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Nem todo mundo pode reclamar no Supremo Tribunal Federal

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13 de abril de 2008, 0h00

A Reclamação é um instrumento processual célere e eficaz para garantir a força normativa das decisões do Supremo Tribunal Federal. No entanto, não é possível que qualquer ato contrário a seus precedentes seja alvo desse tipo de ação. Apenas as partes do processo julgado pelo Supremo podem reclamar o descumprimento da decisão.

Esta foi a explicação do ministro Cezar Peluso ao arquivar a Reclamação proposta por policial federal do Ceará contra decisão judicial que o impediu de receber reajuste salarial de 84% referente à inflação apurada em 1990. O policial se baseou em decisão do próprio ministro Peluso, em que garantiu a outras pessoas o direito de receber 84% de reajuste (RE 498.843), para entrar com a Reclamação.

“A situação descrita na inicial se não acomoda a nenhuma hipótese de admissibilidade de Reclamação”, concluiu o ministro. Se todos os atos contrários às decisões do STF pudessem ser alvo de Reclamação, escreveu Peluso, “repugnaria à ordem constitucional, sobretudo à democrática, a possibilidade de se estender àqueles que não tiveram oportunidade de participar da formação do ato decisório, ou que não estejam submetidos por força de lei à ordem judicial, a autoridade do pronunciamento da Corte”.

Peluso também diz que, se assim fosse, todo o sistema processual e a estrutura judiciária estariam arruinados. E haveria ofensa às garantias de contraditório, ampla defesa e devido processo legal.

Ao defender este posicionamento, o ministro citou decisão do ministro aposentado Sydney Sanches, segundo a qual “os julgamentos do STF, nos Conflitos de Jurisdição e nos Recursos Extraordinários, referidos na Reclamação, têm eficácia apenas ‘inter partes’, não ‘erga omnes’, por encerrarem, apenas, controle difuso (‘in concreto’) de constitucionalidade”. Decisões de Carlos Britto e Ricardo Lewandowski também são relacionadas em seu voto.

Nesta Reclamação, o policial federal alegava que obteve o direito ao reajuste por meio de decisão transitada em julgado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, sediado em Recife (PE). Ele sustentava que o próprio TRF-5 julgou recurso da União e impediu o pagamento do reajuste, paralisando a execução da decisão. Isso teria ocorrido anos após a sentença final que determinou o reajuste.

Ao arquivar a ação, Peluso observou que ela pretendia garantir a autoridade de uma decisão que não entrou no mérito da questão, por falta de fundamentação do Recurso Extraordinário, nos termos da Súmula 284.

Leia o voto

RECLAMAÇÃO 5.852-2 CEARÁ

RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO

RECLAMANTE(S): ADJACI FLORENTINO DOS SANTOS

ADVOGADO(A/S): CLAYTON AMORIM DE SOUSA

RECLAMADO(A/S): JUIZ FEDERAL DA 3ª VARA FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO CEARÁ (PROCESSO Nº 90.0003711-5)

INTERESSADO(A/S): UNIÃO

ADVOGADO(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

DECISÃO:

1. Trata-se de reclamação, com pedido liminar, movida por Adjaci Florentino dos Santos, contra decisão do Juízo Federal da 3ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Ceará.

A demanda tem origem em ação ordinária, ajuizada pelo ora reclamante, servidor do Departamento de Polícia Federal, objetivando a incorporação “em seus salários do reajuste concernente ao percentual dos 84,32%, referente à inflação apurada no citado ano de 1990” (fls. 03).

Julgada procedente em primeiro grau, a ação foi submetida à análise do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que, em remessa oficial, manteve a decisão a quo.

O acórdão transitou em julgado em 01.07.92 e, contra ele, foi manejada, pela União, ação rescisória, julgada improcedente. Essa decisão foi atacada, além do especial, por recurso extraordinário (RE nº 498.843), cuja decisão alega violada.

Argúi, o reclamante, a “inobservância do AI 410.748/CE posteriormente convertido no RE 498.843/CE em que o Excelentíssimo Ministro Relator Cezar Peluso fez menção expressa ao direito dos reclamantes de perceberem o percentual dos 84,32% concedido a estes pela ação de conhecimento nº 90.3711-5 – título judicial transitado em julgado” (fls. 06).

Requer, liminarmente, “seja deferida a medida liminar inaudita altera parte pleiteada para que abstenha-se (sic) a autoridade reclamada, por meio da r. Decisão objeto da presente, de suprimir da folha de pagamento do reclamante a vantagem concernente a gratificação dos 84,32% assegurada pela sentença na ação nº 90.3711-5 ajuizada na 3ª Vara Federal do Estado do Ceará” (fls. 11).

2. Inviável a reclamação.

A pretensão do reclamante funda-se em suposta afronta à autoridade da decisão proferida pela Corte no RE nº 498.843. Ocorre que a situação descrita na inicial se não acomoda a nenhuma hipótese de admissibilidade de reclamação.


Esta, numa de suas funções, aparece como instrumento processual célere e eficaz, franqueado pela Constituição para garantia da força normativa dos pronunciamentos jurisdicionais do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, inc. I, alínea “l”; RISTF, art. 156; Lei nº 8.038, de 28.05.90, art. 13). Trata-se, como se vê logo, de obséquio ao conspícuo papel desempenhado pela Corte como guarda da Constituição (art. 102, caput).

Nesse contexto, o acesso à reclamação por afronta a decisum do STF somente se legitima nos casos em que o agente da ação ou da omissão reputada ofensiva àquela autoridade – a parte dita reclamada – esteja, de qualquer modo, submetido ao comando decisório (cf. RCL nº 3.159-AgR, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJ de 03.03.2006; RCL nº 4.129, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJ de 30.05.2006; RCL nº 1.770, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 07.02.2003; RCL nº 1.987, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ de 21.05.2004). “Assim, seu cabimento fica atrelado à clara demonstração de que os agentes e órgãos vinculados ao cumprimento da decisão deixaram de observar seus termos e parâmetros” (RCL nº 4.129, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJ de 30.05.2006).

Tal situação configura-se, em primeiro lugar, diante de provimentos jurisdicionais emitidos pela Corte no exercício do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, em que sua decisão é dotada de eficácia e autoridade erga omnes, que a todos subjuga ao comando normativo.

Sujeita-se ainda a controle pela via de reclamação o descumprimento de qualquer decisão, jurisdicional ou administrativa, proferida pelo Supremo Tribunal Federal, quando a violação alegada tenha partido dalgum dos destinatários do comando decisório, isto é, de pessoas subordinadas à autoridade da norma singular e concreta, como é o caso das partes do processo em que foi emitido o decisum tido por afrontado, ou do órgão público a que se dirige a ordem judicial.

Nesse sentido, a jurisprudência:

“1. Os julgamentos do S.T.F., nos Conflitos de Jurisdição e nos Recursos Extraordinários, referidos na Reclamação, têm eficácia apenas ‘inter partes’, não ‘erga omnes’, por encerrarem, apenas, controle difuso (‘in concreto’) de constitucionalidade.

2. E como a Reclamante não foi parte em tais processos, não pode se valer do art. 102, I, ‘l’, da CF, nem do art. 156 do RISTF, para impedir a execução de outros julgados em que foi parte, e que sequer chegaram ao STF.

3. A decisão proferida pela Corte, no julgamento de mérito de ação direta de inconstitucionalidade, esta, sim, tem eficácia ‘erga omnes’, por envolver o controle concentrado (‘in abstracto’) de constitucionalidade, mas não comporta execução.” (RCL nº 447, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, DJ de 31.03.95).

“Com efeito, a reclamação constitucional prevista na alínea “l” do inciso I do artigo 102 da Carta-cidadã revela-se como uma importante via processual para o fim de preservar a competência desta colenda Corte e garantir a autoridade das suas decisões. Nesta última hipótese, contudo, sabe-se que as reclamatórias podem ser manejadas ante o descumprimento de decisórios proferidos, com efeito vinculante, nas ações destinadas ao controle abstrato de constitucionalidade, tanto quanto em processos de índole subjetiva (desde que, neste último caso, o eventual reclamante deles haja participado).

5. Muito bem. Com os olhos postos no caso concreto, observo que a decisão tomada no RE 347.814-AgR-Ed não possui efeito vinculante e eficácia erga omnes, razão pela qual o pronunciamento jurisdicional exarado nesse feito apenas tem a finalidade de atar as partes nele envolvidas.” (RCL nº 3.740, Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJ de 24.08.2005).

“Bem examinados os autos, vê-se que a pretensão não merece acolhida, pois não se enquadra em nenhuma das duas hipóteses permissivas inscritas no art. 102, I, l, da Constituição Federal, seja para preservar a competência desta Suprema Corte, seja para garantir a autoridade de suas decisões.

É que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do HC 82.959/SP, em 23.2.2006, Relator o Ministro Marco Aurélio, no qual esta Corte declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, não possui efeito vinculante e eficácia erga omnes, não havendo o reclamante figurado na relação processual no referido writ.” (RCL nº 4.299, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, DJ de 10.05.2006).

Fora desses casos, o impedimento do acesso à reclamação, por afronta a autoridade de decisão da Corte, é decorrência natural e imediata das garantias constitucionais da coisa julgada, do contraditório e da ampla defesa, inerentes à cláusula do due process of law (CF, art. 5º, incs. XXXVI, LIV e LV). Repugnaria à ordem constitucional, sobretudo à democrática, a possibilidade de se estender àqueles que não tiveram oportunidade de participar da formação do ato decisório, ou que não estejam submetidos por força de lei à ordem judicial, a autoridade do pronunciamento da Corte. Tal é, aliás, a razão por que a lei adscreve a coisa julgada às partes entre as quais é dada a decisão (CPC, art. 472). E uma das manifestações da ilegítima extensão dessa autoridade seria abertura do acesso à via reclamatória, para fazer cessar situação de suposta ofensa à decisão do Tribunal.


É bem verdade que os atos decisórios do Supremo Tribunal Federal em processos subjetivos não têm a mesma eficácia daqueles emitidos por qualquer órgão judicial. Na condição de órgão de cúpula do Poder Judiciário, responsável pela guarda da Constituição, a Corte empresta a seus precedentes força sensivelmente superior à ostentada pela generalidade das decisões judiciais. Para demonstrá-lo, basta lembrar, em primeiro lugar, os atos de jurisdição proferidos pelo Tribunal no controle incidental e concreto de constitucionalidade. A declaração de inconstitucionalidade de norma, manifestada incidenter tantum, habilita o Senado a suspender-lhe a execução (CF, art. 52, inc. X). Ainda fora daí, as decisões da Corte são dotadas de força qualificada de precedente, apta a influenciar em alto grau e, até, predeterminar o teor de decisões de outros órgãos judiciais (CF, art. 103-A; CPC, arts. 481, § único, 557 e 741, § único).

Essa eficácia diferenciada, naturalmente expansiva, das decisões do Supremo Tribunal Federal, não autoriza, porém, que qualquer ato contrário a seus precedentes, imputável a qualquer juízo, obtenha reparação direta por meio de reclamação à Corte. Tal possibilidade não apenas constituiria flagrante absurdo, ofensivo às garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, e aos limites subjetivos da coisa julgada, como também arruinaria todo o sistema processual e a estrutura judiciária.

No caso, a decisão tida por violada limitou-se a negar o seguimento ao recurso extraordinário, deixando de examinar o restante do mérito da causa original. Eis o seu inteiro teor:

“1. Trata-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que, em julgamento de embargos infringentes interpostos em face de acórdão que julgou improcedente ação rescisória, assim decidiu:

‘PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS INFRINGENTES EM AÇÃO RESCISÓRIA. VOTO-VENCIDO. LIMITES DA DIVERGÊNCIA. RAZÕES DO RECURSO DISSOCIADAS DA MATÉRIA DIVERGENTE. INADMISSIBILIDADE.

Hipótese em que o voto vencido entendeu violado o art. 97 da Carta Magna em virtude de o órgão fracionário julgar matéria reservada ao Pleno do Tribunal, enquanto os embargos infringentes primam apenas em demonstrar a inexistência do direito reconhecido pela decisão embargada, sem cuidar da matéria objeto da divergência.

“O escopo dos Embargos Infringentes é restrito à matéria jurídica versada no voto vencido e à correspondente conclusão nele exposta, por cuja prevalência forceja, não se admitindo que a parte embargante formule, na via recursal, pedido que lhe seja alheio. Os Embargos Infringentes não abrem ensejo ao rejulgamento total e completo (ex novo) da demanda, como se fosse a repetição da própria lide originária, no caso, da ação rescisória, daí deverem ser examinados com rigor, para que não se sacrifique, com a inadmissível renovação do julgamento, o direito que fora objeto da provisão jurisdicional favorável.”

Embargos Infringentes não conhecidos.’

O recorrente, com base no art. 102, III, a, alega violação ao disposto no artigo 61, § 1º, da Constituição Federal. Aduz que o Supremo Tribunal Federal se tem pronunciado em sentido contrário ao reajuste de 84,32% relativo ao IPC de março de 1990 aos vencimentos dos recorridos.

2. Inviável o recurso.

Há evidente deficiência na fundamentação do extraordinário, porque as razões nele deduzidas são destoantes do real conteúdo do aresto recorrido, o que atrai a aplicação da súmula 284.

Com efeito, o Tribunal a quo concluiu, em sede de embargos infringentes, que não caberia a discussão quanto ao direito subjetivo dos recorridos ao índice pleiteado, “porque o dissídio entre os Julgadores não foi por questão de mérito, mas sim por questão de competência do órgão parcelar do Tribunal para resolver invocação de proteção constitucional” (fl. 560), que seria a violação ao art. 97, da CF/88.

O recurso extraordinário limita-se a impugnar fundamentos da decisão rescindenda, quando, no entanto, o acórdão recorrido sequer ultrapassou preliminar de conhecimento dos embargos infringentes. Isso torna inviáveis a compreensão e a decisão da controvérsia jurídica. É o que tem decidido esta Corte, como se vê à seguinte ementa exemplar:

‘EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL — IMPUGNAÇÃO RECURSAL QUE NÃO GUARDA PERTINÊNCIA COM OS FUNDAMENTOS EM QUE SE ASSENTOU O ATO DECISÓRIO QUESTIONADO — OCORRÊNCIA DE DIVÓRCIO IDEOLÓGICO — INADMISSIBILIDADE — RECURSO IMPROVIDO. — A ocorrência de divergência temática entre as razões em que se apóia a petição recursal, de um lado, e os fundamentos que dão suporte à matéria efetivamente versada na decisão recorrida, de outro, configura hipótese de divórcio ideológico, que, por comprometer a exata compreensão do pleito deduzido pela parte recorrente, inviabiliza, ante a ausência de pertinente impugnação, o acolhimento do recurso interposto. Precedentes.’ (AI 167.607-AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 14.05.2004)

3. Ante o exposto, nego seguimento ao recurso (art. 21, § 1º, do RISTF, art. 38 da Lei nº 8.038, de 28.05.90, e art. 557 do CPC).”

Desse modo, os demais pedidos deduzidos pela autora naquele processo não foram objeto de cognição e pronúncia desta Corte quanto à matéria jurídico-constitucional de fundo. A última palavra a respeito foi dada pelo Tribunal a quo, cujo acórdão permanece intacto, na medida em que não foi substituído por outro de escalão superior (art. 512 do CPC).

Ora, esta reclamação visa a garantir autoridade de decisão desprovida de conteúdo decisório, que não apreciou o mérito da causa, por deficiência na fundamentação do extraordinário, nos termos da súmula 284.

Inarredável, pois, a conclusão teórica de que o reclamante terá eleito via processual imprópria. A fim de sustentar sua pretensão, o autor dispõe dos meios ordinários de impugnação recursal.

3. Diante do exposto, com fundamento no art. 38 da Lei nº 8.038, de 28 de maio de 1990, art. 21, § 1º, do RISTF, e art. 267, inc. VI, do CPC, extingo o processo da reclamação, sem julgamento do mérito. Oportunamente, arquivem-se.

Publique-se. Int..

Brasília, 26 de fevereiro de 2008.

Ministro CEZAR PELUSO

Relator

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