Caça ao calote

Entrevista: Nelson Lacerda, advogado

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3 de agosto de 2008, 0h00

Nelson Lacerda - por SpaccaSpacca" data-GUID="nelson_lacerda.jpeg">Um mau pagador que passou mais de R$ 100 mil em cheques sem fundos na praça, em vez de quitar a dívida, resolve chamar seus credores para um leilão para “comprar” de volta estes cheques. Separa R$ 5 mil para o leilão e compra de volta os cheques daqueles que aceitarem receber menos por eles.

A cena surreal é desenhada pelo advogado Nelson Lacerda para mostrar como funcionará o pagamento de precatórios estaduais e municipais caso seja aprovada a Proposta de Emenda Constitucional 12, de 2006. Em entrevista à Consultor Jurídico, Lacerda afirma que a PEC 12 além de institucionalizar o calote, dá margem à corrupção porque acaba com o pagamento em ordem cronológica e eterniza a dívida dos estados com os cidadãos.

Lacerda trabalha no espaço deixado pelos estados com suas políticas de não pagamento dos precatórios. Ele afirma que a PEC 12 é uma reação ao fato de o Superior Tribunal de Justiça e de o Supremo Tribunal Federal terem pacificado a compensação de precatórios por empresas devedoras do ICMS.

Como o estado não paga, o credor vende seu precatório às empresas por até 30% do valor e as empresas pagam seu ICMS com os papéis. Nelson Lacerda conta que o fato de os tribunais estarem aceitando a compensação faz com que haja procura pelos precatórios e aumento de seu valor. Conseqüentemente, os estados têm de honrar suas dívidas e, por isso, atacaram a eficiência judicial pelo Congresso, com a PEC 12.

Para o advogado, hoje, os credores fazem bom negócio mesmo recebendo apenas 30% do valor visto que, só em São Paulo, “80 mil servidores já morreram sem receber seus direitos”, devido à lentidão dos pagamentos. Ele também conta como a organização fez com que os precatórios federais virassem um ativo dos mais atraentes no mercado financeiro, comprados por bancos e fundos de investimentos.

Baiano que mora em Porto Alegre, o tributarista Nelson Lacerda é reconhecido pelo trabalho que faz há 15 anos com compensação de precatórios. Formado na Unisinos, de São Leopoldo (RS), atua em São Paulo e no Rio Grande do Sul.

Leia a entrevista

ConJur — Quando o governo federal conseguiu colocar em dia o pagamento de precatórios?

Nelson Lacerda — Depois da promulgação da Emenda Constitucional 30, em 2000. Eles decidiram honrar os precatórios alimentares, que nascem de processos por reajuste de salários, por exemplo. Para isso, dividiram em dez anos o pagamento dos precatórios não alimentares. Isso foi importante porque o precatório alimentar é um pedaço do salário que não foi honrado. Os não alimentares são desapropriações, discussões de resíduos com grandes construtoras, entre outros.

ConJur — Com o pagamento em dia, o mercado financeiro começou a se interessar pelo precatório federal, certo?

Nelson Lacerda — Sim. Porque para o mercado financeiro não é um problema saber que vai receber em 2030, mas sim se o pagamento tem data certa e será feito nessa data. Por isso os precatórios federais viraram moeda valiosa. Grandes investidores e fundos começaram a comprar esse precatório no mercado. No começo, pagavam 45% do seu valor. Em 2006, com a lei que autoriza a criação de Fundos de Direitos Creditórios (Fedic) na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), fundos nacionais, internacionais, bancos e até mesmo investidores particulares começaram a comprar precatórios. Hoje, o precatório federal é vendido pelo credor por até 70% do seu valor. Um deságio pequeno.

ConJur — Arrumou a casa.

Nelson Lacerda — E arrumou bem. Antes não havia sequer ordem cronológica para o pagamento e era um terreno fértil para a corrupção. Como é que se pagavam os precatórios? “Quem me der mais, eu pago.” O que acabou com a corrupção foi a Emenda 30. A partir dali, o governo federal começo a pagar em dia. E hoje, está pagando antecipado os precatórios, o que os tornou ainda mais atraentes.

ConJur — Mas os precatórios estaduais continuam atrasados. Há solução?

Nelson Lacerda — Os precatórios estaduais estão com, pelo menos, dez anos de atraso. São 10 anos de atraso e milhares de ações de servidores, que se tornarão precatórios, ajuizadas por mês. Fizemos uma estatística no Rio Grande do Sul. Em 2006, entraram mil novas ações por mês no estado. Em 2007, 2,1 mil ações mensais. Em 2008, já são 2,5 mil ações por mês. Em São Paulo, 80 mil servidores já morreram sem receber seus direitos. Quando percebemos que esses precatórios talvez nunca fossem pagos, criamos um trabalho de compensação e de garantia.

ConJur — Como é feita a compensação?

Nelson Lacerda — Por exemplo, se o ICMS vence no dia 20, a empresa informa no dia 19 à Fazenda Estadual que quer pagar esse tributo com precatório. Essa questão já está pacificada há mais de dois anos pelo Superior Tribunal de Justiça.


ConJur — E a garantia? A empresa dá um precatório como garantia enquanto discute a dívida?

Nelson Lacerda — A garantia é na execução. A parte que deve ICMS dá o precatório como garantia do débito, discute se deve o imposto e, no final, ele vai à sub-rogação. É a chamada compensação convexa. A empresa diz ao governo: eu tenho um cheque sem fundo seu e quero quitar esse cheque sem fundo com aquela dívida que eu tenho com você.

ConJur — Um simples encontro de contas.

Nelson Lacerda — Um direito natural. A compensação é um direito que existe antes da própria lei. A vida é um sistema de compensação de interesses. O que faz o homem quando chega atrasado em casa e não cumpre o acordo com os filhos? “Cheguei atrasado, mas amanhã vou levar vocês para aquele passeio que tanto queriam.” Esse é um direito inclusive garantido pela Constituição Federal, que já previu que haveria dificuldade de negociação com o Poder Público. A Constituição definiu claramente o direito líquido e certo de encontro de contas.

ConJur — Por que, então, não há lei que regulamente essa compensação?

Nelson Lacerda — O Rio Grande do Sul tinha uma lei que autorizava a compensação, só que o Executivo não a cumpria. Em 2004, ela foi revogada. No Paraná também havia uma lei que autorizava e o Executivo também não a cumpria. Então, fazer a lei é fácil. O problema é que a parte pedia a compensação na Administração Pública, que negava. A parte entrava com pedido de Mandado de Segurança, que era concedido. O recurso do Poder Público era negado até que a questão chegasse ao STJ — que hoje já pacificou o entendimento de que empresas podem compensar ICMS com precatórios. Os precatórios têm prioridade na nomeação de bens à penhora.

ConJur — Vale como dinheiro?

Nelson Lacerda — Quando é débito de mesma natureza, o precatório equivale a dinheiro. Tem uma ordem que precisa ser seguida na nomeação de bens à penhora. Primeiro é dinheiro, depois imóvel, depois bens, e assim por diante. Mas se a empresa nomeia precatório no ICMS, ele vale o mesmo que dinheiro.

ConJur — Os estados não pagam os precatórios. Por isso, as empresas compram para compensar imposto, e o estado acaba tendo de arcar com eles. Quem sai perdendo, no fim, é o cidadão, que recebe apenas parte do que tinha direito, não?

Nelson Lacerda — Infelizmente, sim. Mas, como o estado não paga, é melhor, em muitos casos, o cidadão receber parte, do que não receber. Em 2004, o Rio Grande do Sul devia R$ 3,3 bilhões. O estado de São Paulo devia, então, R$ 25 bilhões. E essa dívida só cresce. Nem os estados sabem quanto devem de fato. Pelas minhas contas, a dívida em um estado como São Paulo cresce na ordem de R$ 4,5 a 5 bilhões por ano. Sabe quanto São Paulo pagou em precatórios alimentares no ano passado? R$ 108 milhões. Hoje, eu calculo que o Rio Grande do Sul deva R$ 5 bilhões. Sabe quanto pagou ano passado? R$ 31 mil. Pagou só sete precatórios. E nos últimos quatro anos, as empresas gaúchas compraram cinco mil precatórios. Ou seja, cinco mil pessoas receberam seu dinheiro no Rio Grande do Sul. Receberam menos do que tinham direito, mas receberam. Por exemplo, atendemos o caso de uma senhora que precisava do dinheiro para fazer uma cirurgia. Ela recebeu apenas parte do que o estado devia, mas está viva há quatro anos graças à cirurgia.

ConJur — Mas quanto as empresas pagam, em média, pelos precatórios estaduais para usá-los na compensação?

Nelson Lacerda — Entre 25% e 30% do valor do precatório. O deságio do precatório estadual é muito grande. Do federal é muito menor porque vale como dinheiro. Mas esse percentual era muito menor. No Rio Grande do Sul, ele valia 12% quando a lei que permitia a compensação foi revogada. Aí nós conseguimos que a Justiça gaúcha aceitasse a compensação e ele passou a valer 20%. Quando vencemos no Supremo Tribunal Federal, ele passou para o valor atual. E ainda não atingiu 50% do valor porque tem gente que diz que não vale.

ConJur — O Supremo já pacificou a compensação?

Nelson Lacerda — O Supremo julgou que a compensação é um direito constitucional do contribuinte na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.851. E mesmo tendo pacificado a matéria, ainda há resistência porque os estados reclamam no Poder Judiciário que não arrecadam e ainda dizem que a ADI não discutiu a matéria do precatório, mas sim a lei que autorizava a compensação. Mas essa tese já foi desmentida no próprio STF, que agora só tem decidido a questão monocraticamente, graças ao entendimento firmado na ADI 2.851. Ou seja, se alguém contesta a compensação, os ministros já rejeitam a constatação individualmente.

ConJur — Em quantos casos o senhor já conseguiu compensar ICMS com precatório?


Nelson Lacerda —Em mais de 200 casos. Mas há mais de mil empresas que discutem esse direito. E o número só tende a crescer, porque, apesar dos atrasos, o precatório é uma boa garantia de pagamento de qualquer dívida. Nosso trabalho faz com que o servidor receba parte do que tem direito e a empresa reduza a carga fiscal. Com isso, o preço do produto repassado ao consumidor é mais baixo. Compensar precatório fortalece a economia.

ConJur — Qual sua opinião sobre a Proposta de Emenda à Constituição 12/06, a chamada PEC dos Precatórios?

Nelson Lacerda — A PEC 12 foi criada porque como o STJ e o STF estão pacificando a matéria, os estados estão com medo de ter de honrar os precatórios pela via da compensação. Como a matéria hoje é pacífica nos tribunais, mas há pouco tempo, o valor dos precatórios tende a crescer. E aí irão desaparecer no mercado financeiro porque as grandes companhias vão comprar para fazer a compensação. Diante desse quadro, criaram uma PEC para leiloar os precatórios e pagar menos por eles. A proposta limita o pagamento dos precatórios de 0,6% a 2% das despesas dos estados. Desse percentual, 50% serão destinados ao pagamento de credores e 50% aos leilões públicos para que os governos comprem os precatórios de volta com um deságio gigantesco.

ConJur — Ou seja, é uma saída para pagar menos do que o mercado?

Nelson Lacerda — Essa proposta institucionaliza o calote. Hoje a lei diz que o precatório deveria ser inscrito no orçamento em 2007 e pago em 2008. O estado diz que não tem dinheiro e vai protelando, o que é ilegal. Agora, o governo quer legalizar essa ilegalidade. Além disso, a proposta autoriza a quebra da ordem cronológica, porque prevê que recebe seu precatório primeiro o credor que tem direito ao menor valor. O efeito prático disso é que as dívidas irão se eternizar. A proposta não passa de uma tentativa de criar leilão com característica inversa para os precatórios e evitar o pagamento dos créditos alimentares. Tentativa semelhante a essa ocorreu quando foi criada a Emenda Constitucional 30/00, que permitiu a regularização dos precatórios federais.

ConJur — Como seria o leilão dos precatórios?

Nelson Lacerda —O que a PEC diz é que o leilão segue a característica inversa, porque terá o precatório pago aquele que aceitar receber menos. E o leilão é obrigatório. Como o credor já espera há 20 anos para receber o dinheiro, acaba aceitando a menor oferta. É uma armadilha jurídica.

ConJur — Mas o credor receberia menos do que consegue no mercado?

Nelson Lacerda —Certamente. Hoje, o credor negocia o precatório no mercado por 25%, com a tendência de crescer. E, por isso, a adesão de empresas, tanto na garantia quanto na compensação, é muito grande. Com a PEC 12, se for aprovado o leilão de precatórios pelo governo, ele não vai conseguir esse valor nem de perto. Isso é um jogo maquiavélico. O caloteiro irá leiloar seus próprios cheques sem fundos e irá pagar apenas para aqueles que aceitarem receber menos. Se a proposta ao menos abrisse o leilão para o mercado, o precatório poderia sair por um bom preço. Mas os governos querem abrir o leilão apenas para que eles comprem e consigam pagar valores insignificantes.

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