Visão jurídica

Cartões corporativos, dossiê e ética na administração

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

8 de abril de 2008, 0h01

O uso dos cartões corporativos nada tem de errado. É prática que agiliza os atos da administração pública, além de tornar os gastos mais controlados e transparentes. Mas, evidentemente, devem ficar restritos a autoridades de elevado nível hierárquico e sempre condicionados à existência de manifesto interesse público.

Não é razoável conceber, por exemplo, que um ministro de Estado tenha que passar o dia policiando seus atos e que não disponha de uma forma de quitar despesas de menor porte e absolutamente necessárias. E muito menos que um presidente da República ou governador de estado tenha que exercer, ainda exemplificando, controle direto sobre as despesas de alimentação ou de energia elétrica.

Recentemente, fatos noticiados pela mídia deram conta de uso irregular de cartões corporativos na administração publica federal. As linhas pouco nítidas do permitido e do não permitido, aliadas a uma prática secular de mesclar o público e o privado, levaram a uma situação de fato de grande repercussão nacional. Como resultado, instalou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito — CPI mista, ou seja, com membros da Câmara os Deputados e do Senado.

A situação agravou-se no dia 2 de abril passado, quando o Senador paranaense Álvaro Dias, do PSDB, divulgou no Senado, sem indicar a origem, a existência de um dossiê, na chefia da Casa Civil, com gastos da família do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e de políticos filiados ao PSDB, partido sabidamente da oposição. Atacado por políticos da situação, cobrado a apresentar a fonte de informação, afirmou que o que tinha que ser investigado é a formação do dossiê e não a sua divulgação.

O fato político tornou-se mais relevante, gerando até pedido de exoneração de ministra de Estado, chefe da Casa Civil. O governo disse tratar-se se um “banco de dados”. A imprensa reagiu, afirmando que ele teve início em 11 de fevereiro, quando o Congresso criou a CPI dos cartões corporativos. A oposição buscou, sem sucesso, a convocação da ministra-chefe da Casa Civil para depor na CPI. O Poder Executivo criou uma comissão para investigar como vazou a informação. A situação foi, aos poucos, tornando-se mais complexa, com suspeita de existência de algum agente infiltrado ou mesmo de invasão dos bancos de dados da Casa Civil. No desenrolar dos fatos, a imprensa noticia que o “Senado deve instalar nova CPI dos cartões” (O Estado de S. Paulo 7.4.2008, A1) e que a PF quer investigar o vazamento do dossiê (Folha de S. Paulo, 7.4.2008, A1).

Em meio a esta situação, há uma suspeita fundada de que a sucessão presidencial estaria a motivar a divulgação dos fatos, uma vez que a chefe da Casa Civil goza de prestígio suficiente para representar o seu partido nas próximas eleições. Bem por isso, o caso, de forte tonalidade política, desperta paixões e manifestações iradas. É recomendável, por isso mesmo, mira-lo à distância e sob a ótica jurídica. Como se situa o ocorrido na visão do Direito. Eis a questão.

Inicialmente, vale lembrar que no Brasil existe um pouco conhecido Código de Ética dos servidores públicos, editado através do Decreto 1.171/94. Portanto, a vincular todos os que militam na administração pública direta e indireta. É possível resumir conduta ética por aquilo que os romanos, há séculos, pregavam: Viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o que é seu. Por volta de 1300 os boticários franceses editaram o Juramento dos Boticários, no qual assumiam o compromisso de bem exercer sua profissão. Atualmente, alguns órgãos do Poder Público, conselhos profissionais e empresas, costumam ter seus princípios de conduta.

Em 2005, Harry Stonecipher, presidente da Boeing, casado, então com 68 anos de idade, foi obrigado a renunciar ao seu alto posto depois de uma sindicância ter apurado que ele tinha um relacionamento pessoal com uma colega de trabalho, prática vedada na empresa (Zero Hora, 8.3.2005, p. 26).

Pois bem, no serviço público federal brasileiro, o Decreto 1.771/94, dá no art. II orientação precisa sobre ética, ao dispor que:

II – O servidor público não poderá jamais desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas principalmente entre o honesto e o desonesto, consoante as regras contidas no art. 37, caput, e § 4°, da Constituição Federal.

E apenas para exemplificar algumas condutas contrárias à ética, vale reproduzir alguns incisos do artigo XI:

XV – É vedado ao servidor público;

a) o uso do cargo ou função, facilidades, amizades, tempo, posição e influências, para obter qualquer favorecimento, para si ou para outrem;

b) prejudicar deliberadamente a reputação de outros servidores ou de cidadãos que deles dependam;

c) fazer uso de informações privilegiadas obtidas no âmbito interno de seu serviço, em benefício próprio, de parentes, de amigos ou de terceiros;

No caso objeto destas considerações, se a conclusão for a de que realmente houve a criação do dossiê, induvidosamente, estar-se-á diante de uma infração ética. Em um passo seguinte, será preciso indagar se o fato ultrapassa do ético para atingir o ilícito penal. Se existente o dossiê, a conduta poderá significar infração prevista no Código Penal, conforme redação abaixo:

Artigo 325. Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena: detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constituir crime mais grave.

Entretanto, o tipo penal exige que o fato “deva permanecer em segredo”, ou seja, que o conhecimento seja restrito a determinado número de pessoas. A regra, pois, é a da publicidade dos documentos da administração pública, atentando-se para a transparência que devem ter os atos da administração pública de qualquer dos Poderes da República (Constituição Federal, artigo 5º, inc. XXXIII). Mas, em determinadas situações, recomenda-se o segredo, o sigilo. Neste particular, é preciso socorrer–se da Lei 11.111/05, que diz:

Artigo 2º O acesso aos documentos públicos de interesse particular ou de interesse coletivo ou geral será ressalvado exclusivamente nas hipóteses em que o sigilo seja ou permaneça imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, nos termos do disposto na parte final do inciso XXXIII do caput do art. 5o da Constituição Federal.

Aqui merece reflexão o fato de que o sigilo, seja da administração pública em geral, seja decretado pelo Poder Judiciário em investigações criminais ou em ações judiciais, nem sempre é preservado. Não é raro, por exemplo, que interceptações telefônicas feitas com o amparo da Justiça sejam divulgadas nos meios de comunicação social, com ofensa ao art. 10 da Lei 9.296/96. E não se tem conhecimento de que haja punição dos que assim procedem.

Finalmente, resta analisar a divulgação dos dados pelo Senador da República. O Parlamentar que recebe informações, evidentemente, não necessita citar a fonte, pois, caso assim fosse obrigado a proceder, com certeza não poderia bem exercer as suas funções. Passa-se aqui o mesmo que ocorre com os jornalistas. Eles têm o direito de resguardar a fonte, como forma de terem acesso às notícias. E isto não é apenas um acordo social. É, na verdade, garantia legal assegurada pela antiga Lei de Imprensa (Lei 5.250/67, artigo 7º: (Será, no entanto, assegurado e respeitado o sigilo quanto às fontes de origem de informações recebidas ou recolhidas por jornalistas…). Portanto, o Parlamentar revela a fonte de informação, se quiser. Evidentemente, se anunciar algo inexistente a situação será outra, cogitando-se, então, de eventual ilícito penal ou administrativo. Não será demais lembrar, todavia, que o Senado não possui Código de Ética.

Concluindo, resta dizer que tudo o que se passa pode ser motivo de amadurecimento de nossa jovem democracia. Equívocos, embates, conflitos, podem ser uma boa via para uma segurança institucional cada vez mais forte. Portanto, a lição que se pode tirar do que se passa é a de que é preciso, com vistas à ética na administração pública, definir melhor o uso e os limites dos cartões corporativos e o que deve ou não ser considerado sigiloso, tudo com vistas a um processo democrático transparente e caracterizado pela lealdade entre o Poder Público e a cidadania.

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