Papel de juiz

STJ defende ministro que foi alvo de repúdio da Aasp

Autor

20 de setembro de 2007, 20h47

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça desagravou o ministro Humberto Gomes de Barros, na sessão do STJ da quarta-feira (19/9). Barros foi alvo de moção de repúdio da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp).

Os advogados repudiaram a decisão de relatoria do ministro no Recurso Especial 954.859/SP. No recurso, a 3ª Turma do STJ, por unanimidade, entendeu que não depende de intimação pessoal a contagem do prazo de 15 dias para pagamento de condenação de quantia certa. A Turma concluiu que o prazo deve ser contado a partir do trânsito em julgado da decisão. No trecho repudiado pela Aasp, o ministro afirma que, se por desleixo o advogado omite informação ao cliente e o expõe a multa, deve responder pelos prejuízos decorrentes da omissão.

Gomes de Barros respondeu à carta de repúdio enviada pela Aasp no dia 13 de setembro. Nesta quarta-feira (19/9), a Corte do STJ subscreveu o apoio integral a seu membro.

Os ministros Peçanha Martins, vice-presidente do STJ, e João Otávio de Noronha contestaram as palavras da Aasp. “O ataque não foi à pessoa do ministro Gomes de Barros, mas a uma posição dessa corte soberana, que deve sempre contar com a soberania de seus membros. Querem amordaçar um juiz de Direito”, ressaltou o ministro Noronha. O presidente do STJ, ministro Raphael de Barros Monteiro Filho, determinou o registro em ata da manifestação de desagravo.

O ministro João Otávio de Noronha pediu a palavra para falar sobre o que considerou “injusto ataque” ao ministro Humberto Gomes de Barros. Para Noronha, a Aasp não impugnou o julgado da 3ª Turma “pelas formas previstas no Direito”. Segundo o ministro, “a moção da associação não traduz o posicionamento dos advogados do estado de São Paulo nem do Brasil”.

João Otávio de Noronha destacou o apoio de muitos advogados a Gomes de Barros. “O ministro é um magistrado dedicado, trabalhador e íntegro. A sua decisão foi extremamente correta e comungada pelos membros da 3ª Turma. Esse tipo de acontecimento é lamentável em uma comunidade jurídica em que se devem trabalhar juntos — magistratura, advocacia e Ministério Público.”

O vice-presidente do STJ, ministro Peçanha Martins, concordou com o colega Noronha e enfatizou: “O ministro Gomes de Barros não é somente um representante da advocacia alagoana que chegou ao Superior Tribunal de Justiça, mas um representante da advocacia e da magistratura nacionais”.

O procurador do Estado de Alagoas Aluísio Lundgren Correa Regis, que também atua como advogado junto aos tribunais superiores em Brasília, se manifestou a favor do ministro Gomes de Barros. “Quero me solidarizar acompanhando as palavras proferidas pelo ministro João Otávio de Noronha, em nome da Associação dos Procuradores do Estado de Alagoas (APE) e das seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil de Alagoas e Brasília.”

O ministro Humberto Gomes de Barros, alvo do repúdio e do desagravo, observou que o acontecimento está vinculado a um fenômeno — a mudança cultural de distribuição da Justiça. “O Poder Judiciário está se transformando, efetivamente, em um Poder que não mais profere apenas decisões condenatórias, mas mandamentais.”

Essa mudança, segundo o ministro, “faz-se com luta, com resistência. E os advogados que repudiaram meu voto estão nessa resistência. Tenho fundadas esperanças de que isso se reveja”. E completou: “Acredito que o STJ — cumprindo a sua missão — definiu e está definindo qual é a interpretação da lei nova. Ele quebra a tradição de sempre se acompanhar a doutrina, pois é o tribunal quem define o entendimento que deve ser dado.”

Veja carta resposta de Gomes de Barros ao repúdio manifestado pela Aasp

Ofício/02/2007/GMHGB Brasília, 13 de setembro de 2007.

Senhor Presidente,

Surpreso e amargurado, acabo de receber a “moção de Repúdio a um trecho específico” do acórdão no Recurso Especial 954.859, de que fui relator.

A surpresa proveio de uma circunstância insólita: um conceituado órgão representativo dos advogados brasileiros emitiu contra um juiz, sentença condenatória e aviltante (nela se contém repúdio — vale dizer rejeição). Tão grave sanção foi aplicada simplesmente porque, no exercício da função jurisdicional, o magistrado — preocupado em superar perplexidade na aplicação de lei nova — conduziu o Superior Tribunal de Justiça na interpretação do Art. 475-J do Código de Processo Civil. Em assim fazendo, o magistrado acreditava estar prestando um benefício a todos os que se dedicam às atividades forenses — os advogados, em primeiro lugar.

É que, como registrei no voto condutor do acórdão, a questão merecia “exame célere do Superior Tribunal de Justiça porque tem suscitado dúvidas e interpretações as mais controversas”.

Preocupado com a urgência, dediquei-me ao recurso, de tal forma que entre a distribuição (vinte e cinco de maio) e o julgamento (dezesseis de agosto) passaram-se menos de noventa dias (no mês de julho, o STJ não funcionou).

Não esperava elogios da Associação presidida por Vossa Excelência. Não os tive, quando levei o Tribunal — quebrando velha tradição — a proclamar que a doença do advogado pode funcionar como justa causa, para devolução de prazos ou, quando — na Corte Especial — demonstrei a licitude de o advogado, em defesa do constituinte, desistir de ação distribuída a relator manifestamente hostil à tese defendida. Tampouco os recebi, por haver decidido mais de treze mil processos, em 2006.

Aguardava, da entidade a indiferença com que, nesses casos, me brindou.

Por isso, o repúdio surpreendeu-me.

Surpreendeu-me inda mais, porque a sanção foi aplicada sem meu conhecimento, sem minha oitiva, sem que me fosse concedida, sequer, a oportunidade de esclarecer minhas palavras. Em meus dezoito anos de Conselheiro da OAB e nos dezesseis de Ministro do Superior Tribunal de Justiça, jamais desprezei o leal e saudável contraditório.

Assim, não esperava que os advogados me condenassem secretamente.

Essa, a causa da surpresa.

O amargor resulta de velha convicção: a de que os advogados são os juízes dos juízes. Se fui repudiado é porque sou mau juiz. Para mim — que sempre me esforcei para honrar a toga, que recebi por indicação da OAB — o repúdio amargou como fel.

Antes de me repudiar, a AASP bem poderia ter-me procurado, para saber o alcance do aresto e manifestar suas preocupações. Nem seriam necessárias maiores formalidades: bastaria uma visita a meu gabinete (com direito a cafezinho) ou, até, um telefonema. Tanto quanto a maioria de meus colegas, recebo os advogados com prazer e bom humor. Uma boa conversa e tudo se esclareceria.

Houvesse Vossa Excelência oposto informais “embargos declaratórios”, certamente estaria tudo esclarecido e a gloriosa AASP não me teria injuriado.

Vossa Excelência não fez assim. Sem ouvir-me, lançou sumário e inapelável repúdio.

Repúdio, no caso, é instrumento retórico, destinado a intimidar e amargurar o magistrado, mas despido de qualquer eficácia processual — incapaz de gerar benefício da parte executada, nem de seu patrono.

Desses escopos, apenas um é alcançado: a ofensa moral ao juiz. O outro, felizmente é abortado, como um monstrengo mal-formado. É bom que o aborto aconteça. No dia em que o juiz se sentir intimidado pelos advogados, a República brasileira estará absolutamente falida.

Vossa excelência, que se diz condutor de 80.000 advogados deve saber que no Estado de Direito, as decisões judiciais expõem-se a recursos — não a repúdios ou quejandos. Deve também perceber que intimidar juízes não é levantar-se “em defesa altaneira, destemida e independente dos advogados.”

É que, numa república de juízes medrosos, quem mais sofre é o advogado.

Condenado, entretanto, à revelia, sem conhecer o procedimento seguido para a imposição da penalidade, valho-me de um recurso que acredito viável: os embargos declaratórios, para esclarecer os fundamentos de minha condenação.

Manejo-os partindo da constatação de que ao repudiar a assertiva de que é responsável o advogado que “por desleixo omite-se em informar seu constituinte e o expõe à multa”, a AASP, filia-se à tese simétrica. Vale dizer:

a) a AASP entende que o advogado que “por desleixo omite-se em informar seu constituinte e o expõe à multa”, não responde “por tal prejuízo”, ou;

b) que o advogado não está obrigado a informar o cliente dos percalços que o ameaçam.

Com estes embargos peço que Vossa Excelência esclareça, dentro da alternativa acima posta, a qual termo se filia.

Qualquer que seja a resposta, o “repúdio” deveria ser dirigido à querida e gloriosa Ordem dos Advogados do Brasil — meu ninho profissional.

A OAB adotou, no Código de Ética do Advogado, a norma explicitada no Art. 8º, que diz:

“O advogado deve informar o cliente, de forma clara e inequívoca, quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das conseqüências que poderão advir da demanda”.

Ninguém, em sã consciência, pode reprovar tão lúcido e decente preceito. Não acredito que Vossa Excelência, ou qualquer dos 80.000 aguerridos congregados da AASP defenda tese contrária.

Vossa Excelência — certamente ofuscado pela ira que o possui — deformou, no final da “moção de repúdio”, a frase que escrevi no voto condutor do acórdão repudiado. A partir de tal desfiguração, Vossa Excelência passou a atribuir-me o sacrilégio de responsabilizar o advogado “pelos danos decorrentes de orientação dissidente, sem que qualquer erro grosseiro, “desleixo” ou omissão, possam lhe ser imputáveis”.

Em verdade, eu jamais disse isso. Afirmei, sim (e continuo dizendo), que “Se o causídico, por desleixo, omite-se em informar seu constituinte e o expõe à multa, ele deve responder por tal prejuízo”.

Quem lê, sem rancor, esse breve texto, percebe que o “desleixo” é a causa eficiente da responsabilidade. Vale dizer: só o causídico desleixado torna-se responsável pelo dano causado ao cliente.

Dita de outra forma, essa proposição assegura que “o causídico que não for desleixado está livre de responsabilidade”.

Minha tese — Senhor Presidente — encontra amparo no Código de Ética.

Advertido por esses embargos declaratórios, Vossa Excelência haverá de reconhecer a deturpação (certamente involuntária) que praticou em meu texto.

Haverá, certamente de retirar a aleivosa insinuação de que o acórdão de minha lavra pretendeu “impingir, com mão pesada, restrições ao livre pensar científico dos profissionais do direito.”

Confesso que não entendi essa aleivosia. Em meu voto limitei-me a expressar meu “pensar científico” — que acredito tão livre quanto o dos advogados e, bem por isso, à prova de “repúdios” totalitários.

Simplesmente interpretei um prosaico artigo do Código de Processo Civil, em conjunto com o Art. 8º do Código de Ética Profissional do Advogado. Tampouco, impingi restrição ao “livre pensar científico” de quem quer que seja.

Tranqüilizem-se Vossa Excelência e os 80.000 profissionais levantados “em defesa da atuação altaneira, destemida e independente dos Advogados”.

Assentem-se, pois!

Não há guerra à vista. Na defesa da “atuação altaneira, destemida e independente dos advogados” basta a Vossa excelência orientá-los para que assumam o encargo que lhes impõe o Código de Ética (o que praticamente todos os advogados já fazem) ou, do contrário, revoguem o Art. 8º.

Eu, aqui no exercício da jurisdição, continuo a interpretar o ordenamento jurídico. Faço-o modesta e pacificamente, mas com tanta coragem e independência quanto a que Vossa Excelência alardeia.

Durante trinta anos, a advocacia foi minha profissão, paixão e razão de viver. Na militância forense, aprendi a ganhar, perder e recorrer. Jamais, entretanto, tentei peitar ou desfeitear juízes, nem indispô-los com a comunidade.

Acreditando ser mais velho que Vossa Excelência, ouso dar-lhe um conselho: não transforme a advocacia em milícia justiceira, nem o Fórum em praça de guerra.

Aceite meus respeitosos cumprimentos

Ministro Humberto Gomes de Barros

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!