Escapatória ilegítima

Fugir antes da condenação é resistência ativa e ilegal

Autor

21 de setembro de 2007, 16h58

O processo penal visa a elucidar a verdade sobre a prática de um crime. Mas a história ensina que os piores excessos persecutórios foram cometidos em nome da busca dessa verdade — muitas vezes porque o real objetivo era outro, ligado à idéia de que o poder corrompe; outras vezes porque o acusador não percebeu que nem o processo penal nem a descoberta da verdade são fins em si, mas meios de pacificação com justiça.

O Estado instituiu, então, limites para o processo penal: o ônus da prova incumbe ao acusador, que deve demonstrar cabalmente o que alega: é o princípio da presunção da inocência. E deve fazer essa demonstração com provas lícitas e em observância a um procedimento: é o princípio do devido processo legal. Se a verdade não vier à tona desse modo, melhor que não venha — a vida e a liberdade de gente demais foram sacrificadas em seu altar.

O réu passou a ter o direito de não colaborar — esse direito é uma das bases da Democracia e do Estado de Direito e corresponde a uma daquelas concepções que integram o patrimônio moral da humanidade. Mas é preciso distingui-lo do direito de atrapalhar, que não existe nem tem conteúdo moral: o processo penal não pode ser uma linha de montagem de condenações nem tampouco um catalisador de absolvições. Exemplo de distinção: se o réu mora em local distante e de difícil acesso, não é obrigado a avisar à Justiça como se chega a seu endereço ou a se mudar para mais perto. Mas não pode declarar endereço falso ou pedir o adiamento de atos com falsos motivos.

Todas essas idéias se aplicam à prisão e à liberdade antes da condenação final. O réu criminal não necessariamente ficará preso durante o processo. Se está em liberdade plena, isto é, se não foi preso em flagrante e depois posto em liberdade provisória, não é obrigado sequer a comparecer espontaneamente aos atos do processo.

O Estado só pode prender o réu antes da condenação se provar que sua liberdade significa risco para a sociedade (o chefe de uma rede de tráfico de drogas dificilmente paralisaria suas atividades por estar sendo processado) ou para o processo (esse mesmo chefe tenderia a coagir testemunhas de sua comunidade a negarem a verdade) ou ainda que há um risco concreto para a aplicação da lei. Nesta última situação, o Estado não pode especular: deve demonstrar com dados concretos que o réu tende, se solto, a opor um modo específico de resistência ativa à condenação: a fuga, entendida tanto como evasão quanto como ocultação.

O réu não precisa, se definitivamente condenado, sair de sua casa e bater à porta do presídio com sua sentença debaixo do braço: pode esperar que a Justiça faça cumprir sua decisão. Cabe ao Estado, vitorioso em sua pretensão de punir, executar a sentença. Ao ficar inerte, o réu não estaria atrapalhando; apenas não estaria colaborando.

Mas a fuga antes da sentença é uma das formas mais elementares de resistência ativa: ela envolve ação — diferente da simples inércia — voltada para impedir que o Estado faça o que deve: executar a condenação final. Imaginar que o confronto é a única forma de resistência ativa sugere um olhar mais atento à história da humanidade e às leis da natureza, que revelam a fuga como alternativa ao confronto, mas não como equivalente à inércia. Os exemplos vão da Resistência Francesa às brigas entre cães e gatos.

Nada disso significa que a liberdade do réu durante o processo seja um faz-de-conta: para haver fuga, deve haver intenção de fuga. Se ele viaja a negócios sem comunicar a Justiça, pode receber uma advertência, mas, se comprovar a finalidade profissional da viagem, não cabe, em princípio, prendê-lo porque viajou. A prova da intenção incumbe, claro, ao Estado.

Tudo isso para reafirmar o óbvio, que anda sombreado no panteão das boas intenções: ao fugir, o réu pratica uma forma de resistência ativa, inclusive à luz de postulados naturais ou da razão. E a resistência ativa a um ato lícito é, por definição, ilícita.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!