Acesso à Justiça

A importância das defensorias públicas na defesa do povo

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

26 de setembro de 2007, 0h00

A Constituição Federal prevê, como direito fundamental, o acesso à Justiça, inclusive proibindo que a lei exclua da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (artigo 5º, inciso XXXV). Em outros incisos do artigo referido, a Carta Magna assegura formas de que este acesso seja efetivo. Por exemplo, garantindo a assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de fundos (inciso LXXIV), dando ao preso o direito de permanecer calado e ter a assistência de advogado (inciso LXIII) ou a gratuidade nas ações de Habeas Corpus (inciso LXXVII).

Todavia, o acesso à Justiça não se limita a poder ingressar no Poder Judiciário. Este primeiro passo, claro, é da maior importância. Mas, por si só, não atende ao objetivo constitucional. É preciso que haja efetividade, que, nas palavras de Luis Roberto Barroso, significa “a realização do direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social (O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas”, Ed. Renovar, 3. ed., p. 83).

Na busca da efetividade a que se refere Barroso, a Emenda Constitucional 45/04 introduziu, no artigo 5º, o inciso LXXVIII, dispondo que: a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Portanto, cumpre dar cumprimento à norma constitucional, fazendo com que o acesso seja não apenas amplo, como efetivo.

A origem e a atual situação das Defensorias Públicas

As Defensorias Públicas existem há muito tempo, em países da América Latina. Na Constituição da Argentina, a Defensoria Pública vela pelos direitos e bens dos menores e incapazes, dos pobres e dos ausentes. O artigo 86 é claro ao dizer que o órgão atuará com independência e sem instruções de nenhuma autoridade. Na Bolívia, o defensor do povo está previsto nos artigos 127 a 131 da Carta Magna. Na Colômbia, o artigo 281 da Constituição prevê a figura do defensor do povo, porém subordinado à autoridade do Ministério Público, sendo que o artigo 282 lhe atribui, como principal tarefa, zelar pelos direitos humanos.

O Equador prevê a existência de um defensor do povo com poderes sobre toda a nação, sendo que o artigo 96 da Lei Maior lhe dá-lhe atribuições de zelar pelos direitos fundamentais e pela qualidade dos serviços da administração pública. A Constituição do Paraguai, no artigo 276, dá ao defensor do povo poderes para zelar pelos direitos humanos, canalizar os reclamos populares e defender os interesses comunitários, gozando de autonomia e vitaliciedade, conforme previsão no artigo 277. A Constituição venezuelana prevê a figura do defensor do povo no artigo 156.

No Brasil, a Constituição de 1988 foi a primeira a prever essa instituição, conforme o disposto no artigo 134, que diz: a Defensoria é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV.

No âmbito da União, a Defensoria é regulada pela Lei Complementar 80/94 que, inclusive, prescreve normas gerais para a sua organização nos estados. A Defensoria da União se encontra instalada, todavia ainda sem a estrutura material e de pessoal necessárias. Na verdade, os defensores ainda são poucos e lutam com enormes dificuldades para o exercício de suas funções. Já foram realizados dois concursos para Defensor Público, foi publicado edital para a realização do terceiro concurso público, e a atuação do órgão, aos poucos, vai se tornando mais conhecida e efetiva.

Na área estadual, a situação é diversificada. Alguns estados, como Santa Catarina, ainda não implementaram a Defensoria Pública. Em outros, como o Paraná, ela existe, mas tem uma estrutura reduzida. Em alguns, como São Paulo, ela só agora começa a tornar-se realidade, com a realização de concursos públicos para Defensores. A situação melhor parece estar nos Estados do Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro.

A evolução das Defensorias Públicas brasileiras

A omissão do Poder Executivo em implantar as defensorias passa, sem dúvida, pelo ônus financeiro que isto representa. Sabidamente, a maior parte dos estados membros enfrenta difícil situação financeira. Alguns estão insolventes e mal conseguem pagar seus funcionários e pensionistas. O acréscimo nas despesas, com a criação ou aumento das defensorias, acaba se tornando quase inviável. E aí com uma peculiaridade nem sempre percebida, que é a de no Poder Público as profissões jurídicas terem remuneração melhor do que as técnicas.Assim, prefere um governador nomear mais médicos ou professores a profissionais das carreiras jurídicas, entre os quais os defensores, que gozam do direito à remuneração por subsídio (CF, artigos. 135 c.c. 39, § 4º). Mas este, evidentemente, é um problema que não justifica o descumprimento da regra constitucional do artigo 134, que atribui à defensoria a orientação e defesa dos necessitados.

Ainda são poucos os estudos sobre a Defensoria Pública no Brasil. No ano de 2006, a Secretaria da Reforma do Judiciário tomou importante iniciativa ao efetuar um levantamento da realidade do órgão em todo o Brasil. Ainda que tais dados já estejam relativamente desatualizados, o certo é que eles permitem visualizar como essa instituição ainda está carente de meios para uma atuação efetiva. Vejamos o ranking das Defensorias Públicas dos Estados, segundo informação no item “Defensoria Pública” do site www.mj.gov.br :

Unidades da Federação Classificação
Mato Grosso do Sul
Rio de Janeiro
Amapá
Distrito Federal
Roraima
Rondônia
Paraíba
Acre
Minas Gerais
Pernambuco 10º
Rio Grande do Sul 11º
Pará 12º
Tocantins 13º
Alagoas 14º
Sergipe 15º
Ceará 16º
Mato Grosso 17º
Espírito Santo 18º
Bahia 19º
Amazonas 20º
Piauí 21º
Maranhão 22º

Paraná — Instituída pela Lei Complementar 55, de 04 de fevereiro de 1991.

São Paulo — criada pela Lei Complementar n. 988, de 09 de janeiro de 2006, de 307 defensores públicos.

Atualmente, não é negado o acesso à Justiça aos menos favorecidos economicamente. Mas, sem dúvida, ele encontra maiores obstáculos. E tudo começa pela simples condição de pouca cultura, com contratos apenas verbais, falta de documentos, desconhecimento e falta de dinheiro para conseguir uma simples certidão de um cartório distribuidor.

Na área cível, mesmo onde existam Defensorias Públicas, raramente haverá estrutura para atender a demanda. Disto decorre que, na maior parte das vezes, o cidadão que não puder pagar advogado será atendido por acadêmicos de direito, em estágios oferecidos pelas faculdades, ou por um advogado nomeado pelo juiz.

As dificuldades começam nas coisas mais simples, desde a inexistência de contrato formal até a dificuldade para enviar um fax ou reconhecer a própria firma em tabelionato. Proposta a ação, nem sempre com a qualidade técnica desejável, surgirão obstáculos da rotina forense. Por exemplo, a dificuldade de se cumprir uma carta precatória com gratuidade da Justiça ou mesmo indicar testemunhas residentes em bairros distantes, cuja intimação é problemática porque põe em risco o Oficial de Justiça.

No âmbito criminal, a maioria dos estados não dispõe de Defensor Público em todas as comarcas. Assim, detido pela autoridade policial, denunciado pelo Ministério Público, não raro o infrator chega praticamente indefeso ao Juiz, tudo confessando ingenuamente. Depois, se os fatos se derem em comarca do interior, com certeza não terá alguém que sustente uma apelação no Tribunal de segunda instância. E muito menos quem saiba e se habilite a interpor um recurso especial ou extraordinário às Cortes Superiores.

Na execução da pena, as dificuldades prosseguirão na mesma linha. Ao contrário, aquele que goza de recursos financeiros, terá orientação prévia a qualquer investigação, assistência plena e, desde o início, caso os fatos sejam averiguados, acompanhamento seguro na instrução penal, acesso a Cortes Superiores e farta jurisprudência liberal para ser invocada. Há aí uma igualdade jurídica apenas formal, que se opõe à realidade concreta, como bem lembra, com dados profundos, Luigi Ferrajoli (Derechos y garantias, Ed. Trotta, p. 77).

Instituição emergente, aos poucos a Defensoria Pública vai conquistando o espaço que lhe é devido. Consulta ao site www.google.com.br, em 21 de setembro de 2007, demonstra o crescente número de providências que vêm sendo tomadas, no sentido de dar ao órgão maior eficiência. A título de ilustração, citam-se algumas: a) o dia 19 de maio foi escolhido como o dia do Defensor Público; b) defensoria do Rio de Janeiro passa a ter autonomia financeira; c) defensoria do Rio Grande do Sul moderniza a comunicação com a sociedade; d) defensoria do Acre passa a atender no lar as pessoas com dificuldade de ir à sua sede; e) Defensoria da União abre novo concurso público.

Examinado o tema, é possível se chegar a algumas conclusões: a) os mais carentes do ponto de vista econômico sofrem maiores dificuldade de acesso e de efetividade junto à Justiça, como de resto, em todas as áreas do serviço público; b) a via certa para corrigir esta anomalia, ainda que não seja a única, é a implementação e o fortalecimento das Defensorias Públicas; c) na busca desse objetivo a sociedade civil deve se mobilizar, pressionando o Poder Executivo a dar efetividade à regra do artigo 134 da Constituição Federal.

Vladimir Passos de Freitas é desembargador aposentado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente, é professor de Direito Ambiental da PUC/PR e ex-presidente da Ajufe. É também presidente do Ibrajus, primeira ONG brasileira de estudos de administração da Justiça.

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