Dossiê FHC

Sigilo de documentos nunca é absoluto

Autor

  • Hugo Nigro Mazzilli

    é procurador de Justiça aposentado advogado professor emérito da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo Consultor Jurídico e autor de diversos livros.

30 de abril de 2008, 0h00

Agora que a Polícia Federal está investigando a divulgação de informações sigilosas referentes a despesas do governo anterior (uso de cartões corporativos etc), algumas autoridades têm procurado fazer crer que as investigações deveriam limitar-se ao vazamento das informações para o público, mas não poderiam atingir os que confeccionaram ou mandaram confeccionar o chamado dossiê FHC.

Para esses, a fórmula seria simples: o crime de violação do sigilo estaria no vazamento das informações; não seria ilícito apenas formar um “banco de dados”, destinado a comparar despesas do governo anterior com o atual.

Vejamos se a questão é assim simples, ou se como foi colocada está vista de uma maneira simplória. Sabemos que a regra na Administração é a publicidade, princípio basilar estabelecido no artigo 37, caput, da Constituição Federal. Entretanto, se da publicidade da informação puder resultar prejuízo para a coletividade ou para o Estado, ou dano indevido a pessoas, a lei torna sigilosa a informação.

Assim, a Constituição manda punir a violação à intimidade, à vida privada, à imagem das pessoas (artigo 5º, X); impõe sigilo na correspondência e nas comunicações telegráficas, de dados e telefônicas (artigo 5º, XII); assegura sigilo de fonte (artigo 5º, XIV); proíbe divulgação de informações que interessem à segurança da sociedade e do Estado (artigo 5º, XXXIII); garante sigilo em algumas votações (artigos 5º, XXXVIII, e 14); veda a divulgação de atos processuais para a defesa da intimidade ou do interesse social (artigo 5º, LX).

Podemos dividir em dois grandes grupos as hipóteses de sigilo legal:

• o das informações objetivamente sigilosas (que envolvam matérias especiais, como a segurança nacional);

• o das informações subjetivamente sigilosas (que sejam instituídas em favor de pessoas determinadas, como a informação do médico, do confessor, do estabelecimento bancário, em benefício do paciente, do correntista). Neste último caso, a informação pode ser fornecida se houver a concordância do beneficiário do direito ao sigilo, ou se a informação estiver sendo requisitada em seu benefício. Assim, seria absurdo que um médico sujeito a investigação criminal objetasse, em sua defesa, o sigilo profissional, quando o objeto da investigação fosse saber se ele cometeu ou não erro profissional em prejuízo do seu próprio paciente.

Em suma, o sigilo pode ser imposto, na forma da lei:

• por interesse público fundado na segurança da sociedade ou do Estado;

• por conveniência de investigação promovida por autoridade pública;

• em respeito à imagem ou à privacidade das pessoas;

• para a proteção de interesses que a lei repute relevantes, como o sigilo comercial ou industrial.

Pode convir à coletividade que certas pessoas ou autoridades tenham acesso à informação, como na quebra do sigilo médico, de correspondência ou de comunicações telefônicas e telegráficas. Por vezes o sigilo é quase absoluto e sua quebra só pode ocorrer sob estado de defesa ou de sítio; noutras vezes, como o sigilo das comunicações telefônicas, só se admite sua quebra por ordem judicial, e ainda assim somente para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Tanto o sigilo profissional, como o sigilo funcional, só podem, pois, ser quebrados nas hipóteses autorizadas pela própria lei. Por vezes a lei permite ou até mesmo exige a revelação do segredo (como a denúncia pelo médico de doença de notificação compulsória, ou as informações do Fisco e dos bancos quando regularmente requisitadas pelo Judiciário).

Voltemos ao dossiê FHC. Se a lei, ainda que por critérios duvidosos, considera gastos do gabinete do presidente da República como matéria de segurança nacional, a quebra desse sigilo, feita por funcionário público, será considerada não só um crime funcional (artigo 325 do Código Penal), como também um ato de improbidade administrativa (artigo 11, III, da Lei 8.429/92), ou seja, um comportamento passível não só de sanções penais como civis.

Qual seria a situação da autoridade que mande colher dados sigilosos de governo anterior, para com eles montar um dossiê? A lei garante a algumas autoridades o acesso às informações sigilosas, mas apenas e tão-somente quando isso sirva ao interesse público. Assim, o juiz, para julgar uma ação de divórcio, deverá necessariamente ter acesso aos depoimentos colhidos em audiência, mesmo que a prova envolva fatos que em sigilo devam ser mantidos, para o devido respeito à privacidade e à intimidade das pessoas. Mas o juiz não tem acesso à informação sigilosa para fins privados ou pessoais; assim, o juiz prevaricará, se não cometer crime ainda mais grave, se acessar informações sigilosas para fim outro que não o exercício da jurisdição, isto é, se acessar processos sigilosos que corram em sua vara, não para julgá-los, mas para colher informações sobre seus desafetos, ou para comparar situações alheias com a sua, ou para facilitar que subordinados seus possam divulgar essas informações em prejuízo de seus desafetos, até porque quebra de sigilo não é apenas a revelação ou a divulgação, mas também a facilitação da revelação do fato sigiloso (artigo 325 do Cód. Penal).

Autoridade alguma poderá não apenas divulgar, mas até mesmo acessar informação a que a lei impôs sigilo, para fins outros que não o correto exercício da função pública.

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