Fim do sigilo

Acesso irrestrito da PF a dados telefônicos é criticado

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3 de agosto de 2008, 18h57

“É verdade que o livre bisbilhotar da vida das pessoas facilita a investigação penal, mas essa mesma tese é usada por aqueles que admitem a tortura como método válido para obter a confissão de um crime.” A frase é do presidente nacional da OAB, Cezar Britto, sobre o fato de a Polícia Federal ter obtido, na Operação Satiagraha, ordem judicial para acessar o cadastro completo e monitorar o registro de ligações de qualquer assinante das operadoras telefônicas.

A informação foi publicada neste domingo (3/8), pela Folha de S.Paulo. De acordo com o jornal, o delegado Protógenes Queiroz e sua equipe, no comando da operação que investiga Daniel Dantas, obtiveram ordem da Justiça que permite o mapeamento de todas as chamadas feitas e recebidas por investigados e por pessoas que liguem para um deles. Como as senhas recebidas pelos policiais para acessar os dados não têm restrição de uso, em tese, eles podem mapear as ligações de qualquer cidadão. A decisão não permite acesso ao conteúdo de conversas.

De acordo com a Folha, nas decisões da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo sobre interceptações na Satiagraha, fica claro o uso das senhas nas empresas de telefonia. “Tal [o fornecimento de senhas] destina-se ao acesso às informações de banco de dados das concessionárias de telefonia possibilitando-lhes o seguinte: i) consulta aos cadastros completos de assinantes e usuários, através de pesquisas por nome, CPF ou CNPJ e/ou número de linha e IMEI [dados e voz pela Internet] de eventuais investigados; ii) consulta ao histórico de chamadas, abrangendo essas linhas interceptadas e aquelas que se comunicarem com esses números”, informa o despacho do juiz Márcio Rached Millani, substituto do juiz Fausto Martin De Sanctis.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Cezar Britto afirmou que a notícia revela que chegou a hora de “reconhecer a autoridade da Constituição Federal sobre a autoridade das pessoas que dizem aplicar a Constituição”.

O presidente da OAB afirmou que qualquer autorização judicial que permite bisbilhotar livremente a vida das pessoas é ilegal: “E a regra do sigilo dos dados vale para todos, independentemente de ser rico ou pobre”. Britto ressaltou que se o cidadão deve obediência à lei, o Estado deve ainda mais, “porque dispõe de instrumentos de força para impor a sua vontade”.

Para o criminalista Luís Guilherme Vieira, não há justificativa para atropelar garantias constitucionais. O advogado entende que esse tipo de procedimento viola os incisos 10 e 12, do artigo 5º da Constituição Federal, que dispõem sobre direito à intimidade e sigilo de comunicação e dados.

O anteprojeto que deu origem ao Projeto de Lei 3.272/08, que trata das interceptações telefônicas, previa que os dados cadastrais só poderiam ser fornecidos ao Ministério Público ou à Polícia se fossem relativos aos investigados para fins de autorização para interceptação do número. O projeto atual do governo não especifica o assunto.

O advogado Luís Guilherme disse que as operadoras vinham negando o fornecimento de dados cadastrais e estão sendo processadas por isso. O advogado David Rechulski, que advoga para operadoras de telefonia, corrobora a afirmação.

Rechulski também diz que as chances de as empresas cumprirem ordens genéricas como esta é mínima. Segundo ele, as operadoras têm se insurgido contra ordens que violem privacidade e o sigilo. Rechulski considera a ordem “insensata”, diz que ela implica nitidamente em violação de sigilo e que é, até tecnicamente, difícil de cumprir. “Mais uma vez, os fins estão justificando os meios.”

Sem comentar o caso concreto, o juiz estadual Rubens Casara, do Rio de Janeiro, afirmou que a decisão de entregar uma senha que permita à polícia ter acesso a dados de pessoas que sequer são investigadas é absurda. “Faz letra morta da legislação”, afirma.

Casara lembrou que, no Direito, os fins não justificam os meios. “Não se pode, a pretexto de combater a ilegalidade, violar garantias constitucionais”, afirma. Para ele, não se discute a finalidade que se busca com tal medida, pois, ainda que a pessoa esteja com as melhores intenções, é inadmissível tal atitude, principalmente por agentes públicos.

O presidente da seccional paulista da OAB, Luiz Flávio Borges D’Urso, diz que o acesso a qualquer comunicação telefônica, seja ao seu conteúdo, seja ao seu simples registro, é preciso ordem judicial expressa e específica. “Dar uma carta branca à Polícia contraria toda a legislação sobre o tema”, disse.

Para o advogado Sérgio Niemeyer, seguido o raciocínio da Polícia, se o investigado liga para um médico porque está passando mal, esse médico passa a ser suspeito de dar guarida a um criminoso. “Ou seja, o investigado perde o direito à saúde e o médico o direito ao sigilo telefônico e ao exercício da sua profissão”, afirma. Niemeyer alerta que a ilegalidade se torna dupla no caso de um desses cidadãos que têm seus dados abertos e mapeados deter prerrogativa de foro, porque a ordem de um juiz de primeira instância não poderia abrir seus dados sigilosos.

O advogado ataca, ainda, o argumento de que o interesse coletivo, nestes casos, tem de prevalecer sobre o interesse individual. “No pacto constitucional, foram os indivíduos que estabeleceram os limites do Estado. Então, o discurso de que o interesse público prevalece sobre o interesse individual é equivocado, porque os interesses individuais servem exatamente para garantir os limites estatais frente ao interesse público.”

Alexandre Wunderlich, advogado e coordenador do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da PUC-RS, afirmou que a reportagem da Folha revelou e tornou público ao país o que já se suspeitava: “Há um evidente excesso no uso das interceptações telefônicas e um ‘acesso irrestrito’ que não tem previsão legal. Isto é uma ilegalidade gritante fruto do Estado de Polícia em que vivemos, que ganha força quando existem alguns juízes que deixam de ser garantidores da Constituição e passam a ser ativistas no ‘combate’ ao crime a qualquer custo.”

Por muito menos, a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro sofreu diversos ataques quando baixou uma resolução que obriga os juízes a preencher um cadastro relativo às autorizações para interceptação telefônica. O objetivo, segundo o desembargador Luiz Zveiter, é controlar o volume de autorizações e impedir que ‘outros’ telefones sejam incluídos sem que o juiz saiba, de fato, quem, além do investigado, tem suas conversas monitoradas.

A iniciativa causou polêmica. O ponto divergente é de que o controle violaria o sigilo do investigado. Isso porque o sistema permite que o juiz saiba se determinado número é monitorado por ordem judicial, ainda que não seja a sua própria decisão. Para o juiz Casara, que considera o controle inconstitucional, o caso em questão, no qual a PF entraria no banco de dados das operadoras, é uma violação muito mais grave do que o controle da corregedoria do TJ fluminense.

O presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Fernando Mattos, disse que só se manifestará depois de tomar conhecimento da decisão citada na reportagem da Folha.

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