Judicialização da política

Gilmar rebate críticas ao ativismo do STF em matéria política

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24 de abril de 2008, 20h47

O presidente do Supremo Tribunal Federal ministro Gilmar Mendes, voltou a falar, nesta quinta-feira (24/4), sobre as críticas de que o tribunal seria ativista em matérias do Legislativo. “Muitas vezes temos a tendência de criticar a atividade política e dizer que ela é muito lenta. É muito lenta porque é complexa. É difícil produzir o consenso. Mas quando perde um critério de razoabilidade, muito provavelmente vamos ser demandados e o Tribunal poderá se pronunciar”, disse.

Ele lembrou do julgamento no Supremo que determinou a aplicação da lei de greve do setor privado ao serviço público. O funcionalismo público já esperava há quase 20 anos regras para exercer o direito de greve assegurado pela Constituição. “Parece-me razoável que o Tribunal decida esse tema. O Tribunal mandou aplicar a lei de greve existente. Respeitou a decisão do Congresso Nacional e confiou ao Judiciário a adaptação dessa lei para casos concretos. O Tribunal não fez, ele próprio, uma lei, mas aproveitou o trabalho já existente”, lembrou.

Com a decisão do STF, tomada em outubro do ano passado, a greve no serviço público será regida pelas regras que gerem as paralisações na iniciativa privada até que venha a lei específica do Congresso Nacional. O ministro afirmou, ainda, que a realização direitos de caráter positivo, passa, em primeiro lugar, pelo próprio Congresso e pelo Executivo. “O Tribunal não tem que necessariamente ser o primeiro a dar resposta. É nesse sentido que precisamos redimensionar o nosso padrão mental para não imaginar que para tudo existe uma resposta na farmacologia judiciária.”

O ministro fez uma analogia entre o caso do direito de greve e a questão da fidelidade partidária também delimitada recentemente pelo Supremo e pelo Superior Tribunal Eleitoral. O Supremo, segundo o ministro, fez uma ponderação e entendeu que o modelo democrático estava sendo comprometido com este processo que se tornara comum, quase que natural, de pessoas mudarem seqüencialmente de partido.

“Vimos que alguns parlamentares mudavam de três a cinco vezes na mesma legislatura. Isso levava a uma distorção na relação entre governo e oposição”, afirmou. “Qual a conseqüência disso para a democracia? É a distorção do próprio resultado eleitoral. Foi essa a avaliação que o Tribunal fez. Entendeu que o principio democrático estava sendo comprometido”, completou.

De acordo com o presidente do Supremo, o tribunal viu nas constantes mudanças de partido um risco para o modelo democrático e entendeu que era preciso se pronunciar, especialmente diante “de uma reforma política frustrada”. As declarações foram dadas por Gilmar em sua primeira entrevista coletiva à imprensa na presidência do Supremo.

Na ocasião, ele falou de outros assuntos como o excesso de edição de Medidas Provisórias pelo Poder Executivo e a demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol, e adiantou que o Supremo deve retomar em maio o julgamento sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias. A votação, suspensa em março por um pedido de vista do ministro Menezes Direito.

“Eu tenho a expectativa que ainda em maio nós retomemos esse julgamento e esperamos, então, concluí-lo ainda nesse semestre. Essa é a justa expectativa. Todos estão nessa grande ansiedade com a definição desse tema e é justo que nós tenhamos condição de dar a resposta com as devidas cautelas”, disse.

Leia a íntegra da entrevista coletiva:

No discurso de posse, o senhor cobrou firmeza das autoridades no trato com os movimentos sociais. Eu queria que o senhor falasse mais sobre isso, porque, pelo que a sociedade conhece, esses movimentos se resumem ao MST. Era sobre isso que o senhor estava falando?

Gilmar Mendes: Na verdade, sobre qualquer tipo de movimento – seja ele de direita, de esquerda ou de centro – quando afeta os direitos alheios. Recentemente houve, por exemplo, a invasão da Universidade de Brasília, da reitoria, e se perguntou se isso era correto como protesto. Tenho a impressão que como protesto sim. Agora, impedir o funcionamento da reitoria, eu disse inclusive numa entrevista à [revista] Veja, que não me parecia correto. E falo isso com a autoridade de professor da Universidade de Brasília. Isso vale para qualquer movimento. Se se trata de invasão de propriedade, se se trata de destruição de bens, se se trata de impedimento de afazeres de órgãos públicos, me parece que já ultrapassou os limites que a Constituição estabelece. E aí a Constituição dispõe dos instrumentos adequados, cabe ao Judiciário fazer valer aqui a sua autoridade.

Gostaria que o senhor falasse um pouco a respeito da expectativa para o julgamento da questão das pesquisas com células-tronco embrionárias.

Gilmar Mendes: Bem, quanto às células-tronco embrionárias, eu tenho a expectativa que ainda em maio nós retomemos esse julgamento e esperamos, então, conclui-lo ainda neste semestre. Essa é a justa expectativa. Todos estão nessa grande ansiedade com a definição desse tema e é justo que nós tenhamos condição de dar a resposta com as devidas cautelas.


No último encontro de cortes supremas do Mercosul falou-se da livre circulação de decisões judiciais como uma forma de ajudar no combate ao crime organizado. O senhor acha que os países estão preparados para adotar essa livre circulação de decisões judiciais, e como vai ser a decisão do senhor nessa tentativa de aproximação dos Judiciários dos países?

Gilmar Mendes: Eu procurei dar uma palavra ontem sobre esse tema dizendo que nós temos que estar abertos não só para o Mercosul, mas para a América Latina como um todo. O mundo trabalha hoje nessa idéia de blocos. Alguns que divisam, que sobrarão, no futuro – pelo menos como blocos ou como países representativos em termos econômicos – quatro ou cinco blocos específicos, nos quais nós nos incluímos, o Brasil pelo menos como eventual líder de um desses blocos. Nós temos que estar atentos a esse desenvolvimento e, claro, devemos trabalhar tanto quanto possível nessa integração. Todos sabem que nós adotamos no Mercosul um modelo bastante tímido no que concerne à idéia de supranacionalidade, o que para alguns tem restringido excessivamente o progresso institucional do próprio bloco. Temos de ter abertura nesse sentido, uma cooperação mais intensa.

Na área criminal certamente deveríamos intensificar essa relação. Na Europa já se fala no mandado de prisão europeu, poderíamos discutir isso de maneira muito mais franca e muito mais aberta. O Supremo está discutindo agora uma questão bastante sensível, a prisão civil por dívida do depositário infiel, que introduz o tema importante da relação dos tratados dos direitos humanos com o direito ordinário. Muito provavelmente em seguida nós teremos uma discussão, salvo engano eu sou o relator, um processo que está em pauta e que envolve o tratado tributário em relação ao direito ordinário. É possível que daqui a pouco nós nos coloquemos também diante do debate ‘tratado em relação ao direito ordinário como gênero’, e a partir daí talvez possamos fazer progresso. Mas, os senhores percebem que eu tenho a maior abertura, o maior desarmamento de espírito, eu acho que nós temos que avançar nesse sentido e incentivar essa cooperação em todos os níveis no plano internacional em geral, mas, sobretudo, no âmbito da América do Sul e da América Latina.

Em seu discurso, o senhor falou sobre a necessidade de busca de um equilíbrio institucional. E o Supremo está discutindo a questão das edições em excesso de Medidas Provisórias. Qual deve ser a melhor maneira de buscar esse equilíbrio institucional?

Gilmar Mendes: Em relação à Medida Provisória, vocês sabem que eu falo com insuspeita autoridade. Eu fui assessor do governo Fernando Henrique, e uma das coisas que o senhores sabem também, isso faz parte do meu modo de atuar, eu não vivo fazendo retificação de biografia. Eu fui sub-chefe da Casa Civil na época em que o governo editava continuadamente Medidas Provisórias. Participei do grupo que insistia em estabelecer uma auto-limitação, o que era extremamente difícil, porque é muito difícil entender essa mecânica, que não está escrito em lugar nenhum. Mas não era assim na época e não é assim agora. Não é o presidente da República que voluntariamente diz assim: ‘Ah, eu acordei com vontade de fazer uma medida provisória’, e faz medida provisória. Isso é trabalhado no âmbito dos ministérios e os ministérios levam essa proposta ao presidente. E os ministérios têm pesos específicos. Se o ministro da Fazenda diz que uma medida assume uma dada gravidade, é muito provável que o presidente opte por fazer essa edição. Então aconteceu isso no passado e acontece isso agora, para dar um exemplo singelo. O Supremo fez várias censuras às Medidas Provisórias, mesmo em questões de urgência. E o Congresso caminhou para essa solução consensual junto com o Executivo, e criou esse novo modelo constante da Emenda Constitucional 32/2001. Em geral, é um modelo bastante positivo, porque fixa o limite de 120 dias para a vigência das Medidas Provisórias, e portanto, já produz alguma segurança jurídica. Criou um limite material. Quais são as matérias passíveis de serem objeto de Medida Provisória. Também isso é um dado importante. Em contrapartida, se estabeleceu o trancamento de pauta. E aqui que nós temos o grave problema hoje da Medida Provisória. Porque editadas as Medidas Provisórias em um número razoável, podemos ter um trancamento seguido de pauta no Congresso Nacional. E o Congresso perde o domínio sobre sua própria agenda. Quem acompanha o STF já viu uma situação inusitada, que foi o presidente da República editar uma Medida Provisória, creio que foi naquela crise da CPMF, para destrancar a pauta do Congresso. E nós admitimos em nome da governabilidade e da funcionalidade, inclusive meu voto foi específico neste sentido. Mas o que aconteceu em seguida? Tempos depois, o presidente acabou por reeditar uma Medida Provisória com o teor idêntico àquela. E nós dissemos não, porque estava se voltando ao modelo de reedição que a Emenda 32 pretendeu evitar. Me parece que a questão passa ou pela redução do número de Medidas Provisórias, que nós vamos continuar com o modelo de trancamento de pauta. Tanto é que eu cheguei a mencionar, e depois vim a saber, que já há outras propostas em tramitação no Congresso Nacional, a necessidade de limitar a um número, talvez 12 por ano. Mas eu também não sou muito seguro quanto a isso porque pode-se entrar em um quadro de crise econômica, financeira, que demande uma exceção para esse número. Outros parlamentares propuseram uma fórmula de três medidas tão somente tramitando naquele momento, não mais do que isso. Seria um outro bloqueio. Alguns estão propondo simplesmente a supressão do trancamento de pauta, que leva a outro problema. É a indefinição do Congresso. Não vamos fingir que o problema seja exclusivo da responsabilidade do Executivo. Há uma crise do processo decisório. Isso é de responsabilidade do Congresso. É preciso que se encontre essa equação. E aí cabe ao Congresso, com a intervenção do poder Executivo, fazer essa recompreeensão do instituto. O que nós estamos a fazer é esse exercício de alternativas político-jurídicas para que se possa chegar a um bom termo. Uma boa idéia, do ponto de vista jurídico, pode não passar no teste político. Quem tem alguma experiência nesse cenário, sabe disso. Então, temos que produzir alternativas para que se chegue a uma combinação de fórmulas e ao resultado que permita resolver esse impasse que está se desenhando a partir do número elevado de Medidas Provisórias, com o trancamento de pautas, que é a conseqüência se não há decisão em um prazo razoável.


Qual o papel do Supremo nesse processo? E, na opinião do senhor, quais devem ser os papéis do Legislativo e do Executivo?

Gilmar Mendes: Eu tenho a impressão de que o Supremo Tribunal Federal tem uma missão muito importante em relação aos direitos fundamentais, às liberdades públicas, a que nós chamamos de direito de caráter negativo — a proteção que o Tribunal pode dar no Habeas Corpus, no mandado de segurança, e nas ações diretas [de inconstitucionalidade] em geral. E também tem uma missão importante no que concerne aos direitos de perfil positivo. O mandado de injunção é um dos exemplos. A realização especialmente desses direitos de caráter positivo, passa, em primeiro lugar, pelo próprio Congresso. Direito de moradia, por exemplo, pode ser resolvido com a participação do Estado de forma direta, construindo casa, incentivando financiamento. Pode ser configurado com o incentivo à construção de imóveis pela atividade privada. Ou podemos combinar essa alternativas tendo em vista peculiaridades regionais. Então, o Tribunal não tem que necessariamente ser o primeiro a dar resposta a essa questão, inicialmente do próprio legislador – aqui entendido também o Executivo, que é gestor de recursos públicos. É nesse sentido que precisamos redimensionar o nosso padrão mental para não imaginar que para tudo existe uma resposta na farmacologia judiciária. É preciso que tenhamos aqui uma certa humildade. Vemos essas questões como questões complexas.

Os senhores podem me dizer: mas há casos que o Legislativo fica inerte por anos a fio! Um tema que foi objeto de decisão recente do STF: o Mandado de Injunção sobre a greve. Aí parece-me razoável que o Tribunal decida esse tema. O Tribunal optou por um modelo minimalista. O que o Tribunal fez: mandou aplicar a lei de greve existente. Portanto, respeitou a decisão do Congresso Nacional e confiou ao judiciário a adaptação dessa lei para casos concretos. O Tribunal não fez, ele próprio, uma lei, mas aproveitou o trabalho já existente. E disse: até que venha a lei do Congresso Nacional, vingue a lei que era aplicável à greve dos serviços privados.

Muitas vezes temos a tendência de criticar a atividade política e dizer que ela é muito lenta. É muito lenta porque é complexa. É difícil produzir o consenso. O fato de ser lenta não significa que seja errada. Muitas vezes é lenta porque necessita de maior exame. Mas quando perde um critério de razoabilidade, muito provavelmente vamos ser demandados e o Tribunal poderá se pronunciar. E vão surgir alguns tipos de tensão, de que o Tribunal está sendo excessivamente ativista nessa matéria ou em outra – como no tema da fidelidade partidária.

Como o senhor pretende lidar com essa tensão criada nesses casos como da fidelidade partidária?

Gilmar Mendes: As situações são um pouco diversas, mas há algum tempo o país experimenta o debate da reforma política. Esse debate vinha sendo desenhado, mas por razões que nós conhecemos, acabou por não sair. Essa reforma política tinha como elemento central dar maior densidade programática e consistência aos partidos. O Tribunal já fora um pouco crítico do quadro de infidelidade partidária quando decidiu o tema em 1989. Os senhores devem se lembrar, quatro votos, dentre os quais o do ministro Celso de Mello, se pronunciaram no sentido de que a fidelidade partidária continuava a estar prevista no direito constitucional e deveria dar ensejo apenas à perda do mandato. Ao longo de todos esses anos passou a acontecer uma prática de cooptação. As eleições se realizavam de forma aberta em um sistema pluripartidário. Mas, encerrado o processo eleitoral, logo após a diplomação começava o fenômeno de cooptação. Qual a conseqüência disso para a democracia? É a distorção do próprio resultado eleitoral. Foi essa a avaliação que o Tribunal fez. Entendeu que o principio democrático estava sendo comprometido e fez uma rescisão de sua própria jurisprudência. E acabou por produzir também uma sentença de perfil aditivo ao dizer que enquanto o Congresso Nacional não regular o procedimento de perda de mandato, valerão as resoluções estabelecidas pelo Tribunal Superior Eleitoral. O Supremo fez uma ponderação e entendeu que o modelo democrático estava sendo comprometido com este processo que se tornara comum, quase que natural, de pessoas mudarem seqüencialmente de partido. Vimos que alguns parlamentares mudavam de três a cinco vezes na mesma legislatura. Isso levava a uma distorção na relação entre governo e oposição. Governadores de Estados que não tiveram um grande apoio nos municípios, no dia seguinte à eleição, conseguiam fazer uma cooptação. Isso produz uma distorção no sistema democrático. O Tribunal viu nisso um risco para o modelo democrático e entendeu que era preciso se pronunciar, especialmente diante de uma reforma política frustrada. Portanto, embora os casos não sejam perfeitamente análogos, aqui cabe uma analogia entre o caso do direito de greve e da fidelidade partidária.


Sobre os movimentos sociais: o senhor avalia que falta um pulso firme das autoridades.

Gilmar Mendes: Eu tenho a impressão de que, quanto à regra do estado de Direito, isto não está à disposição da autoridade. Se alguém invade um prédio, ele faz algo de indevido, impedindo o funcionamento de uma repartição. Se isso esteve, em algum momento, no quadro da normalidade, é porque nós incorporamos o patológico na nossa mente. Eu não posso ter uma repartição pública impedida de funcionar, nem sequer por um dia.

Essa foi a minha atitude, inclusive, como advogado-geral da União. Em nome de qualquer causa, parece que aí há um símbolo de autoridade. Seja meio ambiente, reforma agrária, ou uma causa divina. Em relação a isso, não há empate sequer para decidir se vai fazê-lo ou não. Eu participei de discussões no Congresso, eu conheço bem tudo isso. Claro, uma propriedade invadida, uma invasão coletiva, exige meios e modos específicos — houve até decisão do Congresso neste sentido — acompanhamento de juiz, nós vivemos o problema de Eldorado de Carajás. Agora, é preciso que as regras básicas sejam observadas. Protesto é absolutamente natural, democracia se faz assim. Agora, não pode haver comprometimento de serviços públicos, não pode haver lesão a direito de outrem. Isso é elementar do sistema, basta olhar o artigo 5º [da Constituição], não estou falando nenhuma novidade. Então a autoridade de segurança pública, responsável pelo funcionamento de um determinado órgão, deve agir com essas premissas. E se houver dúvida, o juiz não pode ter nenhuma dúvida quanto a isso: autorizar a desobstrução de áreas, autorizar a preservação do estado de Direito. Estado de Direito é por definição, aquilo pelo qual não existem soberanos. Se alguém pode fazer o que quer, de forma absoluta em um modelo, ele se tornou soberano. Nós não temos mais estado de Direito. Então, só para que tenhamos um parâmetro e uma reflexão.

O senhor comentou que existe um entendimento da população de levar todas as disputas para o poder Judiciário. Como isso poderia ser alterado?

Gilmar Mendes: Esse é até um dado importante do nosso estágio cultural. Os senhores sabem que nós saímos de um modelo, antes de 88, fortemente autoritário, havia até medo de se entrar com ação judicial. Então nós devemos saudar esse elemento. Quando começamos a pensar nos JEF, estimávamos que haveria em torno de 200 mil processos no JEF, que eram os processos que estavam nas Varas de Previdência Social. Pois esse número ultrapassou já a marca de 3 ou 4 milhões de processos. Hoje nós temos mais processos no JEF do que na justiça federal como um todo. Isso fala da demanda reprimida, ou da estatística recôndita. As pessoas descobriram que era mais interessante litigar, era possível litigar. Os JEF trouxeram, então, algo de positivo — a democratização do acesso ao Judiciário. Pessoas que até então não imaginavam poder ir ao Judiciário passaram a ir porque agora não precisavam mais de advogado, porque tinha um rito simples, porque passaram a não ter medo de ir ao judiciário, muito dos nossos prédios acho que colocam medo nas pessoas. Agora, se eu vou para o juizado especial, eu tenho uma outra visão desse modelo. Essas pessoas passaram a pedir pagamento sem precatório – uma vantagem enorme. Causas que demoravam seis ou oito anos, agora passam a demorar seis ou oito meses. Então, tudo isso levou a esse resultado. Se os senhores olharem de uma outra perspectiva, a maior repartição, talvez, da Previdência Social no Brasil, hoje, é o JEF. Porque a própria Previdência Social, nesses casos já pacíficos, não assume diretamente essa orientação, e aplica o direito, dispensando essas pessoas de terem que recorrer ao Judiciário? Vamos tentar quebrar essa cultura exclusivamente judicialista. Vamos usar o Procon, as associações de inquilinos, como mediadores e realizadores do direito. Se a matéria já é pacífica, porque ter que levar ao judiciário.

Em relação ao Código Penal, o senhor defenderia a mudança das punições, uma vez que crime contra o patrimônio é punido de forma mais severa do que crime contra a vida.

Gilmar Mendes: O Código Penal tem passado por algumas reformas, houve até muitas críticas com relação a isso. Por reações da opinião pública, acabam por alterar o modelo, sem lhe dar muita consistência. Talvez o modelo hoje tenha algumas inconsistências até com relação a esse peso das penas, porque algumas delas foram concebidas no calor de alguma emoção, que é totalmente legítima, mas que produziu alguma inconsistência. Provavelmente o Congresso Nacional vai se debruçar — esse é um dos temas importantes em movimento já — a reforma do Processo Penal e também do Código Penal, acredito que isso será objeto de consideração. Aqui ou acolá as reformas pontuais produzem essas incongruências, e ao fim de uma década, a gente de depreende com esse desbalanceamento. É preciso realmente fazer essa revisão. Mas quem tem legitimidade para fazê-lo é o Congresso Nacional. Claro que podemos criticar ou sugerir, mas quem tem legitimidade está se ocupando do tema é o Congresso Nacional.


Governo e oposição sempre disputam, no Congresso Nacional, e toda disputa sempre vem parar aqui. O senhor acha que já é hora de governo e oposição dialogarem e chegarem a um consenso, sem precisar de um poder moderador?

Gilmar Mendes: Essa é uma questão interessante, que a gente pode tratar no plano político e no plano filosófico-constitucional. Quando se concebeu a jurisdição constitucional, na década de 1920, se dizia que uma de suas funções era a de proteção da minoria. E assim tem sido nos modelos que se projetaram desde então. Dá-se à minoria a possibilidade de trazer a questão ao judiciário nas ações diretas [de inconstitucionalidade]. Se os senhores olharem o modelo alemão verão a seguinte situação: um terço dos membros do parlamento pode fazer uma ADI. Entre nós, basta um representante de um partido político — porque a legitimação é do partido político, com representante no Congresso Nacional. Muitos temas poderiam realmente ser tratados no âmbito do próprio Congresso Nacional. Matérias de caráter regimental, disciplinas específicas. Agora, eu não lamento que haja essa provocação do STF, mesmo pelos partidos políticos.

Por exemplo, a questão da CPI dos Bingos. Se ficasse nas mãos da maioria não teria havido a instalação da CPI. E não só me referi à CPI dos Bingos, também referi ao direito da oposição de poder requerer CPI. Nesse caso a judicialização foi correta, porque diante do impasse ou do massacre que a maioria teria sobre a minoria, o STF deu uma resposta. No modelo institucional desenhado há essa possibilidade. Um maior uso, ou menor, depende realmente dessa maior capacidade de consenso, ou dessa maior incapacidade de consenso. Creio que nos últimos tempos nós temos vivido mais, essa tendência de incapacidade para o consenso, mesmo quanto à norma de organização e procedimento. Porque não se trata de chegar a um consenso sobre as matérias de fundo, em geral, não se trata de um consenso quanto ao aspecto base, mas quanto a regras e procedimentos. Diante desses impasses, eu acredito que o Tribunal acaba sendo chamado para resolver de forma legítima. Se houver questão constitucional relevante, o Tribunal há de se pronunciar.

O governo vai coibir ações de ONGs na Amazônia, no momento em que o STF discute a política indigenista, no caso da área indígena Raposa Serra do Sol. O senhor acha que essa fiscalização maior de ONGs é necessária para proteger o território?

Gilmar Mendes: Eu não tenho elementos sobre isso, mas se o governo está tomando decisões nesse sentido, certamente ele dispõe de elementos para que se realize ou efetive esse controle. É claro que há missões de governo. Essas missões são intransferíveis — poder de Polícia, regras básicas quanto à proteção de fronteiras, à proteção dos próprios bens públicos, o problema da propriedade do subsolo, a fiscalização do uso de minério, exploração de minério. Todas essas questões que estão no texto constitucional são missões de governo. Na verdade são questões de governo como instrumento, que no fundo são questões afetas ao Estado brasileiro.

O senhor já se pronunciou sobre dossiê, se mostrou contrário inclusive à cultura de dossiês, mas agora vemos algumas pessoas do governo interpretando a lei para dizer que não era mais dossiê, dizendo que informações que antes eles diziam que eram sigilosas agora não são mais. Como o senhor vê essa tergiversação, parece até que para tentar desviar o foco, para não se investigar nada, não se punir nada.

Gilmar Mendes: A sua pergunta já contém a resposta!

Mas o senhor acha que estaria escrito na lei que isso é ou não é confidencial, secreto?

Gilmar Mendes: Eu tenho clamado pelo estabelecimento de novos padrões civiliz’atórios. Essa é a base do modelo democrático: oposição e situação não tem consenso, é por isso que são oposição e situação. Mas há que haver respeito às regras básicas. Quem está no governo não é proprietário de informações a que tem acesso simplesmente porque está no governo. Eu até chamei numa entrevista, creio que ao Estado de São Paulo, de uma nova face do patrimonialismo. E isto vale para todos, vale para a situação que hoje está no governo e alguém que esteja amanhã na oposição. Assim como também algumas práticas que eram muito comuns em tempos passados, mas que de vez em quando se manifestam, como o aparelhamento de órgãos estatais: ‘ah, eu tenho um funcionário na Receita Federal que pertence ao meu partido, e portanto ele vaza informações’; ‘eu tenho um funcionário que me é simpático na Polícia Federal, e por isso ele está a meu serviço’. Tudo isso é extremamente negativo, e é a revelação dessa faceta que não tem nada a ver com o estado de direito. Muitas vezes os senhores se beneficiam disso — recebem essas informações. Saibam que estão usando uma informação viciada.


No começo do ano, quando houve o corte da CMPF, se iniciou um certo movimento de pressão do governo, no Congresso, em relação ao Judiciário, pedindo cortes de gastos. Em primeiro lugar, queria lhe perguntar como isso poderia ser feito, a partir do exemplo do STF e do CNJ. Em segundo lugar, também sobre essa questão, gostaria de perguntar se haveria incoerência entre seu discurso, defendendo uma maior economia, uma parcimônia no gasto do Judiciário, em relação a esses valores que teriam sido despendidos para a solenidade de posse?

Gilmar Mendes: Nós tivemos a notícia de que a CPMF foi eliminada e nós tivemos perda de arrecadação de R$ 40 bilhões. Essa era a notícia base, anual. Logo, o orçamento ficou comprometido nessa dimensão na sua perspectiva de receita, o que afetava também os gastos. O governo tomou uma série de medidas, e comunicou desde logo aos vários órgãos que teria que haver uma recomposição, uma readaptação, tendo em vista essa nova realidade. E era um dado que precisaria ser levado em conta. E o próprio Judiciário acabou fazendo as novas indicações de orçamento, tendo em vista o diálogo estabelecido com a própria Comissão de Orçamento e com o governo. Depois, houve novas informações, a própria receita começou a comemorar novos recursos, a não queda da arrecadação prevista, e portanto também esse modelo ficou sob revisão. Portanto, não há nenhuma surpresa com relação a isso. Se houver necessidade de readaptação – isso já aconteceu em outros momentos, certamente o Judiciário não vai se negar, até porque nós estamos aqui no limite do financeiramente possível. Eu tenho falado é sobre a necessidade de utilização racional dos gastos. Tanto quanto possível destinar esses investimentos para as atividades fins do próprio poder Judiciário. No Conselho [CNJ], inclusive, chamei a atenção para a necessidade de que nós estabeleçamos critérios, por exemplo, para os prédios do Judiciário, para que nós eventualmente não possamos dar demonstração de indiferença para as dificuldades eventualmente existentes. Criar um padrão digno de prédio público para que não haja verificação de excesso. Quanto à posse, pelos números que acho que até o próprio Globo revelou, estão dizendo que estiveram aqui 3,5 mil pessoas. Claro, isto demandava segurança, medidas excepcionais. Os senhores mesmos estão dizendo — eu não, pode parecer algo cabotino — que nunca esteve tanta gente no STF numa posse. Isso, é claro, demandou uma série de cuidados, mas creio que não há aqui nenhum exagero, não há nenhuma contradição. Os senhores vão estar informados de qualquer despesa que vá se fazer. Não há nenhuma contradição. Estou absolutamente convencido — não fui eu quem decidiu sobre esses gastos, até porque na verdade estávamos sob a administração da ministra Ellen Gracie — que os gastos foram medidos pelas necessidades básicas existentes naquele momento. Não há, portanto nenhum exagero. Acredito que os próprios números — claro que os senhores, nos jornais de hoje, têm a mania de estampar números, ‘gastou-se R$ 70 mil’, como se isso fosse algo significativo na relação, ou R$ 20 mil, e o leitor às vezes no improviso da sua casa, não sabe o que é isso — para 3,5 mil pessoas, ter segurança, permitir que essas pessoas se abrigassem. Nós temos um auditório, não sei se os senhores anotaram, que abriga mal 340 pessoas. Como abrigar 3,5 mil pessoas no STF, sem alugar cadeiras, sem colocar telões? Isso é o óbvio. Se os senhores encontrarem outra forma de gerir os recursos nessas condições, depois me ensinem.

Sobre a questão da área indígena Raposa Serra do Sol, o senhor considera que a questão envolve soberania nacional? E o senhor considera viável a ida de ministros da Corte à terra indígena para verificar in loco a realidade que virá a julgamento aqui?

Gilmar Mendes: O Tribunal já aprovou, certa feita, um tipo de vistoria, de uma inspeção in loco, creio que envolvendo uma área indígena na Bahia, creio que dos Pataxós Hã-hã-Hãe. Delegou-se inclusive ao ministro relator, que era o ministro [aposentado] Nelson Jobim, essa tarefa. Mas tenho a impressão de que essa vistoria não foi realizada. Isso dependerá, certamente, de alguma consideração do próprio relator, ministro Carlos Britto. Os senhores sabem também que eu sou absolutamente insuspeito nessa questão de terra indígena. Para aqueles que não levantaram isso, eu fui talvez a voz mais saliente, ainda na Constituição passada, quando eu era procurador da República, na defesa das terras do Xingu. E discuti, então, o conceito de terra indígena e de posse indígena no STF. Porque o STF vinha condenando a União a pagar indenização por conta dos chamados apossamentos no âmbito do Xingu. E isso inviabilizava, por completo, a política de demarcação de terras indígenas. Então, fui eu, como procurador da República — o procurador-geral era José Paulo Sepúlveda Pertence [ministro aposentado do STF] — é que sustentei a tese de que era preciso conceber e reconceber o conceito de posse indígena. Posse indígena não coincidia com a posse de direito civil. Agora, claro que nós temos desafios que estão postos e que vão exigir consideração. A questão da fronteira, da soberania, a questão do usufruto das áreas. Tudo isto está posto e acredito que a Constituição contém mecanismos que vão permitir uma boa equação do problema pelo STF. Não vamos a priori emitir juízo, vamos aguardar o pronunciamento do STF. Acredito que o texto constitucional contém já elementos que permitem esse condicionamento adequado.

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