Presente de grego

A Lei do Supersimples e suas inconstitucionalidades

Autor

27 de setembro de 2007, 0h00

No dia 14 de dezembro de 2006 foi aprovada no Congresso Nacional a Lei Complementar 123, mais conhecida como o novo Estatuto das Micro e Pequenas Empresas. Aludido diploma legal também institui o denominado Simples Nacional, popularmente chamado de Supersimples, revogando expressamente a Lei Ordinária 9.317 de 05 de dezembro de 1996, instituidora do Simples Federal, que, assim como o Simples Nacional também consistia numa forma simplificada de arrecadação de tributos.

Citada Lei Complementar tem como essência subjacente uma maior simplificação nas obrigações principais e acessórias daqueles que se enquadrarem no perfil estampado pela lei. Ademais, visava também uma diminuição na carga tributaria sofrida pelas micro e pequenas empresas, com mais abrangência que o Simples Federal, onde somente era possível a inclusão de tributos estaduais e municipais mediante realização de convenio entre as pessoas políticas de direito público.

O simples fato de a União ter incluído tributos estaduais e municipais na Lei Complementar 123/06, por si só, já é fato de grandes controversas entre doutrinares e operadores do Direito, inclusive porque tudo leva a crer que a União invadiu competências dos estados membros e municípios.

Entretanto, tal aspecto poderá ser tratado com maior profundidade em outro momento, isto porque, nestas páginas dedicaremos nossa atenção à questão da responsabilidade dos sócios das micro e pequenas empresas, estatuídas pela legislação do Simples Nacional.

Sabido que a imposição tributária nunca foi bem quista aos olhos dos contribuintes, consistindo em flagrante intervenção do Estado no patrimônio dos seus súditos. Citando o nobre professor de Direito tributário Anderson Furlan[1]: “É cediço que a imposição tributária sempre foi vista com desconfiança e desprezo pela maior parte dos contribuintes em todas as partes do mundo, em todas as épocas. Bem por isso, não se estranha o motivo pelo qual as normas tributarias eram conhecidas na Idade Média como leis odiosas, sendo atualmente denominadas lei incomodáveis ou normas de rejeição social, as quais — sustentam alguns — são cumpridas apenas em função da existência de sanções pelo descumprimento. (…) Referida concepção não encontra albergue no mundo civilizado. O Estado contemporâneo é o Estado Impositivo (Steuerstaat) ou Tributário, ou, melhor ainda, o Estado Social e Tributário de Direito. Assiste-se ao triunfo de modelo impositivo, sendo o tributo o instrumento mais adequado para financiamento do Estado Social, fundamental veículo de financiamento de gastos públicos, intervenção e redistribuição.”

Evidente que os tributos constituem numa forma de financiamento das atividades da máquina estatal. Ademais, consiste também em uma das formas de invasão do Estado no patrimônio dos cidadãos, entretanto começa a ser visto de forma distorcida pelo contribuinte a partir do momento em que este não percebe os retornos advindos do Poder Público, decorrente da arrecadação de tributos convertidos em investimentos públicos, em prol de toda sociedade.

O dever de recolher tributos por parte daqueles que praticam fatos geradores de exações decorre de imposição legal, entretanto, não há na lei qualquer espécie de comando que impeça o contribuinte de buscar formas de reduzir sua carga tributaria. Tanto isto é verdade que nossos tribunais têm admitido a pratica da elisão fiscal, diferente das práticas de evasão fiscal, que é vedada em nosso ordenamento jurídico, que se caracteriza como evidente fato típico e antijurídico.

A partir da realização do fato jurídico tributário, aquele que o praticou fica obrigado a cumprir com suas obrigações legais, principalmente aquelas de natureza financeira. Contudo, a priori, a prestação pecuniária deve ser prestada por aquele que pratica o fato tributário relevante, não estendendo esta responsabilidade a terceiros, exceto nos casos expressamente previstos em lei, como ocorre no caso da substituição ou solidariedade tributaria.

Partindo deste preceito normativo, claro e cristalino que, as obrigações contraídas por pessoas jurídicas não podem ser estendidas a pessoas físicas controladoras do negócio, salvo hipóteses previstas em lei. Admitir tal possibilidade seria o mesmo que desestimular os cidadãos a abrir e gerir seus próprios empreendimentos, negando vigência a preceitos de natureza constitucional que prega a livre iniciativa.

O empresário jamais pode ser responsabilizado pelo desaquecimento do seu negócio, inclusive se tal situação decorre de motivos extrínsecos a sua vontade, como por exemplo, a desaceleração da economia, recessão mundial, inflação, burocracia ou morosidade administrativa. Ademais, ao contrário do entendimento de alguns, a situação não seria facilmente resolvida somente com o encerramento das atividades desta empresa que, além de ser, às vezes, a única fonte de renda de vários cidadãos, geralmente se enquadram numa cadeia de negócios que afeta de forma letal a saúde financeira de várias outras pessoas, físicas e jurídicas.


Por estes e outros motivos devem ser observadas as questões da separação da responsabilidade da pessoa jurídica em relação às pessoas físicas que a conduzem, não podendo, em momento algum, haver confusão entre as obrigações, responsabilidades e patrimônio de cada uma destas.

Contudo, não parece ser este o entendimento do legislador da Lei Complementar 123/06, que, na redação original do seu artigo 78, parágrafo 4º, prevê a possibilidade de responsabilização dos titulares ou sócios da empresa, solidariamente com esta, pelos tributos ou contribuições que não tenha sido pagos ou recolhidos, inclusive multa de mora ou de ofício, conforme o caso e juros de mora.

Mais uma vez, o Estado mostra suas garras com o escopo de adentrar ao patrimônio dos contribuintes, sobrecarregando ainda mais aqueles que suportam a pesadíssima carga tributaria da nossa nação. Neste ponto, importante ressaltar que esta não é a primeira vez que o Estado, visando saciar ainda mais sua ânsia arrecadatória tenta legalizar tal possibilidade, não se importando em momento algum com preceitos legais, inclusive de natureza constitucional, que protegem os contribuintes.

Medida semelhante a esta ora comentada foi aventada pelo nosso Poder Legislativo com a promulgação da Lei Ordinária Federal 8.629/93, na qual também se pretendia responsabilizar solidariamente os sócios das sociedades limitadas pelos débitos da sociedade junto ao Instituto Nacional da Seguridade Social — INSS. Entretanto, aludido dispositivo da lei citada está sendo contestado no Egrégio Supremo Tribunal Federal, por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3.642 e 3.672, com relatoria do Ministro Cezar Peluso, ainda pendentes de julgamento.

Desta forma, acreditamos que o tema proposto para estudo neste trabalho em breve também será contestado perante o Egrégio Supremo Tribunal Federal, com escopo de aferir sua consonância com a Lei Maior.

As obrigações contraídas pela sociedade — pessoa jurídica — jamais se confundem com as obrigações contraídas pelas pessoas físicas que a dirigem, ou vice e versa. Por estes e outros motivos, que se distingue a figura da pessoa jurídica da pessoa física, isto porque, se as obrigações contraídas por estas pudessem se confundir não haveria necessidade de se estabelecer regras distintas para os dois institutos.

Neste ponto, muito importante também se faz destacar a diferença de tratamento que deve ser dispensada aos inadimplentes e aos sonegadores, que não agem da mesma forma. Por conta do risco da empresa, pode ser que uma sociedade econômica atravesse certos períodos de crise, acarretando uma drástica diminuição de arrecadação, gerando, consequentemente, sua inadimplência em alguns setores. Entretanto, este é um problema que acomete somente a sociedade, leia-se, a pessoa jurídica, e não as pessoas físicas que conduzem o negócio.

Ademais, para que seja perfeitamente possível a responsabilização de terceiros, decorrente do inadimplemento de obrigações tributárias, não basta a simples indicação da lei. A individualização do devedor e dos eventuais co-responsáveis é requisito essencial no termo de inscrição da dívida, que servirá posteriormente de lastro à cobrança dos eventuais débitos existentes.

Contudo, como exceção a regra da separação de responsabilidades, podemos citar o disposto nos artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional. Nos dispositivos legais em comento, as hipóteses que possibilitam a agressão ao patrimônio das pessoas físicas que conduzem as atividades da sociedade inadimplente são exaurientes e taxativas, ou seja, fora estas hipóteses elencadas na lei tributária, outras não são admitidas.

No caso em estudo, o que mais nos importa são as disposições contidas no artigo 135 do Código Tributário Nacional, que indica a responsabilização pessoal dos diretores, gestores ou representantes da sociedade devedora, pelos créditos correspondentes às obrigações tributárias decorrentes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.

Ou seja, há necessidade de produção de provas por parte da Fazenda, titular dos créditos tributários que estão em aberto. Se esta conseguir provar que as pessoas físicas que conduzem a sociedade devedora praticaram alguma das condutas estabelecidas na lei tributária, estes poderão ser responsabilizados pessoalmente, mas, frise-se novamente que, tal possibilidade somente é possível nestes casos indicados em lei, mediante apresentação de prova cabal das alegações apresentadas pelo Fisco.

Ainda no tocante à responsabilidade imputada aos sócios da empresa inadimplente, vale destacar que, as hipóteses de responsabilidade tributária definidas pelo artigo 135 do CTN, pelas suas próprias palavras, não se fundam com o mero inadimplemento da sociedade contribuinte, mas sim, na conduta que deve ser dolosa, como indicado pelo próprio legislador, onde, deve haver a comprovação da prática de atos com excesso de poder, infração de lei ou violação do contrato social por parte do gestor da pessoa jurídica.


A pessoa que, no exercício de suas atribuições praticam atos com excesso de poder, ou seja, além daqueles que lhes foram conferidos pelo cargo, função ou mandato, passam a ser pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes às obrigações tributárias geradas pela pratica destes atos.

Neste ponto, importante lembrar que a conduta dolosa, decorrente do excesso de poder deve ser latente, onde o representante legal da empresa deve ter a vontade livre e consciente de querer o resultado diverso daqueles elencados nos documentos societários da empresa.

Ademais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça pacificou entendimento no sentido de que o simples inadimplemento de exações tributárias não caracterizam infração legal. Assim, inexistindo prova de que se tenha agido com excesso de poderes, ou infração de contrato social ou estatutos, não há que falar-se em responsabilidade tributária dos sócios, a título de infração legal.

Neste particular, salutar também destacar que as intenções estatuídas pelo artigo 78 da Lei Complementar 123/06, não guardam compatibilidade com o ordenamento jurídico vigente, conforme problemáticas a seguir articuladas. Prescreve o artigo 146 da Constituição Federal de 1988 que, cabe exclusivamente à lei complementar regular limitações constitucionais ao poder de tributar, bem como, estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária.

Até este ponto, não há nenhuma irregularidade, pois a lei ora em estudo é lei complementar. Entretanto, a Lei Complementar 123/06 não fez menção alguma sobre revogação expressa dos dispositivos contidos no Código Tributário Nacional. Assim, há duas normas jurídicas, com posicionamentos diversos no ordenamento jurídico pátrio, não podendo as mesmas coexistir, sob pena de gerar insegurança jurídica nas relações institucionais.

Ademais, a Lei Complementar 123/06, tem como escopo a instituição do novo estatuto das micro e pequenas empresas, que estariam sujeitas à tributação pelo novo sistema integrado de recolhimento de impostos e contribuições — Simples Nacional, instituído pelo mesmo diploma legal, revogando assim as disposições contidas na Lei Ordinária 9.317, de 05 de dezembro de 1996, que versava sobre o Simples Federal.

Assim, referida lei complementar não tem como escopo regular normas gerais de Direito Tributário, devendo prevalecer aquilo que foi estatuído pelo Código Tributário Nacional que, além de ter status de Lei Complementar, regula toda a matéria constitucional tributária, inclusive sobre questões de responsabilidade tributária.

Diante de todo o estudo até então apresentado, chegamos à conclusão de que as disposições contidas no artigo 78 da Lei Complementar 123/06 não podem subsistir. Isto porque, além de contrariar disposições existentes em diploma legal instituído para tanto — Código Tributário Nacional, que foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 — visa deturpar o significado extraído de normas jurídicas que já regulamentam o instituto da responsabilização tributária por parte das pessoas físicas que conduzem a sociedade empresarial em dificuldades, restando evidente que o dispositivo atacado no presente estudo tem a finalidade única de aumentar a arrecadação tributária, em detrimento dos direitos e garantias dos contribuintes.


[1] FURLAN, Anderson – Revista Dialética de Direito Tributário nº 140

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!