Bombeiros do Congresso

Legislativo transfere suas fraquezas para o Judiciário

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22 de setembro de 2007, 0h01

Sumido numa crise que abala sua credibilidade e seus poderes, o Legislativo foi buscar no Judiciário a solução para seus problemas existenciais. Pelo menos três questões suscitadas no recinto parlamentar nas duas últimas semanas desaguaram no plenário do Supremo Tribunal Federal. O tribunal não deixou de acolher as demandas dos parlamentares, mas não perdeu a oportunidade para chamar os congressistas à responsabilidade. No julgamento do Mandado de Injunção 708, na quarta-feira (19/9), os ministros cobraram mais uma vez a regulamentação do direito de greve de servidores públicos que o Congresso deve à nação há quase 20 anos.

Fazer ou não sessões e votações secretas no Congresso é questão que diz respeito ao regimento interno e às práticas parlamentares, que deveria ser resolvida pelos congressistas, mas esta foi uma das causas que fez senadores e deputados pedirem socorro à Justiça nos últimos dias. Outra questão não menos prosaica – a retirada da pauta de Medidas Provisórias para permitir votação de matéria do interesse do governo – envolve também o Executivo, mas ainda assim sua solução está plenamente dentro da competência do Legislativo.

Na pauta do STF aguardam decisão outras causas de natureza genuinamente legislativa e política, como a verticalização nas eleições, a fidelidade partidária e a cláusula de barreira. Quanto mais o Congresso se perde em suas próprias contradições, mais trabalho dá ao Judiciário.

Não é de hoje que o Poder Legislativo se socorre do Judiciário para solucionar problemas e esta é uma situação para a qual os ministros do Supremo estão atentos. “Não somos o foro apropriado para arbitrar questões políticas. Mas somos a última instância, temos de decidir”, explica o ministro Ricardo Lewandowski. De acordo com Lewandowski, o Legislativo acaba deixando de atuar em casos cruciais, que exigem respostas políticas próprias e mais adequadas ao Parlamento do que ao Judiciário. “Há um fenômeno reconhecido por especialistas e juristas, que é a judicialização da política. É quando o Judiciário passa a ser árbitro das questões políticas. E questões políticas têm de ser resolvidas com olhos políticos, pois dependem de certa transigência, de consenso. O Judiciário decide sim ou não, tecnicamente”, conclui Lewandowski.

O ministro Celso de Mello defende que ainda que revestido de forte caráter político, os pedidos do Legislativo carecem de manifestação do STF, caso envolvam direitos assegurados pela Constituição. Segundo o ministro, o Supremo tem se portado com muita propriedade numa área naturalmente escorregadia. “O importante é impedir que a judicialização da política culmine na inconveniente politização do Judiciário”, afirma. Para o ministro, o reclamo de direitos constitucionais violados transpõe o princípio da separação dos poderes. “O Supremo sempre se pautou por esta atuação. Se houver violação de direitos constitucionais, não há que se falar em separação de poderes”, afirma.

Cioso do princípio da divisão de poderes, o ministro Marco Aurélio, do STF, acredita que o Judiciário só deve estender a mão para o Legislativo em casos extremos e excepcionais. “Tanto quanto possível é preciso preservar a atividade de outro poder. Assim, o Judiciário deve atuar em situações excepcionais, no sentido de preservar a independência dos poderes”, afirma.

Limites do voto

O deputado Antonio Carlos Pannunzio (PSDB-SP) assume que o Congresso deveria cuidar dos próprios problemas, mas reconhece que não tem sido capaz disso. Nestas circunstâncias, procurar o Judiciário para apagar o incêndio não é motivo de vergonha, nem sinal de desorganização e incompetência. “Com o Executivo hipertrofiado e uma maioria no Congresso submissa à sua vontade, ficamos obrigados a recorrer ao Judiciário. No Parlamento, tudo depende de voto, e sem voto a minoria acaba recorrendo à Justiça”, afirma.

Pannunzio esteve no Supremo esta semana, acompanhado dos colegas Ronaldo Caiado (DEM-GO) e Fernando Coruja (PPS-SC), para entregar três Ações Direitas de Inconstitucionalidade contra as Medidas Provisórias que revogaram outras para destrancar a pauta da Câmara e permitir a votação da Emenda Constitucional que prorroga a cobrança da CPMF.

O PSDB já está anunciando outra investida ao Supremo. Será a quarta Ação Direita de Inconstitucionalidade em menos de uma semana. Os partidos alegam que estão agindo contra as “interferências abusivas” do Executivo sobre o Legislativo. Na semana que vem a oposição deve recorrer contra a MP 349, que reeditou a MP 379 do Desarmamento, uma das revogadas para desobstruir a pauta.

Culpa da Constituição

Para o deputado federal Flávio Dino (PCdoB-MA), quatro elementos se unem para formar este quadro. O primeiro é o próprio formato da Constituição de 1988. “Quanto mais detalhista a Constituição, maior a possibilidade de conflitos políticos resvalarem em questões constitucionais”, explica. O segundo, a composição do Supremo, a mais ativista da história, a partir da renovação promovida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que já indicou sete ministros. “Temos um Supremo que pratica menos a auto-contenção. Assim, o ativismo transforma qualquer questão política em matéria constitucional, o que justifica a intervenção do Supremo.”

O terceiro fator, segundo o deputado comunista, é a forte influência do governo sobre uma base parlamentar muito ampla na Câmara dos Deputados. “Na disputa voto a voto é difícil uma vitória da oposição, que acaba procurando o Supremo como via recursal.” A quarta e última explicação para o fenômeno seria a alta popularidade do governo Lula. “Se a oposição não vence no Parlamento e não vence na rua procura os tribunais. É como se a oposição não tivesse lócus de luta política”, conclui o deputado.

O Congresso tentar criar na Justiça uma extensão da arena política não é novidade, nem privilégio da atual legislatura. Só os papéis e as legendas mudaram. No governo Fernando Henrique, eram o PT e os outros partidos que hoje formam a base governista que buscavam no Judiciário reforço para enfrentar as forças da situação.

Legislativo ausente

Seja pela incapacidade de resolver por si mesmo seus conflitos, seja pela impotência em levar a cabo sua tarefa, o Congresso Nacioal segue dando trabalho ao Supremo. Nesta semana, o STF começou a delimitar e ampliar os limites do Mandado de Injunção, instrumento que possibilita à Corte suprir a ausência de regulamentação de um direito previsto na Constituição.

Os ministros retomaram o julgamento de Mandado que pede a regulamentação do direito de greve dos servidores públicos. Sete dos 11 ministros do Supremo já se manifestaram nesta e em outras votações no sentido de que as regras ditadas para o setor privado, na Lei 7.783/89, devem ser aplicadas por analogia ao setor público.

Em seu voto, o ministro Celso de Mello relembrou que, depois de 19 anos que a Constituição foi promulgada, o Congresso continua a se abster de editar a lei. O ministro lembrou que, há 13 anos, ele foi relator de um outro MI que reconheceu a demora. “Registra-se, portanto, quase decorrido o período de uma geração, clara situação positivadora de omissão abusiva no adimplemento da prestação legislativa imposta, pela Constituição da República, à União Federal”, anotou Celso de Mello.

Para o ministro, esta situação o leva a reconhecer “que não mais se pode tolerar, sob pena de fraudar-se a vontade da Constituição, esse estado de continuada, inaceitável, irrazoável e abusiva inércia da União Federal, cuja omissão, além de lesiva ao direito dos servidores públicos civis – a quem se vem negando, arbitrariamente, o exercício do direito de greve, já assegurado pelo texto constitucional —, traduz um incompreensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República”.

O ministro Ricardo Lewandowski acredita que Supremo substituiria o Legislativo e o Executivo determinando aplicação da lei que regula greve no setor privado ao serviço público. “Quando o Judiciário ‘legisla’, passa a arbitrar questões políticas, impõe soluções nem sempre as mais apropriadas. É quase uma camisa de força se impondo a sociedade”, afirma o ministro. O direito de greve no setor público está previsto na Constituição, mas pendente de regulamentação por lei específica desde 1988.

De acordo com informações do site da Câmara dos Deputados, assim como o direito de greve, outros 100 dispositivos da Constituição ainda carecem de regulamentação. Se depender da nova interpretação que se forma no Supremo sobre o Mandado de Injunção e da população consciente e reclamante de seus direitos, as expectativas sociais passarão do legislador ao juiz.

Para José Levi Mello do Amaral Júnior, professor de Direito Constitucional do Centro Universitário de Brasília, o ponto mais delicado do tema é a transferência do poder de legislar do Congresso para o Supremo. José Levi se filia ao entendimento do ministro aposentado do Supremo, Moreira Alves, de que diante de Mandado de Injunção a Corte pode apenas constatar a mora e determinar sua regulamentação em 60 dias, por exemplo. “A lógica dos poderes da República é: quem legisla é o Legislativo, e o Executivo, eventualmente. O Judiciário nunca. Fora daí é direito alternativo”, afirma.

Foi o que aconteceu no caso do direito de greve de servidor público. Em 1994, ao julgar o Mandado de Injunção 20, o Supremo reconheceu a mora legislativa sobre a matéria. Desde então já se passaram 4.870 dias e a matéria continua à espera da boa vontade do Congresso para ser regulamentada.

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