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OAB reclama de promotor que fixa honorário de advogado

11 de setembro de 2007, 19h34

Por Redação ConJur

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Em Santa Catarina, um promotor de Justiça resolveu assumir para si a função de determinar honorários dos advogados. Segundo a OAB Nacional, Marco Antonio Shutz de Medeiros obriga os advogados do estado a firmar termo de ajustamento de conduta se comprometendo a fixar o honorário em determinada porcentagem. A Ordem, agora, levou o caso ao Conselho Nacional do Ministério Público.

“Tal situação foge completamente às atribuições institucionais do Ministério Público, já que não é de competência do parquet a investigação, discussão ou a determinação de uma tabela de honorários que deva ser observada pelos advogados”, sustenta o presidente nacional da OAB, Cezar Britto. Ele observa que a atitude do promotor “invade a esfera de competência que a Lei 8.906/94 conferiu exclusivamente à Ordem dos Advogados do Brasil”.

Ainda segundo o presidente nacional da OAB, a atuação do promotor importaria na instalação de uma espécie de controle externo da advocacia, “para o qual não há suporte no ordenamento jurídico pátrio; mais especificamente, importaria em flagrante afronta ao disposto no artigo 133 da Constituição Federal, cujo comando é de clareza inquestionável ao estabelecer a inviolabilidade do advogado, no exercício da sua profissão”.

A reclamação contra o promotor Shutz de Medeiros protocolada no CNMP é assinada também pelo secretário-geral adjunto do Conselho Federal da OAB e presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia da entidade, Alberto Zacharias Toron, e pela conselheira federal da OAB de Santa Catarina, Gisela Gondim Ramos.

De acordo com o documento encaminhado ao CNMP, a atuação do promotor de Justiça de Santa Catarina viola também o sistema jurídico adotado pela Constituição, cujo capítulo IV, ao tratar das funções essenciais à justiça, colocou o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Advocacia Privada e a Defensoria Pública em nível de igualdade e absoluta independência, “não dando azo a interpretações que promovam o controle de uma sobre as outras”.

Leia a reclamação

EXMO. SR. PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA – PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

O CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, por meio de seu Presidente, vem, pela presente, formular

RECLAMAÇÃO

Contra o promotor de justiça do Estado de Santa Catarina, MARCO ANTONIO SCHUTZ DE MEDEIROS, lotado na Comarca de Lauro Muller – SC, com endereço na Travessa 20 de Janeiro, s/n°, Centro, na cidade de Lauro Muller (SC), CEP 88.880-000, pelos fatos e fundamentos seguintes.

O Reclamado, amparando-se no Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078/90 – e justificando-se na legitimação ativa que lhe foi concedida pela Carta Constitucional e pela Lei para a defesa judicial e extrajudicial de interesses transindividuais, vem promovendo a instauração de Inquéritos Civis contra advogados, constrangendo-os a firmarem Termos de Ajustamento de Conduta, pelos quais pretende determinar o percentual de honorários que podem, ou não, tais profissionais, contratarem com seus clientes.

Tal situação, data máxima vênia, foge completamente às atribuições institucionais do Ministério Público, já que não é de competência do Parquet a investigação, discussão, ou a determinação de uma tabela de honorários que deva ser observada pelos advogados, o que, de resto, invade esfera de competência que a Lei 8.906/94 conferiu exclusivamente à Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.

INVASÃO DA COMPETÊNCIA DEFERIDA PELA LEI COM EXCLUSIVIDADE À ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – OAB

Com efeito, de acordo com os expressos termos do art. 44, inc. II da referida Lei – ESTATUTO DA ADVOCACIA E DA OAB -, é finalidade da Instituição “promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil” (verbis, grifamos).

Os arts. 22 a 26 da mesma lei, versam sobre o direito dos advogados à retribuição pela prestação dos serviços profissionais, ou seja, aos honorários, que podem ser convencionados, fixados por arbitramento e decorrentes da sucumbência.

O Conselho Federal da OAB, no uso das atribuições que lhe foram conferidas pelos arts. 33 e 54, inc. V, da mesma Lei 8.906/94, aprovou e editou o CÓDIGO DE ÉTICA E DISCIPLINA da profissão, que foi devidamente publicado no Diário da Justiça de 01.03.95, Seção I, pp. 4000/4004, estabelecendo de forma eficiente todas as regras e princípios que devem conduzir a contratação de honorários pelos profissionais.

Para dar cumprimento à sua finalidade de fiscalização e disciplina da classe, a OAB tem instituído processo e procedimentos próprios, plenamente satisfatórios à garantia do interesse da sociedade e, em especial, à proteção dos usuários dos serviços jurídicos.


Especificamente em relação à cobrança de honorários, tanto o Estatuto da OAB, quanto seu Regulamento Geral, o Código de Ética e Disciplina, bem assim os Provimentos editados pelo Conselho Federal, são bastante minuciosos e rigorosos, impondo regras claras que visam, sobretudo, a proteção dos usuários contra cláusulas abusivas, excessivamente onerosas, ou incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.

Destarte, os limites impostos à contratação de honorários pelos advogados com seus clientes não pode ser determinado pelo Ministério Público, muito menos de forma unilateral e subjetiva, como se vê nas hipóteses ora submetidas à apreciação.

Nestes casos, verificando o membro do parquet qualquer violação ao regramento legal da advocacia, no que concerne à contratação dos honorários, o instrumento que lhe compete manejar é a Representação perante o Órgão de classe competente, não lhe sendo lícito sujeitar os profissionais da advocacia à inquérito civis despropositados, nem constrangê-los à assinatura de Termos de Ajustamento de Conduta absolutamente incompatíveis com o arcabouço normativo a que estão submetidos.

De fato, o Termo de Ajustamento de Conduta é um instrumento destinado a adaptar a conduta dos interessados à exigência legais, mediante determinadas cominações, e que terá força de título executivo extrajudicial. E mais, sem prazo de validade.

Neste aspecto, várias outras questões devem ser analisadas, a começar pelo fato de que a relação dos advogados com seus clientes não se caracteriza como relação de consumo, mas sim, de PATROCÍNIO, em que as “exigências legais” as quais devem se subordinar são bastante distintas daquelas que o Promotor de Justiça ora reclamado pretende impor.

Ora, não incidindo sobre a RELAÇÃO DE PATROCÍNIO existente entre o advogado e o cliente, as normas consumeristas, não há qualquer fundamento legal na atitude do referido Promotor de Justiça em instaurar Inquérito Civil para “apurar a ocorrência de práticas abusivas contra os direitos dos consumidores, mediante cláusulas contratuais impostas em contratos de prestação de serviços advocatícios” (verbis – Portaria n. 003/2005, em anexo)

SERVIÇOS JURÍDICOS – INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO

Em se tratando da aplicação da Lei 8.078/90 a certas relações jurídicas, encontramos, em meio aos inúmeros debates travados pela doutrina nacional, uma regra comum e pacífica, qual seja, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor tem como PRESSUPOSTO a existência de uma RELAÇÃO DE CONSUMO .

Em outras palavras, o Código do Consumidor instituiu, como afirmam os chamados consumeristas, um microssistema jurídico com uma conjugação de princípios próprios, que, embora capazes de afastar a incidência de determinadas regras do sistema ordinário, quando incompatíveis com a proteção que o Estado instituiu aos interesses econômicos dos consumidores, só estão autorizados a faze-lo quando existente uma relação de consumo.

Portanto, o cerne da questão é se o vínculo jurídico estabelecido entre o advogado e seu cliente reúne todos os elementos necessários para fins de ser definido, seguramente, como uma relação jurídica de consumo.

Na hipótese, não há dúvidas de que entre advogado e cliente não se estabelece uma relação jurídica de consumo, seja porque a advocacia constitui-se um “munus publico”, disciplinada por lei especial, seja porque, em última análise, não encontramos nela os elementos subjetivos e objetivos capazes de inseri-la no chamado mercado de consumo.

A função social do Advogado – munus publico

Inaplicabilidade do CDC às atividades de Jurisdição e auxiliares

A atividade advocatícia encontra disciplina própria na Lei 8.906/94, em cujas disposições se concentram os direitos e deveres do profissional, definindo, ademais, o seu art. 32, o cabimento e os limites de sua responsabilidade sempre que violar as regras de conduta previa e explicitamente definidas.

E não são poucos os preceitos que limitam a atuação profissional do advogado, valendo lembrar que a sua responsabilidade na relação com o cliente, além de amplamente regulada no Estatuto (Lei 8.906/94), encontra-se, também, no Regulamento Geral, e mais especificamente no Código de Ética e Disciplina, que lhe impõem uma série de regras a serem obedecidas.

Isto porque, o exercício da advocacia transcende a mera satisfação de um interesse privado do cliente, para abraçar a efetiva realização da JUSTIÇA, de forma que, o advogado, embora agindo em nome da parte, atua no interesse de toda a sociedade.

Tal condição, aliás, é que determinou a referência que lhe faz a Constituição Federal, cujo art. 133 o qualifica como um profissional “indispensável à administração da Justiça”, no âmbito da qual não se travam relações de consumo !!


Com efeito, a impossibilidade de incidência das regras consumeristas na prestação de serviços advocatícios, se destaca ainda mais claramente ao analisarmos a função desempenhada pelo profissional sem desviarmo-nos da verdadeira natureza da advocacia, – que parece estar se tornando uma tendência nos dias de hoje – e de molde a não ignorar um dos elementos básicos e fundamentais de sua configuração, qual seja, a essencialidade na realização da justiça, que traduz a função social desempenhada pelo advogado.

Ora, partindo da Constituição Federal, e passando pelas regras estabelecidas no ordenamento jurídico processual, temos que a JURISDIÇÃO, como atividade estatal de realização do direito objetivo e pacificação social não se realiza sem a presença do advogado.

E, para quem pretenda discutir a participação do advogado como um dos protagonistas da função jurisdicional do Estado, vale lembrar a tricotomia proclamada por CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, na conceituada obra TEORIA GERAL DO PROCESSO , de que “a jurisdição é, ao mesmo tempo, poder, função e atividade”, e estas, “somente transparecem legitimamente através do processo devidamente estruturado (devido processo legal)”.

Explicam, ainda, os Autores mencionados, que através da jurisdição, trata-se de garantir que o ordenamento jurídico seja preservado em sua autoridade e a paz e ordem na sociedade favorecidas pela imposição da vontade do Estado, de forma que “o mais elevado interesse que se satisfaz através do exercício da jurisdição é, pois, o interesse da própria sociedade (ou seja, do Estado, enquanto comunidade)” . O mesmo interesse, diga-se, que serve de fundamento a todas as vedações e limitações impostas aos advogados para o desempenho de sua atividade profissional.

Destaque-se, ainda, que outras características da jurisdição são a existência de uma lide, e a inércia. E ambas reclamam a presença do advogado, que, conforme ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA, é seu “elemento técnico propulsor” .

O advogado é, portanto, essencial, ao pleno desenvolvimento desta atividade estatal, que, ninguém questiona, pelo menos até agora, desenvolver-se ao largo do chamado mercado de consumo.

De fato, não se vislumbra os cidadãos brasileiros reclamando, com fundamento na norma consumerista, dos serviços prestados pelos magistrados, oficiais de justiça, serventuários, peritos, membros do Ministério Público, etc…. E todos sabemos que teriam muito a reclamar.

Ocorre que todos estes profissionais, muito embora atuando com o objetivo de atender às necessidades do cidadão, que procura por Justiça, o fazem não como homens de negócio, mas como homens do Direito. Não visam o lucro, embora todos sejam devidamente remunerados pelo serviço que prestam. Não oferecem seus serviços no mercado de consumo (caracterizado este pelo domínio do crédito e do marketing, como instrumentos básicos para a produção e circulação de bens e serviços) , embora todos estejam sempre à disposição para atender a todos quantos deles precisarem.

Tal circunstância, entrementes, não quer dizer que tais operadores do Direito não possam ser cobrados e devidamente responsabilizados por sua má atuação. O que ocorre é que, como e quando isto acontece, somente a lei pode dizer, e dentro dos limites que ela própria estabelece, respeitando, ademais, o sistema jurídico ordinário estabelecido.

Na verdade, a própria Constituição Federal, da mesma forma que celebra o advogado como indispensável à administração da Justiça, assegura, dentre os direitos fundamentais dos cidadãos, o direito à indenização por danos materiais e morais, que se aplica, em sua generalidade, a toda e qualquer pessoa que, violando uma regra jurídica, cause prejuízo a outrem.

A questão, por outro lado, nos leva à análise sobre o conflito de lei no tempo.

Conflito de Leis – Lei Geral e Lei Especial

Inaplicabilidade do CDC face à revogação tácita

Neste sentido, estamos diante de duas leis – CDC e EAOAB -, sendo a primeira, indiscutivelmente, uma LEI GERAL , e a segunda, uma LEI ESPECIAL .

Não creio haver divergência quanto a esta distinção, já que o Código de Defesa do Consumidor se apresenta como uma norma de caráter universal, moldado pela generalidade; E o Estatuto da OAB regula, especificamente, a atividade desenvolvida pelo profissional da advocacia.

A conclusão, aqui, é indiscutível, na medida em que “é princípio assente que as leis gerais não devem revogar ou derrogar preceito ou regra disposta e instituída em lei especial, desde que não façam referência a ela, ou ao seu enunciado, alterando-a explícita ou implicitamente” . E o CDC não faz qualquer alusão ao Estatuto da OAB (à época, a Lei 4.215/63).

O ATUAL ESTATUTO (Lei 8.906/94), entretanto, por se tratar de uma LEI ESPECIAL, com vigência a partir de 1994, e, portanto, quatro (04) anos após o CDC, por certo que derrogou todas as disposições que, mesmo eventualmente, pretendessem alcançar a advocacia, já que traz norma explícita sobre a responsabilidade civil do advogado.


Concluindo, portanto, quanto a este aspecto, vê-se que, também pela regra geral instituída na Lei de Introdução ao Código Civil, sobre a obrigatoriedade da lei, a Norma Consumerista, por se mostrar incompatível com o regramento estatutário, não tem eficácia no que diz respeito às relações jurídicas estabelecidas entre os advogados e seus clientes.

Não bastasse tudo isto, temos ainda que os próprios princípios que servem de fundamento ao Estatuto da Advocacia, são frontalmente contrários àqueles nos quais se inspirou o Código do Consumidor, o que, aliás, além de ser mais uma razão para sustentar a sua revogação, nos leva também à demonstração da inexistência dos requisitos objetivos e subjetivos da relação de consumo, tal como nos referimos alhures, de molde a comprovar a sua inaplicabilidade aos contratos de prestação de serviços advocatícios.

Inexistência dos elementos caracterizadores de uma relação de consumo

O Código de Defesa do Consumidor não traz uma definição expressa do que seja RELAÇÃO DE CONSUMO, de forma que a sua caracterização há de ser averiguada em cada caso particular pela constatação da presença de seus elementos subjetivos e objetivos, estes sim, expressos no texto legal citado.

Assim, como assente pela absoluta maioria dos doutrinadores, são ELEMENTOS SUBJETIVOS de uma relação de consumo, as partes de cada pólo da relação jurídica, ou seja, o CONSUMIDOR, e o FORNECEDOR. E, como ELEMENTO OBJETIVO, temos o PRODUTO ou SERVIÇO, que traduzem-se no objeto desta mesma relação jurídica.

A conclusão, portanto, de se mostrar configurada, ou não, uma relação jurídica de consumo, não pode prescindir da avaliação de cada um destes elementos, no particular.

O Fornecedor

O CDC traz a definição: “É toda a pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços” (verbis, art. 3o.)

Da própria definição legal extrai-se que a ATIVIDADE desempenhada é de fundamental importância para que possamos determinar a figura do fornecedor.

Segundo os Autores do anteprojeto que culminou na Lei 8.078/90, “a condição de fornecedor está intimamente ligada à atividade de cada um e desde que coloquem aqueles produtos ou serviços efetivamente no mercado ”.

E é o próprio Código que diz quais são as atividades que promovem o lançamento de produtos e serviços no mercado de consumo, quais sejam: produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização. E, não há como inserir a atividade desenvolvida pelo advogado em nenhum destes conceitos.

O advogado é, antes de tudo, um servidor da Justiça e da Lei. Conforme dito linhas atrás, a pacificação social, escopo maior da própria JURISDIÇÃO, atividade estatal monopolista, depende da atuação do advogado, como decorrência do princípio NEMO IUDEX SINE ACTORE (“Não há juiz sem autor”).

Não exerce, pois, um trabalho que possa, simplesmente, ser determinado como atividade produtiva de bens ou serviços, tal como se destaca facilmente da própria filosofia que norteia a legislação consumerista.

Além do mais, não é o advogado, um mero prestador de serviços, mas desenvolve, conforme já dissemos e é sempre bom repetir, um MUNUS PUBLICO. E, MUNUS, quer dizer ENCARGO, função.

E, para se compreender perfeitamente o significado e alcance desta expressão, devemos trazer à lembrança lapsos da história da advocacia brasileira, de um período anterior à criação da Ordem dos Advogados do Brasil, em que a profissão era exercida, conforme palavras de RUY SODRÉ , com “exagerado individualismo e acentuado amoralismo”, como consequência da interpretação, até certo modo distorcida, dada ao art. 72 da Constituição Federal de 1891 ; Época em que, também, não havia uma disciplina para a profissão, tampouco os postulados éticos tal como hoje, e a disciplina dos advogados sujeitava-se, tão somente, à autoridade dos juízes, numa limitada atuação em casos específicos.

A criação da Ordem dos Advogados do Brasil mudou radicalmente este panorama, e o fazendo, conforme noticia RUY SODRÉ, “deixava a advocacia de ser profissão exclusivamente privada e exercida com a mais ampla e irrestrita liberdade, para tornar-se regulamentada, selecionada, fiscalizada e disciplinada, funções essas delegadas pelo poder público à própria classe. Passou a imperar o princípio, até então desprezado, de que o advogado participa da administração da Justiça, que é serviço público. Desse princípio decorrem não só a subordinação do advogado à disciplina funcional, ao compromisso que presta ao iniciar a profissão, e ao mais importante de todos, ou seja, o de ter acesso, como defensor da parte, no desenrolar do processo judicial ”.


A partir daí, a advocacia deixou de ser simplesmente a prestação de serviços decorrentes do contrato de mandato, para adotar características de maior importância social, passando o advogado, agora, a assumir sua efetiva responsabilidade funcional. Vinculou-se, portanto, o exercício da profissão, à observância dos princípios éticos que obrigam o advogado a exercer sua função com “zelo, probidade, dedicação e espírito cívico; a aceitar e exercer, com desvelo, os encargos cometidos pela Ordem dos Advogados, pela Assistência Judiciária ou pelos juízes competentes. E aos Conselhos Seccionais da Ordem atribui-se, entre outros, o encargo de velar pelo perfeito desempenho técnico e moral da advocacia e o prestígio e o bom conceito da profissão e dos que a exerçam ”.

Conquanto, pois, se diga sempre que a advocacia é uma profissão liberal, o termo não significa que seja ela exercida no interesse privado, exclusivamente, porque acima dele está o serviço à Justiça.

O advogado é um profissional liberal, no sentido de que “ele trabalha com a sua palavra – oral ou escrita – com seus dons de exposição e de persuasão, com seus conhecimentos jurídicos ”,e neste aspecto, sua independência é absoluta.

Assim, a atuação do advogado, para o seu cliente, se dá com relação a um interesse privado. Mas esta mesma atuação tem por escopo a realização da Justiça, que é um interesse social. Ou seja, quando exerce as suas atividades, o advogado atende a um interesse da própria sociedade, posto que a sua participação e colaboração são fundamentais para que se faça a Justiça por todos buscada. Daí dizer-se que o advogado exerce um “munus publico”.

Não é preciso muito mais, pois, para chegar-se à conclusão de que o advogado não se enquadra na definição de fornecedor de serviços. Somos profissionais liberais? Somos. Mas, como alerta o mesmo RUY SODRÉ, “não devemos confundir liberdade com licenciosidade. Somos livres, mas nossa liberdade está condicionada, limitada pelo serviço público que prestamos, como elemento indispensável à administração da Justiça ”.

Registre-se, aqui, a lição de CALAMANDREI, sobre a efetiva participação do advogado na administração da Justiça, que acentua com primor a função social por ele desempenhada:

“…na sempre crescente complicação da vida jurídica moderna, na aspereza dos formalismos processuais, que parecem aos profanos misteriosas trincas, o advogado é um precioso colaborador do juiz, porque trabalha em seu lugar, para recolher os materiais do litígio, traduzindo em linguagem técnica as fragmentárias e desligadas afirmações da parte, tirando delas a ossatura do caso jurídico para apresentá-lo ao juiz, em forma clara e precisa e nos moldes processualmente corretos, e daí, graças a esse advogado paciente que, no recolhimento do seu gabinete, desbasta, interpreta, escolhe e ordena os elementos informes proporcionados pelo cliente, o juiz chega a ficar em condições de ver de um golpe, sem perda de tempo, o ponto vital da controvérsia. O advogado aparece, assim, como um elemento integrante da organização judicial, como um órgão intermediário entre juiz e a parte, no qual o interesse privado de alcançar uma sentença favorável e o interesse público de obter uma sentença justa se encontram e se conciliam. Por isso, sua função é necessária ao Estado, como servidor do Direito…. ”

Não há, pois, a menor dúvida, em excluir o ADVOGADO do conceito de fornecedor de serviços, tal como estabelecido no Código de Defesa do Consumidor.

O Consumidor

Conquanto a simples descaracterização do advogado como fornecedor de serviços, por si só, já fosse bastante para afastar por completo a incidência da norma consumerista, passamos a analisar as características próprias da figura do CONSUMIDOR, que haveriam de reunir-se, necessariamente, na figura do cliente, para que possamos ter uma relação de consumo.

Mas, também aqui, não vislumbramos a condição de CONSUMIDOR, tal como estabelecida no art. 2o., do CDC, segundo a qual ”Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (verbis).

Os mesmos autores do anteprojeto do CDC, já referidos alhures, esclarecem que “o traço marcante da conceituação de ‘consumidor’, (sic) está na perspectiva que se deve adotar, ou seja, no sentido de se o considerar como hipossuficiente ou vulnerável, não sendo, aliás, por acaso, que o mencionado ‘movimento consumerista’ apareceu ao mesmo tempo que o sindicalista, principalmente a partir da segunda metade do século XIX em que se reinvidicam melhores condições de trabalho e melhoria da qualidade de vida, e, pois, em plena sintonia com o binômio ‘poder aquisitivo/aquisição de mais e melhores bens e serviços ”.

Desnecessário adentrar, pormenorizadamente, nos conceitos e variações dos termos hipossuficiência e/ou vulnerabilidade, que, de modo geral, todos já sabemos o que significa.


Assim, apenas com base neste entendimento geral e supérfluo de ambas as expressões, podemos dizer que ambas as características são, de fato e de direito, os alicerces nos quais se fundiu o regramento protecionista em questão.

Em outras palavras, exemplificando com a hipótese de um cidadão que contrata o serviço de edificação de sua residência com uma empresa construtora, temos que o desequilíbrio verificado nesta relação jurídica entre as duas partes, decorre, basicamente: do poder da segunda, que emerge do fato de dominar o crédito, explorar eficiente e eficazmente as técnicas indutivas de marketing, e com isso, mas não só, poder determinar as regras contratuais de forma unilateral ou impositiva, de um lado; E, de outro, da impossibilidade ou dificuldade do contratante, em acessar à Justiça para defender-se, ou minimizar seus prejuízos; Estes os aspectos que marcaram o nascimento e desenvolvimento do Direito do Consumidor, já que o mercado, em si mesmo, não apresentava mecanismos capazes de superar a vulnerabilidade de uma das partes, fenômeno ao qual, certamente, o Direito não poderia ficar alheio .

Só que esta situação de vulnerabilidade, ou hipossuficiência, não se verifica com aquele que contrata os serviços do advogado, uma vez que, este profissional, ao contrário daqueles que exploram atividades no mercado de consumo, estão, literalmente, amarrados a uma infinidade de regras que restringem e impõe limites inarredáveis à sua atuação, desde o oferecimento dos serviços, passando pela forma de contratar, até chegar ao desempenho do próprio ofício advocatício em si.

A par disto, o cliente é amplamente protegido pelo próprio Estatuto da Advocacia, seu Regulamento Geral, ainda mais especificamente, pelo Código de Ética e Disciplina da classe e, em última análise, pela própria Instituição (OAB), que lhe disponibiliza mecanismos próprios, com eficácia e eficiência atestadas por sua própria história, a eliminar, por completo, qualquer possibilidade de se vislumbrar, naquele que contrata o advogado, a inferioridade que justificaria a aplicação da norma consumerista.

Seguramente se pode portanto, também aqui, afastar a possibilidade de incidência da lei de proteção ao consumidor, até porque, como dito, a política estabelecida por tal legislação, visa, especificamente, coibir e reprimir os abusos praticados no mercado de consumo contra a parte presumidamente inferiorizada na relação jurídica, e tal circunstância não se verifica na RELAÇÃO DE PATROCÍNIO estabelecida entre cliente e advogado, valendo lembrar que à advocacia é expressamente proibida a utilização de técnicas indutivas que levem o cliente à contratar um profissional.

Os serviços

Os elementos objetivos de uma relação de consumo, conforme já dito alhures, são: o produto, e o serviço.

E o legislador consumerista, sem dúvida, estabeleceu a noção de produto vinculada a um BEM; e a noção de serviço, à ATIVIDADE, como critério distintivo básico, e com escopo fundamental de inviabilizar a incidência do Código do Consumidor sobre relações jurídicas que, embora possam ter como objeto uma atividade humana, não estariam incluídas dentre aquelas que sustentam todo o sistema normativo estabelecido, posto que não inseridas num mercado de consumo, visto este como o palco de circulação de riquezas.

Tal circunstância se apresenta bastante clara, por exemplo, quando os próprios autores do anteprojeto do CDC, citando o magistério de Philip Kotler, registram que “SERVIÇOS podem ser considerados como atividades, benefícios ou satisfações que são oferecidos à venda” (verbis, destacamos).

Data venia, não se pode vislumbrar na advocacia tais características, porque tal implicaria em negar todos os princípios éticos que norteiam a nossa atividade profissional, e os fundamentos sobre os quais foi gerado o Estatuto da Advocacia e da OAB.

É que o advogado, por expressa vedação do Estatuto, não pode colocar seus serviços à venda. Por prestar, em seu ministério privado, um serviço público, e exercer uma função social, conforme art. 2o. do Estatuto, lhe é proibido o oferecimento de serviços profissionais que impliquem, direta ou indiretamente, inculcação ou captação de clientela” (verbis, art. 7o., Código de Ética).

O exercício da advocacia, diz textualmente o art. 5o. do Código Deontológico, ”é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização” (verbis), sendo-lhe vedado, até mesmo, “a divulgação da advocacia em conjunto com outra atividade” (art. 1o., § 3o., EAOAB).

Tais vedações, a par de inúmeras outras registradas em nosso regramento profissional, sem dúvida alguma, retiram da advocacia, mesmo que se trate de uma atividade remunerada, aquela característica de serviço posto à venda, ou disponibilizado no mercado, indispensável para que se possa inseri-la no conceito de relação de consumo, inobstante a redação genérica trazida pelo Código do Consumidor.


E, neste aspecto, vale recordar a lição de CARLOS MAXIMILIANO, de que interpretar uma norma vai muito além de simplesmente esclarecer os seus termos, mas significa, antes, “revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta” , de forma a não esquecermos que a lei formal é apenas uma parte de um sistema jurídico onde convivem os princípios gerais do Direito, os postulados do direito natural, o sentimento de justiça, e a exigência de equidade, todos vivenciados e sentidos pela sociedade na qual habitamos , cabendo ao intérprete, portanto, fazer a adequação da norma ao sistema onde a mesma está inserida.

Assim, por não se enquadrar, a atividade desempenhada pelo advogado, na definição de serviço, tal como apresentada no Código de Defesa do Consumidor, temos como ausente, também, o elemento objetivo necessário à relação de consumo, que, conforme já demonstrado linhas atrás, não se caracteriza no caso dos serviços advocatícios.

Destarte, buscando socorro na lição do Min. Humberto Gomes de Barros, de que “O DIREITO É A ARTE DO JUSTO E DO RAZOÁVEL” , não parece razoável admitir a qualidade de fornecedor de serviços ao profissional da advocacia, impingindo-lhe todos os ônus daí decorrentes, quando este profissional já suporta todos os ônus que lhe são impostos pelo regramento específico de sua atividade. Configurar-se-ia uma enorme INJUSTIÇA. E, sendo injusta, a tese defendida neste sentido não pode ser agasalhada pelo Direito.

Analisados, portanto, cada um dos elementos necessários à configuração de uma relação de consumo, não há dúvidas em se concluir que a mesma se mostra ausente da relação jurídica estabelecida entre o advogado e seu cliente.

Registre-se, por fim, recente decisão proferida pelo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ, afastando a incidência da legislação consumerista sobre contratos de prestação de serviços advocatícios, assim ementada:

“PROCESSO CIVIL. (…) PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. (…)

Não há relação de consumo nos serviços prestados por advogados, seja por incidência de norma específica, no caso a Lei n°. 8.906/94, seja por não ser atividade fornecida no mercado de consumo.

As prerrogativas e obrigações impostas aos advogados – como, v.g., a necessidade de manter sua independência em qualquer circunstância e a vedação à captação de causas ou à utilização de agenciador (arts. 31, § 1o., e 34/ III e IV, da Lei n°. 8.906/94) – evidenciam natureza incompatível com a atividade de consumo.” (RESP n°. 532.377-RJ, rel. Min. César Asfor Rocha, unânime, DJ de 13/OUT/2003).

E, finalize-se com o trecho destacado do voto do relator, no processo acima, que resume tudo quanto defendemos até aqui, verbis:

“…ainda que o exercício da nobre profissão de advogado possa importar, eventualmente e em certo aspecto, espécie do gênero prestação de serviço, é ele regido por norma especial, que regula a relação entre cliente e advogado, além de dispor sobre os respectivos honorários, afastando a incidência da norma geral”.

Com tais considerações, demonstra-se a absoluta impropriedade da atuação do Promotor de Justiça ora reclamado, na instauração de Inquéritos Civis Públicos contra advogados, bem como a ilegalidade na tentativa de constranger os profissionais à assinatura de Termos de Ajustamento de Conduta desprovidos de suporte jurídico.

INEXISTÊNCIA DE INTERESSE TRANSINDIVIDUAL OU INDISPONÍVEL SUJEITO À TUTELA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Não bastasse tudo quanto exposto até aqui, há que se considerar, entrementes, que a relação jurídica entre advogado e cliente se estabelece através do mandato para o patrocínio da causa, e pelo contrato de honorários convencionado entre as partes.

Não se trata, pois, de um interesse difuso, nem coletivo, mas INDIVIDUAL, e que, mesmo assim, não pode ser classificado como homogêneo, já que não se aperfeiçoa através de um pacto de adesão formulado unilateralmente pelo advogado. Ao contrário, o contrato de honorários é definido em cada caso, lastreados em critérios específicos e determinados que, conforme a lei (art. 20, CPC), e o Código de Ética e Disciplina da OAB (art. 36), levam em consideração elementos tais como: a relevância, o vulto, a complexidade e a dificuldade das questões versadas; o trabalho e o tempo necessário à sua realização; a possibilidade de ficar o advogado impedido de intervir em outros casos, ou de se desavir com outros clientes e terceiros; o valor da causa, a condição econômica do cliente e o proveito para ele resultante do serviço profissional; o caráter da intervenção, conforme se trate de serviço a cliente avulso, habitual ou permanente; o lugar da prestação dos serviços, fora ou não do domicílio do advogado; a competência e o renome do profissional; e a praxe do foro sobre trabalhos análogos.

Ou seja, o contrato de honorários estabelece com cada cliente uma relação jurídica própria, especial, única, totalmente distinta. .

Não se trata,pois, de nenhum interesse transindividual (difuso, coletivo ou individual homogêneo). Tampouco estaríamos diante de um interesse indisponível, tais como o são o direito à vida, à saúde, à educação, etc…. O Contrato de Honorários é de natureza privada, firmado por pessoas maiores e civilmente capazes, que podem dispor sobre seu conteúdo da forma que melhor lhes aprouver.

Ademais a legitimação do MP para a defesa dos interesses individuais homogêneos, só é devida quando a lesão deles, visualizada em sua dimensão coletiva, pode comprometer interesses sociais relevantes, o que não é, absolutamente, o caso em debate.

Tais circunstâncias, pois, demonstram claramente que os usuários dos serviços jurídicos não são colocados em situação homogênea, no que se refere à eventual violação de direitos, que também não se classificam como indisponíveis, de forma que, também por isto, se mostra ilegal, além de inoportuna, a atuação do Promotor de Justiça na hipótese versada.

A VIOLAÇÃO À CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A atuação do Promotor de Justiça ora reclamado também viola o sistema jurídico adotado pela Constituição da República, cujo Capítulo IV, ao tratar das FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA, colocou o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Advocacia Privada, e a Defensoria Pública em nível de igualdade e absoluta independência, não dando azo à interpretações que promovam o controle de uma sobre as outras.

E, data máxima venia, a possibilidade de instauração de Inquérito Civis Públicos contra advogados, por membros da MP, importa, sem sombra de dúvida, na instalação de um tipo de controle externo da Advocacia, para o qual não há suporte no ordenamento jurídico pátrio.

Mais especificamente, importaria em flagrante afronta ao disposto no art. 133 da Constituição Federal, cujo comando é de clareza inquestionável ao estabelecer a INVIOLABILIDADE DO ADVOGADO, no exercício da sua profissão.

EX POSITIS, com apoio no artigo 130-A, § 2o., incisos II e III, da Constituição Federal, requer-se a adição das providências pertinentes à fazer cessar a irregularidade, bem como a aplicação, ao Reclamado, das sanções cabíveis.

São os termos pelos quais, Aguarda Deferimento.

Brasília/DF, de Setembro de 2007.

Raimundo Cezar Britto Aragão

Presidente do Conselho Federal

Alberto Zacharias Toron

Secretário Geral Adjunto do Conselho Federal

Pres. Comissão Nacional de Defesa da Prerrogativas e Valorização da Advocacia

Gisela Gondin Ramos

Conselheira Federal (SC)