Engodo ético

Acabar com o voto secreto no Congresso é pura ilusão

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22 de setembro de 2007, 16h06

Mais de uma semana depois da sessão de 12 de setembro, 46 senadores continuam declarando que votaram pela perda do mandato de Renan Calheiros, por quebra de decoro. Como foram 35 os votos pela cassação, pode-se chegar a três conclusões: a) 11 senadores são mentirosos; b) com voto aberto, Renan teria ido para casa; c) o voto secreto tem de acabar para reduzir a impunidade entre os políticos. A primeira conclusão é vergonhosamente óbvia, a segunda tem boa probabilidade de ser verdadeira, mas a terceira pode não passar de ilusão. No caso, uma ilusão de ética.

Episódios como a absolvição de Renan favorecem idéias ousadas que podem se revelar desastrosas. Em 1993, devastado pela CPI dos Anões do Orçamento, o Congresso aprovou uma Lei de Licitações que descrevia 17 novos crimes e tratava governantes e fornecedores como ladrões em potencial. Passados 14 anos, a Lei no 8.666 resultou em obras paradas, estatais dilapidadas e servidores amesquinhados, mas levou poucos gatunos à prisão. Sintonizada com o clamor da sociedade, foi a ilusão de ética daquela temporada.

Faz sucesso agora defender o fim do voto secreto no Legislativo. Trata-se de uma idéia fixa do PT, que costuma retornar nos surtos de atavismo esquerdista ou na ressaca de escândalos políticos. Em 2003, antes do Waldomiro, do mensalão, dos vampiros e dos aloprados, o Senado rejeitou projeto do petista Tião Viana que proibia decisões sigilosas. Em setembro de 2006, depois dos escândalos e a um mês das eleições, a Câmara aprovou uma proposta semelhante, mas não concluiu a votação do projeto. Citando o poeta Oswald de Andrade: As coisas vão / As coisas vêm / As coisas / Vão e vêm / Não em vão.

Na origem, o voto secreto protegia os representantes do povo contra a tirania do rei. No Brasil, o ritual se aplica quando o Senado examina os nomes de embaixadores e ministros do Supremo, indicações personalíssimas do presidente da República. Também é secreto o voto de deputados e senadores para derrubar vetos do Executivo a leis aprovadas pelo Congresso, um clássico do confronto entre poderes. Nesses casos, quebrar o sigilo não tornaria o Congresso mais transparente, apenas mais vulnerável.

Temos ainda o sigilo nos processos de cassação, que não favorece a independência do Legislativo, mas a cumplicidade corporativa, segundo a opinião estabelecida. É verdade que o voto secreto preservou Renan, mas serviu para cassar Jabes Rabelo, ex-deputado suspeito de ligações com o tráfico internacional, em 1990, e o poderoso José Dirceu, em 2005. O ex-ministro queixa-se até hoje de que 25 “traidores” prometeram livrá-lo e fizeram o contrário, protegidos – que ironia – pelo voto secreto.

Presume-se que nem Dirceu nem Zebedeu sobreviveriam a julgamentos políticos abertos, vigiados pela opinião pública, com os plenários transformados em pelotões de fuzilamento. A conseqüência mais provável é que os processos por quebra de decoro, caso o voto fosse aberto, viessem a ser banidos do arsenal da luta política. Por sua extrema letalidade, seriam usados apenas para mútua dissuasão e alta chantagem, como os mísseis nucleares ao longo da Guerra Fria.

O processo aberto de cassação seria um erro construído sobre um equívoco. Quem comete um crime, seja senador, seja encanador, deve ser denunciado, processado e julgado por quem de direito: a Justiça. Mandá-lo ao Conselho de Ética é um atalho para dois destinos: o paredão ou a pizzaria. É usurpação de competência, mesmo num país de Justiça lenta ou complacente. Seria menos espetacular e mais eficiente se o Congresso passasse a remeter denúncias contra parlamentares ao Ministério Público e a autorizar que eles sejam processados nos tribunais. É assim em muitos países e assim já foi no Brasil. Deveria voltar a ser.

Artigo publicado na revista Época desta semana

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