Direito indígena

Raposa Serra do Sol desafia capacidade dos ministros do STF

Autor

  • César Augusto Baldi

    é mestre em Direito pela ULBRA-RS doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre) desde 1989.

23 de abril de 2008, 13h26

A concessão de liminar, pelo Supremo Tribunal Federal, para a não-remoção dos agricultores na já demarcada reserva indígena Raposa Serra do Sol, gerou questionamentos a favor e contra os territórios indígenas, inclusive pela revisão de demarcação de territórios.

Os argumentos contrários — mais contundentes — giraram em torno de: a) perda de soberania nacional, seja pela impossibilidade de acesso de militares na região, seja pelo amplo acesso de ONGs internacionais, o que se revelaria perigoso em se tratando de terra de fronteira; b) perda demasiada de território de um Estado, que teria imobilizado, com a reserva, 46% de sua área, sendo, pois, “terra demais” para somente 15 mil índios; c) necessidade de alteração do modelo de demarcação contígua por “ilhas” de territórios indígenas; d) a remoção dos agricultores da região inviabilizaria 6% da economia roraimense.

Efetivamente, a demarcação do território indígena demandou um amplo processo de discussão, iniciando em 1977, a que se seguiu a criação de um grupo de trabalho que culminou no Decreto 22/91. Este, por sua vez, foi revogado pelo Decreto 1.775/96, que permitiu que terceiros interessados se manifestassem a respeito da área a ser demarcada.

O Despacho 80, do então ministro da Justiça, Nelson Jobim, julgou improcedentes as contestações administrativas, excluindo a sede do município de Uiramatã, além de propriedades de particulares, bem como a possibilidade de fruição indígena exclusiva sobre vias públicas e faixas de domínio. Levado a reconsideração o referido despacho, o outro ministro, Renan Calheiros, afirmou que eram improcedentes as manifestações de oposição à demarcação, declarou ser de posse permanente a área apresentada com superfície de 1.678.800 hectares, mantendo a delimitação aprovada pela Funai em 1993, nos termos da Portaria 820, em dezembro de 1998.

Diversas ações judiciais, sucessivas concessões de liminares e ocupações do mesmo território praticamente paralisaram o processo que dependia, naquele momento, apenas da homologação presidencial. Com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, houve a retomada do processo, o que originou nova sucessão de debates judiciais e novos processos de ocupação das terras por não-índios.

Disto decorreram reclamação perante o STF, que entendeu pela competência para julgamento de todos os processos envolvendo a demarcação (mais de 30, ao que se informa), e outra, perante a Comissão de Direitos Humanos da OEA, esta pedindo celeridade na demarcação como área contínua. Esta última, por fim, foi atendida, resultando recomendações ao Brasil para cumprimento dos direitos indígenas. Sobreveio, finalmente, o decreto de 15 de abril de 2005, após a edição da Portaria 534/2005, do Ministério da Justiça, com o que o STF julgou as reclamações pendentes, por perda de objeto, uma vez que a portaria anterior estava anulada. Constou, ademais, no voto do ministro relator, Carlos Britto, que a portaria “buscou harmonizar os grandes interesses nacionais envolvidos”, citando “as condições indispensáveis para a defesa do território e da soberania nacionais, a preservação do meio ambiente, os direitos constitucionais dos índios e o princípio federativo”.

Esse decreto — importante frisar — estabeleceu: a) uma superfície contínua de 1.747.464 hectares, nos termos das delimitações nele estabelecidas no artigo 2º, destinada à posse permanente dos grupos indígenas ingarikó, makuxi, patamona, taurepang e wapixana; b) a dupla afetação do Parque Nacional do Monte Roraima, “destinado à preservação do meio ambiente e à realização dos direitos constitucionais dos índios” (artigo 3º), administrado pela Funai, Ibama e comunidade ingarikó; c) a ação das Forças Armadas para “defesa do território e da soberania nacionais” e do Departamento de Polícia Federal, para “garantir a segurança e a ordem pública e proteger os direitos constitucionais indígenas” ( artigo 4º), que poderão ambos utilizar “os meios necessários, adequados e proporcionais para desempenho de suas atribuições legais e constitucionais” (parágrafo único do artigo 4º); d) a prerrogativa do presidente da República, em caso de real necessidade, de “adotar as medidas necessárias para afetar os bens públicos da União de uso indispensável à defesa do território e à soberania nacional” (artigo 5º).

A simples leitura do decreto, conforme se verifica das alíneas “c” e “d”, demonstra, à exaustão, que não somente está franqueado o acesso às Forças Armadas (que, ironicamente, na região, têm em sua maioria indígenas ou descendentes), quanto estabelecidas as prerrogativas de defesa do território e da soberania nacionais. Não é demais lembrar que, no mesmo Estado, existe a área ianomâmi, homologada em 1992, também em área de fronteira, e que tampouco representou ou representa perigo à soberania nacional ou sequer teve pretensão de criar uma “nação” indígena separada do território brasileiro, alegação, aliás, propalada, à época, para a não-demarcação.

Aliás, aqui, presentes algumas inconsistências e desconhecimentos em relação aos indígenas: a) os grupos indígenas se denominam “nações” porque esta é também a nomenclatura aceita nos tratados internacionais, e a própria Convenção 169 da OIT, aplicável ao caso, reafirma que a utilização da expressão “povos” não deve ser “interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional” (artigo 1º, 3, b) o conceito de “terras” abrange “territórios”, aqui entendido “a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam” (artigo 13, 2), tendo em vista a importância que esta relação tem para a cultura e os valores espirituais dos indígenas (artigo 13, 1, c) disto se segue que a definição de territórios indígenas longe está de qualquer demanda por constituição de novos países, o que pode se verificar em todas as lutas indígenas do continente; d) na base da questão, encontra-se implícito um “racismo” anti-índio, que separa “brasileiros” e “índios” e que deve, constitucional e legalmente, ser rechaçado; e) a alegada “intromissão” estrangeira tem por base, também, a denúncia, realizada por ONGs, à Comissão de Direitos Humanos da OEA, portanto, dentro do legítimo interesse de utilização de mecanismos multilaterais de resolução de conflitos.

O argumento de que seria “terra em demasia” para a população dos cinco grupos indígenas, a par de preconceituoso, incorre em outras erronias: a) a terra indígena demarcada para a Raposa Serra do Sul é grande, sim, mas representa apenas 8%, ao passo que os alegados 46% da superfície de Roraima somente são atingidos se somadas todas as 31 áreas indígenas já demarcadas, da qual o TIRSS é seis vezes menor que a área ianomâmi; b) a superfície restante, ou seja, os demais 54% correspondem à soma dos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas, onde vivem 22 milhões de habitantes, ou, para utilizar-se outra comparação, ao Estado de Pernambuco, onde vivem mais de sete milhões de habitantes; c) Roraima tem população inferior a 400 mil habitantes, o que daria 0,57 km2/hab; d) aceitando-se uma população de quinze mil habitantes para a área demarcada, isto equivale a 1,17 km2/hab, pouco mais de duas vezes à média do Estado, nunca tendo se mencionado que existem 50 mil cabeças de gado; e) por sua vez, se efetivamente os agricultores ocupam somente 1% da reserva (180 km2), seria uma densidade de 3 km2/hab, o que, portanto, implicaria reconhecer que haveria, ao contrário, terras “em demasia” para os agricultores.

Esquece-se, com isto, que Roraima somente foi incorporada ao território brasileiro, pela gestão de Joaquim Nabuco, porque, à época, era habitada por índios, que, sendo súditos de Portugal, originalmente, assegurariam a região para o nosso país. Irônico, se não fosse trágico, verificar serem justamente os índios a serem atingidos agora por medidas dos governantes e não-índios de Roraima.

Os arrozeiros, por sua vez, não somente se instalaram, mas também ampliaram as lavouras quando o processo de demarcação já estava em curso. Não sendo proprietários da área, somente lhe são devidas indenizações por benfeitorias, informando o Ministério da Justiça, por outro lado, já ter efetuado os respectivos pagamentos. Foi estabelecido o prazo de um ano — a contar de 2005 — para a desocupação dos territórios, à época com 200 unidades de produção. Extrapolado, portanto, há muito o prazo legalmente estabelecido. Saliente-se, ademais, que a resistência do grupo de seis arrozeiros — parcela ínfima em relação aos que então ocupavam a área — se deu pela implosão de pontes e barreiras, destruição de bens públicos, não sendo de esquecer que, quando da celebração pela comunidade da finalização da demarcação (23 a 30 de setembro de 2005), houve invasão por bando armado, que resultou em incêndio da única ponte de acesso ao território, atos que, conforme denúncia à ONU teriam sido coordenados por grupo ligado ao prefeito de Pacaraima, “maior produtor de arroz da região”.

Por outro lado, se o grupo movimenta 6% da economia do Estado, com certeza devem existir, nos demais 54% do território, locais apropriados para impulsionar o desenvolvimento da região. Relembre-se que em decorrência da demarcação, o governo federal estabeleceu um programa de compensações financeiras a Roraima, o que, parece, não vendo sendo mencionado pelas autoridades roraimenses.

Por fim, e aqui mais importante, a própria Constituição assegura, no artigo 231, reconhece o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas, competindo à União sua demarcação. Acolhendo, pois, a teoria da “posse indigenata”, do que decorrem “direitos originários”, que não se confundem com a ocupação ou mesmo com a posse, mas sim com o modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, conforme, aliás, consta dos livros de Direito Constitucional.

A recente “Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas”, adotada pela Assembléia Geral da ONU, em setembro de 2007, neste sentido, ainda amplia a proteção dos índios, que “são iguais a todos os outros povos, ainda que reconhecendo o direito de todos os povos a serem diferentes, considerarem a si próprios diferentes e serem respeitados como tais”.

O que vem referendado na Convenção 169 da OIT, tratado internacional internalizado no Direito interno brasileiro pelo Decreto Legislativo 143/2002 (artigo 14), do que decorrem responsabilidades para os governos no sentido de adotar medidas “necessárias para determinar as terras” e “garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse” (artigo 14, 2). Relembre-se, ainda, que a demarcação em “ilhas” tem, até o presente momento, a trágica experiência dos índios guarani de Mato Grosso do Sul, com sucessivas notícias de suicídio, alcoolismo e mortes de crianças, o que, para o caso, já recomendaria, no mínimo, um laudo antropológico para a análise da questão.

A mesma convenção, por sua vez, estabelece que os governos devem consultar os povos interessados, “cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente” (artigo 6º, 1, “a”), estabelecidos os meios de sua participação (artigo 6º, 1,”b”), obrigação da qual tampouco o STF estaria desobrigado, em caso de manifestar intenção de alterar os limites da demarcação já operada administrativamente.

Ou estaria o guardião da Constituição isento de cumprir tratados internacionais de direitos humanos, que, segundo vai se inclinando a própria jurisprudência do STF, são materialmente constitucionais e compõem, pois, o “bloco de constitucionalidade”, de forma que, por um lado, ampliam o núcleo mínimo de direitos e garantias constitucionalmente consagrados e, por outro lado, constituem o próprio parâmetro do controle de constitucionalidade, agora alargado, com os princípios implícitos?

Um bom desafio para os onze ministros, e para toda a sociedade, em tempos de interculturalidades, direitos novos e tendo em vista os sucessivos relatórios internacionais recomendando ao Brasil a necessidade de capacitação dos atores jurídicos na área de Direito Internacional dos Direitos Humanos e de respeito aos direitos indígenas.

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