Falta de educação

O que está por trás das críticas à criação de escolas

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25 de setembro de 2007, 18h20

O universo jurídico brasileiro tem crescido em escala geométrica nos últimos anos. Os números são estonteantes (clique aqui para ver os números do CNJ). Mas a profissionalização da advocacia e a adoção de métodos empresariais na sua gerência ainda não derrubaram um tabu: para boa parte da comunidade jurídica, falar de sucesso é ofensa pessoal e dinheiro é palavrão.

O mercado jurídico acompanha os passos de outros segmentos prósperos da economia. Mas enquanto se vê com naturalidade a divulgação de rankings, perfis empresariais e notícias sobre o crescimento de outras atividades, a aceitação não é a mesma quando se trata da indústria do Direito.

Notícias que relacionem listas dos maiores escritórios ou retratem advogados e sociedades bem sucedidas são apedrejadas alucinadamente por setores menos afeitos à nova realidade. E logo surgem expressões antigas como o sacerdócio da profissão ou mercantilização do santo ofício. Fica a impressão de que coexistem num mesmo espaço uma advocacia do século XXI, com algo que sobrou da mentalidade do século XIX.

Na semana passada, uma reportagem sobre as escolas que mais aprovaram no Exame de Ordem da OAB-SP (clique aqui para ler) revoltou alguns leitores. O texto enalteceu os mais de 1.400 candidatos que uma determinada universidade aprovou dentre os 10 mil novos advogados que ingressaram na profissão em dois concursos recentes. Informou-se os percentuais, bem mais altos, ostentados pelas escolas tradicionais, como a São Francisco (USP). Comparações foram repelidas, números foram colocados em dúvida e a reportagem sob suspeita.

A provocação e a reação são oportunas para um exame desse quadro psicológico e da quadra vivida pelo país nesse aspecto. Essa quadra registra um fato: a arrancada do ensino privado no Brasil de hoje.

Os fatores a explicar o fenômeno são múltiplos. Mas a realidade é que dos últimos sete ministros nomeados para o Supremo Tribunal Federal, quatro formaram-se em escolas privadas. Os concursos para a magistratura e todas as carreiras jurídicas refletem a mesma coisa. Idem em relação aos departamentos jurídicos de empresas e grandes escritórios de advocacia: a presença dos diplomados em faculdades particulares é cada vez maior.

A Unip, rede de ensino superior que encabeçou a lista de escolas que mais aprovaram nos exames de ingresso na OAB-SP (em números absolutos) foi destacada por este site como autora de uma proeza, ainda que a relação entre inscritos e aprovados favoreça, acentuadamente, as escolas tradicionais. A opção editorial desta publicação eletrônica foi atacada. Mas o fato é que dos 10 mil novos advogados paulistas, 3% vieram da USP e 14% saíram da Unip. Todos passaram igualmente, pelo difícil exame da Ordem.

O site procurou o coordenador-geral do curso de direito da Unip, Ruben Garcia, para examinar o contexto que opõe, de um lado, os bacharéis formados nas célebres escolas como a São Francisco (criada em 1827), PUC (1946) Mackenzie (1952) e as particulares, criadas mais recentemente. As tradicionais, preferidas pela elite econômica. As mais novas, opção majoritária de trabalhadores e jovens que não tiveram as mesmas chances que os concorrentes.

A rede privada tem mais de 70% de seus alunos matriculados em cursos noturnos. Essas escolas são quase sempre a única oportunidade que muitos têm de uma inserção social mais digna. Atacar, genericamente, as faculdades privadas que praticam o “pecado” de buscar no ensino uma atividade empresarial é uma forma de pregar a muralha social e econômica que divide o Brasil.

Segundo Garcia, a escola privada hoje no Brasil “supre deficiência do Estado para permitir que a camada menos privilegiada da população tenha acesso à universidade”. Esse papel, enfatiza o professor “é um processo que avança sobre obstáculos pedregosos, mas que beneficia o país”.

Ainda assim, registra, sua escola — que formou sua primeira turma em 1994 — foi das que mais aprovou no último concurso do Ministério Público em São Paulo; colocou em primeiro lugar um ex-aluno no concurso de ingresso da magistratura paulista e em outros certames significativos. “O que é preciso compreender”, ressalva Garcia, “é que o campeonato da vida não é como a Olimpíada, onde só há três lugares no pódio: um país de 180 milhões de habitantes precisa que todos sejam vencedores em algum plano. É assim que se constrói a nação”.

Quando a Unip, pela primeira vez, tornou-se a escola que mais candidatos aprovou no Exame de Ordem em São Paulo (em números absolutos), um diretor da São Francisco criticou: os cursos privados desenvolvem padrões de ensino pré-moldados, ligados às necessidades do “mercado”.

Garcia, que se formou na São Francisco, garante que não há diferenças fundamentais entre as escolas, em termos de conteúdo. E confirma o cultivo de filosofia “mais cartesiana, mais objetiva e voltada para a inserção no mercado”. O professor enfatiza que o domínio técnico do Direito proporcionado pela escola prepara o bacharel, ainda que seu objetivo não seja o de seguir as carreiras jurídicas tradicionais.

Faz parte do discurso da OAB lutar contra a criação de novos cursos jurídicos. Pratica-se a noção de que mais escolas significa menos qualidade. E que escolas novas seriam, necessariamente, ruins. Um claro equívoco. A Facamp, escola de Campinas fundada por Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manoel Cardoso de Mello há apenas 5 anos foi a terceira que mais aprovou, percentualmente, no último Exame de Ordem.

Nada disso tira o mérito das grandes grifes do ensino, como a São Francisco, PUC, Mackenzie e as respeitáveis universidades federais de todo o Brasil que cumprem seu papel com louvor. Loas a elas pela sua contribuição acadêmica e a seus brilhantes bacharéis. Mas não é correto imaginar que a juventude brasileira cabe inteira nelas. Tampouco é justo discriminar profissionais pelo brasão de seus diplomas, relevando o que realmente importa: o talento de seus donos. Quem não o tiver, não será bom advogado, bom juiz ou bom promotor. O próprio bacharel terá que encontrar sua vocação fora das carreiras jurídicas. Mas não terá perdido nada por ter feito o curso de Direito. Muito pelo contrário.

A massificação da educação universitária teria afetado a qualidade do ensino. A escola pública decaiu em razão do desmonte do Estado que não consegue oferecer serviços básicos à população. Não é difícil concluir que o desafio é combater a má qualidade do ensino e não as escolas. Opor-se à criação de escolas em um país que tem a falta de educação como problema fundamental não é solução. Transposto para a área da saúde, equivaleria a defender o fechamento de hospitais e escolas de medicina porque o atendimento médico no Brasil é ruim.

Interessantemente, contudo, as mesmas pessoas que defendem o fechamento de escolas que atendem a maior parte da população resistem às tentativas de avaliação como o antigo “provão” e o Enade. É de se perguntar se esses críticos estão preocupados com a qualidade do ensino ou com a reserva do mercado profissional.

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