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Sigilo em delação premiada não pode ser quebrado, decide STF

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18 de setembro de 2007, 19h25

O sigilo em casos de delação premiada não pode ser quebrado, mesmo que os acusadores e autores do acordo sejam supostamente vítimas no mesmo processo. Mas a defesa pode saber o nome de quem participou dos acordos de delação. O entendimento começou a ser firmado, nesta terça-feira (18/9), na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Por três votos a um, a Turma acompanhou o entendimento do ministro Ricardo Lewandowski. O julgamento não foi concluído porque o ministro Marco Aurélio pediu vista.

Os ministros apreciaram Habeas Corpus em favor do advogado e ex-conselheiro da estatal Itaipu Binacional, Roberto Bertholdo, condenado pelos crimes de interceptação telefônica ilegal e exploração de prestígio. Ele também é acusado de tráfico de influência junto à CPMI do Banestado e constrangimento ilegal.

Com o pedido, a defesa de Bertholdo pretendia ter acesso ao acordo de delação premiada que embasou quatro ações penais que ele responde na Justiça. A defesa argumenta que o acesso permitiria apurar eventual nulidade dos acordos, na medida em que foram pactuados com procuradores da República e um juiz federal que seriam ao mesmo tempo acusadores/julgadores e vítimas dos grampos telefônicos. Argumenta, ainda, que desconhece o teor dos acordos firmados entre o Ministério Público Federal e os delatores (o ex-deputado paranaense, Antônio Celso Garcia; o ex-sócio de Bertholdo, Sérgio Renato Costa Filho e Sérgio Rodrigues de Oliveira). Para a defesa, houve ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Segundo o ministro Lewandowski, relator do Habeas Corpus, tem fundamento a suspeita em relação à falta de isenção necessária dos procuradores nos acordos de delação premiada usados nas ações movidas contra Bertholdo. “Certo está que os Procuradores da República que subscreveram as denúncias também foram, em tese, vítimas do paciente, sendo razoável supor a hipótese de que eles também firmaram os tais acordos, em indesejável coincidência dos papéis de acusador e vítima”, reconheceu o ministro.

Mesmo assim, Lewandowski manteve o sigilo sobre os acordos de delação. “Não vislumbro, todavia, motivo para decretar a publicidade dos acordos de delação premiada, cujo sigilo lhe é ínsito, inclusive por força de lei”, afirmou.

Ele ressaltou que um procurador da República, vítima de um delito, não pode atuar no processo como acusador de seu algoz. Mas entendeu que a defesa pode saber quem participou da confecção e homologação dos acordos, sendo pública e notória a condição dos delatores. Ele determinou “à Secretaria da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba que certifique quais foram as autoridades, judiciárias e do Ministério Público Federal, responsáveis pela homologação e propositura dos acordos de delação premiada firmados pelos delatores”.

Também votaram pela concessão da ordem os ministros Carlos Ayres Britto e Carmen Lúcia. O ministro Carlos Alberto Menezes Direito negou o pedido. Ele foi o único a divergir do relator. Para Direito, o acordo de delação premiada não é meio de prova, mas apenas um instrumento para que as pessoas possam colaborar com as investigações criminais. Dessa forma, impedir o acesso da defesa a esse acordo não pode ser considerado como violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Segundo o ministro, se a Justiça começar a abrir exceções quanto ao instituto da delação premiada, há o perigo de se inviabilizar o sistema. “Senão daqui a pouco ninguém mais vai querer participar deste tipo de acordo”, concluiu Menezes Direito.

Caso Banestado

Bertholdo foi denunciado pelo Ministério Público Federal pela prática de crime de interceptação telefônica, por 41 vezes. Em outra denúncia, o MP lhe atribuiu o crime de tráfico de influência, por duas vezes. Parte do conjunto de provas utilizadas pelo MP foi coletada pelo juiz federal Sérgio Moro, que autorizou diversas medidas de investigação na vida pessoal e nas empresas do acusado, como interceptações telefônicas, quebra do sigilo bancário, escutas ambientais em áudio e vídeo. Sérgio Moro seria uma das supostas vítimas de interceptação telefônica esquematizada por Bertholdo.

Condenado em uma das ações penais, teve a prisão preventiva decretada “para garantia da ordem pública”, em outubro de 2005. Seu pedido de liberdade foi negado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Os magistrados discordaram do argumento da defesa de que o juiz federal estaria impedido de autorizar a investigação por ser suposta vítima do crime de interceptação telefônica.

Leia a íntegra do voto do ministro

HABEAS CORPUS 90.688-5 PARANÁ

RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

PACIENTE(S): ROBERTO BERTHOLDO

IMPETRANTE(S): ANDREI ZENKNER SCHMIDT E OUTRO (A/S)

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA


EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ACORDO DE COOPERAÇÃO. DELAÇÃO PREMIADA. DIREITO DE SABER QUAIS AS AUTORIDADES DE PARTICIPARAM DO ATO. ADMISSIBILIDADE. PARCIALIDADE DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. SUSPEITAS FUNDADAS. ORDEM DEFERIDA NA PARTE CONHECIDA.

I – HC parcialmente conhecido por ventilar matéria não discutida no tribunal ad quem, sob pena de supressão de instância.

II – Sigilo do acordo de delação que, por definição legal, não pode ser quebrado.

III – Sendo fundadas as suspeitas de impedimento das autoridades que propuseram ou homologaram o acordo, razoável a expedição de certidão dando fé de seus nomes.

IV – Writ concedido em parte para esse efeito.

R E L A T Ó R I O

O Sr. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI: – Trata-se de habeas corpus impetrado por Andrei Zenkner Schmidt, Cezar Roberto Bitencourt, Débora Poeta Weyh e Gabriela Nehme Bemfica em favor de ROBERTO BERTHOLDO, contra decisão proferida pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no HC 59.115/PR.

A decisão atacada possui a seguinte ementa (fl. 24):

“HABEAS CORPUS. PEDIDO DE ACESSO A AUTOS DE INVESTIGAÇÃO PREAMBULAR EM QUE FORAM ESTABELECIDOS ACORDOS DE DELAÇÃO PREMIADA. INDEFERIMENTO. SIGILO DAS INVESTIGAÇÕES. QUESTÃO ULTRAPASADA. AJUIZAMENTO DE AÇÕES PENAIS. ALGUNS FEITOS JÁ SENTENCIADOS COM CONDENAÇÃO, PENDENTES DE JULGAMENTO DE APELAÇÕES. FALTA DE INTERESSE. MATERIAL QUE INTERESSAVA À DEFESA JUNTADO AOS AUTOS DAS RESPECTIVAS AÇÕES PENAIS. FASE JUDICIAL. MOMENTO PRÓPRIO PARA O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE.

1. Se havia algum interesse dos advogados do réu no inteiro teor das declarações prestadas pelos delatores na fase preambular meramente investigatória, ele não mais subsiste neste momento processual, em que já foram instauradas ações penais – algumas delas até sentenciadas e com apelações em tramitação na correspondente Corte Regional – porque tudo que dizia respeito ao paciente, e serviu para subsidiar as acusações promovidas pelo Ministério Público, foi oportuna e devidamente juntado aos respectivos autos. E, independentemente do que fora declarado na fase inquisitória, é durante a instrução criminal, na fase judicial, que os elementos de prova são submetidos ao contraditório e ampla defesa, respeitado o devido processo.

2. Além disso, conforme entendimento assente nesta Corte, ‘o material coligido no procedimento inquisitório constitui-se em peça meramente informativa, razão pela qual eventuais irregularidades nessa fase não tem o condão de macular a futura ação penal’ (HC 43.908/SP, 5ª Turma, de minha relatoria, DJ 03/04/2006).

3. Ordem denegada.”

Narram os impetrantes, em síntese, que o paciente responde a quatro ações criminais, nas quais foi utilizado material colhido por decorrência da homologação de acordos de delação premiada (fl. 03).

Dizem, mais, que a defesa desconhece o teor dos acordos firmados entre o Ministério Público Federal e os delatores (fl. 08).

Informam, ainda, que pleitearam o acesso a tais documentos, mas que os pedidos nesse sentido vêm sendo reiteradamente indeferidos desde a primeira instância (fl. 09).

Sustentam, em suma, que houve ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa, uma vez que não teriam sido assegurados ao paciente os meios e recursos a eles inerentes (fl. 12).

Alegam, mais, que a impetração trata do “direito fundamental de o paciente ter acesso às provas que embasam as imputações penais que lhe foram feitas” (fl. 14).

Aduzem, também, que o acesso ao teor dos acordos de delação premiada é a forma de que dispõe a defesa para aferir os limites de atuação dos representantes do Ministério Público e do Poder Judiciário, já que a principal tese da defesa, suscitada em preliminar, relaciona-se “à nulidade absoluta e integral de todo o processo (…), tendo em vista que baseado em provas produzidas por Procuradores da República suspeitos e acolhidos por Juiz Federal suspeito” (fl. 15).

Acrescem, ainda, que parte dos Procuradores da República que ofereceram três denúncias contra o paciente foram vítimas do fato a ele imputado em ação que as precede.

Argumentam, além disso, que os documentos fornecidos por um dos delatores ao Ministério Público Federal não foram juntados aos autos, o que geraria a nulidade de toda a prova, inclusive daquela obtida por derivação (fl. 16).

Dizem, ademais, que houve violação à garantia do duplo grau de jurisdição, haja vista que a supressão do acesso ao teor dos acordos acaba por impedir que se verifique a validade formal e material destes nas distintas fases do processo (fls. 18 e 19).

Asseveram, por fim, que os pacientes “buscam demonstrar que o magistrado que teria sido vítima do crime imputado ao paciente – interceptação telefônica não autorizada – foi responsável pela produção de todas as provas que acabaram redundando em sua condenação” (fl. 22).


Em face do exposto, requerem a concessão da ordem para que se assegure aos defensores do paciente o acesso aos processos 2004.70.00.043116-0 (delação de Antônio Celso Garcia), 2005.70.00.29677-6 (delação de Sérgio Renato Costa Filho) e 2005.70.00.029678-8 (delação de Sérgio Rodrigues de Oliveira), ou, alternativamente, que a 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba/PR certifique quais foram as autoridades, judiciárias e do Ministério Público Federal, responsáveis pela propositura e homologação dos acordos de delação premiada (fl. 23).

O Ministério Público Federal, por meio do parecer de lavra do Subprocurador-Geral da República Wagner Gonçalves, opinou pelo conhecimento parcial do habeas corpus, pois a autoridade impetrada não analisou o pedido quanto à delação de Sérgio Rodrigues de Oliveira, e, no mérito, pelo improvimento da ordem (fls. 552-569).

É o relatório.

V O T O

O Sr. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI (Relator): Busca o impetrante, em síntese, ter acesso aos acordos de delação premiada que o Ministério Público promoveu com Antônio Celso Garcia, Sérgio Renato Costa Filho e Sérgio Rodrigues de Oliveira, os quais teriam possibilitado a promoção, contra o paciente, de quatro ações penais.

Entendem, em síntese, que a manutenção do sigilo em relação a tais acordos violaria as garantias do contraditório e da ampla defesa, bem como a do duplo grau de jurisdição.

Para o que interessa ao deslinde da presente questão, a delação premiada constitui um meio de prova introduzido na legislação brasileira por inspiração do sistema anglo-saxão de justiça negociada.

Nele, por força de lei, o delator compromete-se a colaborar “efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado: I – a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III – a recuperação total ou parcial do produto do crime” (art. 13 da Lei 9.807/99).

A delação premiada constitui, pois, elemento de prova, que, como tal, nas palavras de Amilton Bueno de Carvalho “está a exigir, para ter acolhida no sistema, requisitos que lhe são indispensáveis – condições de validade: um – deve ser coletada perante autoridade eqüidistante – no modelo vigente, o juiz. Ou seja, sujeito imparcial – aquele que não tem interesse pessoal na produção probatória”.

A eqüidistância, todavia, não é exigida apenas dos magistrados. O Código de Processo Penal, em seu artigo 258, estabelece que “os órgãos do Ministério Público não funcionarão nos processos em que o juiz ou qualquer das partes for seu cônjuge, ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, e a eles se estendem, no que lhes for aplicável, as prescrições relativas à suspeição e aos impedimentos dos juízes”.

E um desses impedimentos, previstos no art. 252, IV, do CPP consiste exatamente em ser o juiz “diretamente interessado no feito”. Como se vê, o legislador também buscou evitar que o membro do Parquet tenha interesse direto na solução da lide.

Tal norma não precisaria sequer estar escrita. É que o processo penal nasce justamente para, superando a vingança privada, fazer com que um agente público, representante do Estado, em substituição à vítima, componha os conflitos sociais, zelando, em nome do interesse coletivo, para que a paz social seja mantida. Elementar, portanto, que, na hipótese de ser um Procurador da República vítima de um delito, não pode ele funcionar no processo como acusador de seu algoz.

Ora, bem examinados os autos, verifica-se que existe, de fato, a possibilidade de que tal princípio não tenha sido observado na hipótese sob exame.

Com efeito, leitura superficial da denúncia oferecida na ação penal 2005.70.00.029545-0 (Ação 1) demonstra que se imputa ao paciente ter ele realizado grampo telefônico ilegal contra as seguintes vítimas: i) Sérgio Fernando Moro, Juiz Federal da Segunda Vara Criminal de Curitiba; ii) Carlos Fernando dos Santos Lima, Procurador Regional da República; iii) Vladimir Aras, Procurador da República; iv) Maria de Fátima Labarerre, Desembargadora Federal do Tribunal Regional da Quarta Região; v) Patrícia Helena Daher Lopes, Juíza Federal; vi) Paulo Roberto Falcão, Delegado de Polícia Federal; vii) Eurico Montenegro Barbosa, Perito do INC/DPF; viii) Glênio Guimarães Belluco, Perito do INC; e ix) Jairo Cruz Pinto, Promotor de Justiça (fls. 45-46).

Constata-se, igualmente, que, em denúncia oferecida na mesma data e perante a mesma Vara Federal, dessa feita na ação penal 2005.70.00.029546-2 (Ação 2), subscrevem a exordial, dentre outros, os Procuradores Vladimir Aras e Carlos Fernando dos Santos Lima, vítimas na supra mencionada ação penal 2005.70.00.029545-0 (Ação 1).


Cerca de um mês depois, inicia-se a ação 2005.70.00.029733-1 (Ação 3), promovida, novamente, pelas vítimas da citada ação penal 2005.70.00.029545-0 (Ação 1), Vladimir Aras e Carlos Fernando dos Santos Lima, os mesmos subscritores da peça que ensejou o início da ação 2005.70.00.034324-9 (Ação 4).

Mostra-se fundada, pois, ictu oculi, a suspeita impetrantes em relação à falta de isenção necessária dos subscritores dos acordos de delação premiada empregados nas ações movidas contra o paciente.

Em que pese ter sido descartado o impedimento do Juiz Federal Sérgio Moro, certo está que os Procuradores da República que subscreveram as denúncias também foram, em tese, vítimas do paciente, sendo razoável supor a hipótese de que eles também firmaram os tais acordos, em indesejável coincidência dos papéis de acusador e vítima.

De se reformar, assim, a decisão impugnada, no ponto em que consignou o seguinte (fl. 29):

“A pretensão, contudo, não prospera. Com efeito, se havia algum interesse dos advogados do réu no inteiro teor das declarações prestadas pelos delatores na fase preambular meramente investigatória, ele não mais subsiste neste momento processual, em que já foram instauradas ações penais – algumas delas até sentenciadas e com apelações em tramitação na correspondente Corte Regional – porque tudo o que dizia respeito ao paciente, e serviu para subsidiar as acusações promovidas pelo Ministério Público, foi oportuna e devidamente juntado aos respectivos autos. E, independentemente do que fora declarado na fase inquisitória, é durante a instrução criminal, na fase judicial, que os elementos de prova são submetidos ao contraditório e à ampla defesa, respeitando o devido processo legal.

Quanto à disposição da defesa de ‘apurar eventual nulidade originária dos acordos firmados pelos delatores’, conforme entendimento assente nesta Corte, ‘o material coligido no procedimento inquisitório constitui-se em peça meramente informativa, razão pela qual eventuais irregularidades nessa fase não tem o condão de macular a futura ação penal’ (HC 43.908/SP, 5ª Turma, de minha relatoria, DJ 03/04/2006)”.

Não vislumbro, todavia, motivo para decretar a publicidade dos acordos de delação premiada, cujo sigilo lhe é ínsito, inclusive por força de lei.

Ao paciente basta saber quem participou da confecção e homologação dos acordos, sendo pública e notória a condição dos delatores.

Ante o exposto, acatando o parecer ministerial, deixo de conhecer do habeas corpus no que diz respeito ao acordo realizado pelo delator Sérgio Rodrigues de Oliveira, porquanto não foi requerido acesso ao mesmo ao Superior Tribunal de Justiça, sob pena de supressão de instância.

Na parte que conheço, concedo a ordem em parte para determinar à Secretaria da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba que certifique quais foram as autoridades, judiciárias e do Ministério Público Federal, responsáveis pela homologação e propositura dos acordos de delação premiada firmados pelos delatores Antônio Celso Garcia e Sérgio Renato Costa Filho.

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