Abuso das algemas

Juiz deve velar para preservar dignidade de acusado

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25 de abril de 2008, 19h48

O indiscriminado uso, pela imprensa em geral, da imagem das pessoas é hoje uma rotina que acompanha, inclusive, o enorme desprezo gerado uniformemente contra o direito à própria imagem e, assemelhadamente, à intimidade. A proteção a tais prerrogativas é constitucional, sendo desnecessário especificá-la.

Entretanto, o abuso na exposição das pessoas à coletividade alcança, agora, características horripilantes, começando nas fotografias despudoradamente mostradas nos matutinos e terminando nos elevadores de condomínios e dependências de edifícios, públicos ou não. Há câmeras filmadoras cujas captações constituem, muitas vezes, as delícias de síndicos de prédios de apartamentos. Estes, tendo pouco a fazer, passam dias e noites abroquelados nos receptores domésticos que violentam a privacidade dos moradores.

Não se surpreenda o leitor, portanto, com contágio recíproco entre o espiolhador das intimidades, o órgão de imprensa que as divulga e a autoridade, policial ou judicial pouco importa, que a determina ou as põe desvestidas, com ou sem permissão a tanto.

O preâmbulo tem ligação estreita com a continuação injustificada do emprego de algemas pela Polícia Federal ao executar a captura de um ou outro investigado nas operações que recebem nomes estapafúrdios. Aconteceu recentissimamente episódio igual, vendo-se investigando primário, com domicílio fixo e bons antecedentes sociais, sendo conduzido por agentes ao cárcere, buscando, infrutiferamente esconder os pulsos, tolhidos pelos aviltantes braceletes de aço sob o tecido de uma camiseta qualquer.

Já se disse, já se afirmou na jurisprudência da suprema corte, já se doutrinou, enfim, que o emprego de algemas e o uso da força devem ser condicionados à necessidade da contenção do preso, tudo ligado, obviamente, às razões e circunstâncias da captura, mais periculosidade do aprisionado. A par disso, os atos de aprisionamento devem ser acompanhados da discrição adequada, evitando-se a divulgação desordenada que pode levar a autoridade executora, mais tarde, a ser responsabilizada por danos morais e materiais, porque o suspeito de hoje pode ser o inocente de amanhã, mantendo, inclusive, o estado de inocência que constitui o cerne de toda a processualística penal brasileira.

Bem o disse, a seu tempo, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, acentuando cuidar-se de questão delicadíssima (“Emprego de Algemas, notas em prol de sua regulamentação”, Jornal do Advogado, outubro de 1984, página 09). Afirmava Pitombo: “Só se justifica o emprego de algemas, e portanto da força, no usar dos meios necessários para sujeitar o preso resistente, ou lhe fossem levadas avante”. Dizia mais, referindo-se a Antônio de Paula: “São pois criminosos todos os atos de violência desnecessários cometidos contra o preso que se submete à ordem de prisão, mesmo contra aquele que, havendo resistido, foi afinal submetido, e constituem requintes de desumanidade e covardia as agressões, os insultos, esbordoamento, as bofetadas praticados contra o preso que, afinal, se submeteu”.

Viu-se, nos atos de coerção física criticados há pouco, um duplo comportamento absolutamente afastado de qualquer conveniência ou necessidade: o capturado, criatura em princípio inocente independentemente das imputações possíveis, prováveis ou em desenvolvimento, foi exposto à visitação pública enquanto algemado, numa clara, prévia e voluntária demonstração de que o preso poderia, e mais que isso, deveria ser filmado e fotografado naquela posição vergonhosa.

A conduta dos executores, autorizados a prender, mas não a execrar, é clara ofensa a repetidas decisões da suprema corte brasileira, agora vigiando denodadamente os meios espúrios de prova, destacando-se as peçonhentas interceptações telefônicas e ou gravações ambientais. Tem-se a impressão, inclusive, de que parte do Poder Judiciário nacional desafia abertamente o órgão maior da jurisdição brasileira, à maneira do filho que, embora sabendo que está a praticar uma falta, dá um brado de independência mesmo enquanto, adolescente ainda, precisa curvar-se à sabedoria, ao poder de império e à decisão paterna.

Aqui, embora não normativamente, o Supremo Tribunal Federal tem disciplinado, dentro de termos razoáveis, a atividade daqueles que se põem abaixo. A rebeldia, a demonstração de resistência e a clara divulgação de tais reações caracterizam apartamento que insulta o Estado do Direito.

Não é preciso escrever mais. Há, é óbvio, limites na insurreição. As agressões àquela linha de conduta traçada pelo Supremo Tribunal Federal tinham, até certo tempo, um condão meio disfarçado, misturado numa discrição bem definida. No presente momento histórico, recrudesce a violência, demarcada explosiva e publicamente pelos órgãos de divulgação que, diga-se de passagem, apenas recolhem avidamente o alimento que lhes oferecem os intermediários do envergonhamento previamente estabelecido.

No fim de tudo, as advertências de toda a doutrina caem no vazio. As jurisprudências corretoras de excessos são deixadas ao léu. Apenas a título de exemplo, anote-se acórdão prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma, com a seguinte ementa: “Penal. Réu. Uso de algemas. Avaliação da necessidade. A imposição do uso de algemas ao réu, por constituir afetação aos princípios de respeito à integridade física e moral do cidadão, deve ser aferida de modo cauteloso e diante de elementos concretos que demonstrem a periculosidade do acusado. Recurso provido. Por unanimidade deram provimento ao recurso (RHC 5.663/SP, Relator Ministro William Patterson, 6.ª Turma, J. 19/08/1996)”.

Por enquanto, basta a decisão explicitatória posta no texto. Diga-se, a bem da verdade: pior que o emprego dos ferros nos pulsos do encarcerado é a obrigação, a ele imposta, de exibir a face à curiosidade cúpida da comunidade. Lembro-me de ter lido, certa vez, crônica respeitante a determinada tribo do Amazonas. Algumas índias foram pegas nuas, banhando-se no rio. Não esconderam dos mateiros as partes pudendas. Protegeram as faces com as mãos. O pior resultado da amarração das mãos do algemado, algumas vezes às costas, é a proibição a que escondam a identidade física.

Por tais razões, quem sabe, guilhotinava-se o condenado, ou, pela espada, se cortava a cabeça do torturado, espetando-a à beira da estrada. Continuamos a agir da mesma forma, em sentido figurado. Matamos o homem antes de ser a hora de ser morto. Destruímos seu futuro, sua dignidade, sua família, sua possibilidade de defesa eficaz. Salgamos seu solo e lhe cobrimos a cabeça com as cinzas da execração. Fazemos tudo em nome da Justiça e por ordem de um juiz, tudo antes do processo e da sentença condenatória transitada em julgado.

Aqui, é desimportante a existência de suspeitas contra o investigado. Se deve ser submetido à nefanda prisão temporária, herança de um tempo que se julgava ultrapassado, que o seja, mas o magistrado precisa velar para que o suspeito tenha sua dignidade preservada. Se o juiz age de forma diferente, permitindo a conseqüência deletéria, agiu mal. Se não previu o abuso cometido na execução de seu mandado, deveria tê-lo previsto. E se quis que o esquartejamento moral do preso acontecesse, comportou-se de forma absolutamente desviada do regular exercício da jurisdição. Qualquer das três hipóteses merece avaliação a tempo certo.

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