Patrimônio cultural

Novas tecnologias desafiam proteção do direito autoral

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29 de setembro de 2007, 0h00

Chegou a hora de pensar em uma forma de flexibilizar os Direitos Autorais. A bandeira foi levantada pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil, e mobilizou interessados no assunto. Há quem diga que a discussão já começou errada. Direito autoral não pode ser flexibilizado porque o que está em discussão são questões constitucionais. Outros afirmam que a lei de Direitos Autorais precisa conter exceções, até para recepcionar as questões tecnológicas.

Gil, que além de ministro é parte interessada já que autor e compositor de vasta obra musical, defende que é papel do governo liderar a discussão sobre os desafios impostos por novas tecnologias e preencher as conseqüentes lacunas criadas na legislação de direitos autorais. “Como é que as políticas de governo e de Estado podem ignorar essas iniciativas? Da mesma maneira que precisamos fortalecer a gestão coletiva, o governo tem que estar atento às novas iniciativas e apoiá-las, na medida em que sejam legítimas e na direção do reforço da lei e do prestígio do direito autoral”, afirmou o ministro.

Já os colegas de profissão de Gil — como compositor, não como ministro — saem em defesa de seu patrimônio. Compositores e intérpretes não admitem flexibilizar a lei porque, segundo eles, o autor não terá mais o controle de sua obra, além de interferir na arrecadação.

“Pelas afirmações de Gilberto Gil, e de alguns outros defensores da flexibilização do direito autoral, este aparece como o grande vilão contra as novas tecnologias, o que é uma falácia, sem duvida, que só beneficia quem quer usar música sem pagar. Num governo que tem revelado uma extraordinária voracidade fiscal, pergunta-se se a intenção do senhor Gil não seria carrear toda a arrecadação do direito autoral, que não é pequena, para o Ministério da Cultura e estatizá-lo definitivamente”, atacou o compositor Paulo Sérgio Valle, em manifesto.

Paulo Sérgio Valle, autor do clássico Viola Enluarada compôs mais de 20 músicas para o cantor Roberto Carlos e boa parte da trilha sonora do programa infantil Vila Sésamo. Ele coloca que “o modelo atual da legislação autoral “é resultado de uma longa luta por parte dos autores, que ainda requer aperfeiçoamentos, mas não pode ser destruído pela simples vontade de um Ministério com viés estatizante”.

Fernando Brant, também compositor, escreveu carta criticando a postura de Gil. Segundo ele, “quem está por trás desse massacre aos autores são os grupos que dominam a internet: a Microsoft, o Google, as telefônicas, que poderiam usar obras artísticas sem pagar”.

De acordo com o compositor, “quem está a favor dos direitos não é conservador: é civilizado. Autores, artistas e músicos brasileiros protejam-se do ministro bárbaro, exterminador de criadores. Lembrem-se da lição de Cacilda Becker: ‘não me peçam de graça a única coisa que tenho para vender’”. Fernando Brant já compôs mais de 200 canções, entre elas “Canção da América”e “Maria, Maria”.

Direito e tecnologia

O fato é que quando a “nova” Lei de Direitos Autorais foi criada, em 1998 — a Lei 9.610/98 que modificou regras estabelecidas nas décadas de 70 e 80 — legislador e especialistas no assunto não poderiam imaginar que em menos de 10 anos já estaria ultrapassada e superada pela revolução informática.

Música e filme se globalizaram. Os meios de reprodução de som, imagem e texto em geral e a internet em particular banalizaram o acesso aos bens culturais e artísticos. Os sites de troca de áudio e vídeo pulverizaram a propriedade de discos e filmes e tornaram inúteis as formas de controle convencionais de direitos autorais.

Gravadoras e sociedades de arrecadação exercem o seu direito de espernear com o argumento de que a troca de arquivo é ilegal, já que o conteúdo está protegido pelas regras vigentes de Direitos Autorais. Autores e produtores brigam porque as vendas de discos e filmes caem, na proporção inversa em que crescem a popularidade de artistas à margem da indústria cultural.

A Lei 10.695, de 2003, tipifica como crime apenas a reprodução não autorizada de obras protegidas pelo Direito Autoral, desde que feita com fins comerciais. Para tornar mais clara a situação dos que praticam pirataria para proveito próprio, a ABPI (Associação Brasileiro de Propriedade Intelectual) já sugeriu que seja acrescentado mais um parágrafo ao artigo 46 (que trata das exceções) da Lei de Direitos Autorais, para autorizar cópia integral de CD e filme, desde que para uso privado e cópia de produto que já tenha sido adquirido.

A regra permitiria, por exemplo, passar músicas de um CD para MP3, prática que hoje é considerada ilegal, porque deixa de arrecadar direitos autorais. É bem verdade que, apesar de a pratica ser ilegal, seu controle é absolutamente impossível.

“Está na hora de mudar a legislação tanto para permitir cópia de uso privado, individual e educacional, como para combater a pirataria”, defende Gustavo Leonardos, presidente da ABPI. “Só pretendemos proibir que a cópia de uso privado se transforme em fonte de comercialização. O que a lei não pode é proibir que eu faça cópia daquilo que comprei”, diz.

Isto é o máximo que se prevê de flexibilização dos direitos autorais hoje, segundo especialistas. E a proposta pode ser considerada inovadora, se comparada ao que propõem os mais radicais. Há advogado que diz que em termos de restrições já é mais do que suficiente a que permite que a obra caia em domínio público 70 anos depois de sua criação, se o autor não tiver herdeiros, nem tiver cedido os direitos.

“O direito autoral já tem importantes limitações. A discussão não pode ser a de flexibilização, mas de acesso à cultura. O primordial é formar bens culturais e proteger o autor, além de criar medidas mais fortes para combater a pirataria. A questão de flexibilização não poderia ser mais importante, do que a discussão de combate a pirataria. Flexibilizar direitos autorais não faz o Brasil crescer economicamente, Combater a pirataria, sim”, considera Rodrigo Borges Carneiro, advogado do Dannemann Siemsen Advogados.

Atílio Gorini, advogado especialista em Propriedade Intelectual, também do Dannemann Siemsen Advogados, divide da mesma opinião. “É absurda essa inversão de valores. Como se pode discutir flexibilização, se a proteção dada ao autor é mínima?”, indaga.

Os advogados favoráveis à flexibilização afirmam: “A extensão da proteção autoral aos novos domínios virtuais é necessária, se uma nação não quiser sofrer perdas irreparáveis no campo da propriedade intelectual, que hoje permeia literalmente todos os campos do conhecimento humano”. A opinião é do advogado Nehemias Gueiros.

Segundo ele, a solução preconizada pelo ministro Gilberto Gil “é certamente a mais adequada”. O que Gilberto Gil defende é uma espécie de plebiscito, uma consulta pública, dirigida a todos os sujeitos de direito e agentes econômicos que atuam no mercado, bem como a própria sociedade, de forma que a legislação autoral brasileira seja adaptada ao mundo eletrônico. “Isto não significa que se suprimirá quaisquer direitos hoje já em vigor, mormente por ser o direito autoral uma cláusula pétrea da nossa Constituição Federal”, defende Gueiros.

Para o advogado Omar Kaminski, especialista em Direito Informático, o que se vê atualmente são os profissionais mais tradicionalistas de um lado, que querem a manutenção do status quo e ainda mais severidade nas leis, e de outro os estudiosos dos novos fenômenos tecnológicos, que buscam alternativas com vistas ao compartilhamento do conhecimento e divulgação da cultura. “O que temos é de permitir exceções mais amplas, já que a lei tem de evoluir de acordo com a sociedade”, entende Kaminski.

Um bom exemplo é o fair use (ou uso justo) da legislação norte-americana, que possibilita o uso limitado de materiais protegidos por direitos autorais sem que para isso seja necessário pedir autorização do autor ou detentor dos direitos, baseado no direito à liberdade de expressão da primeira emenda à constituição norte-americana. O termo fair use é exclusivo dos EUA.

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