem ser tratados em um processo judicial com vistas apenas em sua qualidade funcional, como membros de um dos poderes institucionais da República. Logo, serão igualitariamente tratados, como o são todas as partes de processo: um é autor e o outro réu, não mais do que isto…

Estas realidades sensíveis, consideradas as alegações do autor, assumem sentimentos de desonra e revolta de que o mesmo se viu tomado por uma agressão, que considera covarde; na perspectiva do réu, invoca ele o argumento supremo do direito de auto-preservação que todo homem possui, pois afirma ter agido em legítima defesa própria.

Assim sendo, a controvérsia aqui será solucionada pela análise da tese esboçada pela douta defesa técnica do réu, a qual, se excluída, implicará responsabilidade civil, que acabou reconhecida na decisão de primeiro grau.

De exame dos autos, verifica-se que a respeitável sentença proclamou a responsabilidade do réu ao suposto de não provada a excludente de ilicitude invocada e o fez com utilização da prova oral produzida nos autos e também fora dos autos, com base nos depoimentos prestados perante o juiz auxiliar da presidência do Tribunal de Justiça.

Nesta instância revisora, a questão também será analisada em consonância com a prova dos autos, mas somente aquela produzida sob o crivo do contraditório, já que se não podem considerar como válidos, para efeito de disquisição probatória, os conteúdos de depoimentos prestados em sede administrativa, sem observância do devido processo legal. Em outras palavras, não serão considerados os termos de declaração resultantes das diligências realizadas pela presidência desta egrégia Corte. Serão analisados, para a busca da verdade, apenas os depoimentos atermados a fls. 345/357.

De análise da prova oral, verifica-se que a testemunha Célio Geraldo de Magalhães Ribeiro, magistrado dos mais respeitáveis, relata um fato que se revela esclarecedor para que se entenda a desajeitada cabeçada que o réu desferiu no autor, fraturando-lhe o nariz e ferindo o próprio supercílio. Disse a testemunha que, em data pretérita ao fato, presenciou, no interior da mesma agência bancária, o réu estender a mão ao autor para cumprimento, mas este o deixou de mão no ar e o rotulou de “fingido”, porque “falava mal dele pelas costas”.

Aqui um corte para relembrar a figura típica da injúria, que se configura pela ofensa a dignidade ou o decoro de alguém e traduz sempre desprezo ou menoscabo pelo injuriado.

Esta conduta pretérita do autor se assemelha a um caso de injúria por omissão citado por Edgard Magalhães Noronha, em sua obra Direito Penal, 2º vol., 9ª Ed., 1973, p. 126:

“Todos os meios hábeis a manifestação do pensamento podem gesto, o ato etc. Também por omissão se pode injuriar: se uma pessoa chega a uma casa, onde várias outras se acham reunidas e cumprimenta-as, recusando, entretanto, a mão a uma que lhe estende a destra, injuria-a.”

Na hipótese em exame, não se pode olvidar ter sido o ato injurioso do autor presenciado por pessoas que conhecem ambas as partes, pois tudo se deu em posto bancário de atendimento exclusivo de magistrados. O clima de constrangimento que se formou foi assim referido pela testemunha Célio Geraldo de Magalhães Ribeiro: “…o episódio deixou um grande mal-estar nas pessoas”.

De volta ao dia do fato em exame, o réu se encontrava no mesmo local em que fora injuriado pelo autor e este, ao adentrar o recinto, dirigiu-se àquele e falou, em tom sarcástico, ouvido por todos: “e aí, ainda está falando mal de mim?” Ato contínuo, o autor tentou segurar um braço do réu, momento em que, segundo a testemunha, se iniciou “a confusão”. Após o entrevero desastroso, o autor afirmou que seu gesto fora amistoso. Não se duvida da intenção pacífica o autor, devido à sua inquestionável honorabilidade, mas esta intenção amistosa não poderia acreditar o réu, porque fora anteriormente humilhado e injuriado por aquele, exatamente em uma iniciativa amistosa que tomara com vistas a um cumprimento com as mãos. No mínimo, agiu o réu em legítima defesa putativa, já que, como afirmou em sua contestação, teria presumido naquela suposta tentativa de cumprimento o início de uma imobilização física com golpe denominado “mão de vaca”.


Dir-se-á que esta possível presunção não passa de conjecturas. Pode ser, mas a definição de uma possível responsabilidade civil não pode prescindir da demonstração de culpa, como é curial. Aceita-se aqui a justificativa de conduta apresentada pelo réu porque nos remete a uma reflexão centrada na subjetividade humana, a invocar o Mito da Caverna narrado por Platão no livro VII da República, no qual os homens, privados do conhecimento da realidade, tomam o espectro pelo verdadeiro. Logo, se o autor pretendia realmente cumprimentar o réu, segurando-lhe um dos braços, sua atitude anterior de rejeitar o cumprimento que lhe foi endereçado pelo réu, revela mesmo uma intenção diametralmente oposta da que foi declarada posteriormente.

Não se pode, sequer, cogitar de excesso na conduta do réu e tudo permite a suposição de que ocorreria uma situação hostil como aquela anterior. Outra atitude não se pode exigir do réu senão os atos possíveis para desvencilhar-se como pudesse de uma imobilização iminente, ainda que imaginária. Exigir-se moderação naquelas circunstâncias seria transformar os requisitos da legítima defesa de observância possível apenas por super-homens nietzschianos.

Houvesse culpa, seria concorrente e em idêntica proporção, o que, por si só, excluiria o dever de indenizar.

Quanto às demais testemunhas tem-se Luiz Roberto Ayoub, magistrado digno dos maiores encômios, devido à sua reconhecida retidão de caráter, mas não presenciou ele o fato que se diz lesivo, informando ter visto autor e réu cumprimentando-se amistosamente no mesmo estabelecimento bancário, uma semana antes, o que não infirma o possível estado de humilhação decorrente da injúria sofrida pelo réu em outro momento, pois não consta dos autos dados informativos que permitam o conhecimento da dinâmica que antecedeu o entrevero de que se trata.

A testemunha Luiz Umpierre de Mello Serra prestou um depoimento de certa forma incriminador da conduta do réu, mas isto não infirma as declarações mais precisas da testemunha Célio Geraldo de Magalhães Ribeiro, sendo de se depoente Carlos Eduardo Moreira da Silva, já que Luiz Umpierre de Mello Serra afirma ter visto a agressão por iniciativa do réu, porque se encontrava “um pouco mais atrás do autor”, enquanto Carlos Eduardo Moreira da Silva sustenta que o autor chegou à agência bancária acompanhado da testemunha Mello Serra. Carlos Eduardo Moreira da Silva declarou ter cumprimentando o autor, “mas se reteve com o juiz Mello Serra”. Como se vê, não poderia Mello Serra estar um pouco atrás do autor no instante do fato se estava a conversar com Carlos Eduardo Moreira da Silva. Averbe-se que tal contradição não se presta para se acoimar de incorreto o depoimento da testemunha Luiz Umpierre de Mello Serra, magistrado digno e respeitável, assim como Carlos Eduardo Moreira da Silva; isto apenas indicia equivocada percepção da mesma testemunha sobre os fatos que presenciou, imperfeição corriqueira no âmbito da prova testemunhal

O quadro fático desenhado forma um fato processual completo, apto a proclamar a falta de responsabilidade civil do réu, por absoluta ausência de culpa, admitida, por epítrope, uma concorrência de culpa, que, no entanto, assume idêntica dimensão contraposta, uma anulando a outra.

À conta de tais fundamentos, o voto é no sentido de rejeitar os agravos retidos e dar provimento à apelação do réu Bernardo Moreira Garcez Neto para, reformando a sentença, julgar improcedentes os pedidos, condenado o autor no pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, fixados estes em 10% (dez por cento) do valor atribuído à causa. Por conseqüência, declara-se prejudicado o recurso do autor.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2008.

DES. EDSON VASCONCELOS

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