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Entrevista: José Levi Mello do Amaral Júnior, constitucionalista

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9 de setembro de 2007, 0h00

José Levi Mello do Amaral - por SpaccaSpacca" data-GUID="jose_levi_mello_amaral.jpeg">O Supremo Tribunal Federal ganhou os holofotes da imprensa nas últimas semanas por julgar um dos maiores escândalos políticos dos últimos tempos, o mensalão. Fora um desconforto aqui, outro acolá, o STF se saiu muito bem, obrigado, e sua atuação recebeu elogios e mereceu aplausos. Todo o julgamento foi transmitido ao vivo pela televisão e a imprensa teve tão livre acesso ao STF que até conversa de ministro pelo computador foi fotografada.

Para o constitucionalista e procurador da Fazenda Nacional José Levi Mello do Amaral Júnior, o episódio revela duas características marcantes da corte suprema do Brasil: a transparência e a capacidade de se fazer notar positivamente. O STF é discreto, diz Amaral. “Mas, sempre que se faz notar, faz de uma maneira positiva.”

Há, sem dúvida, aqueles que criticam quando o tribunal toma a frente para garantir a liberdade daqueles que são apenas acusados, mas que são vistos pela sociedade como bandidos. É o preço que se paga pela democracia, reconhece Amaral. “O Supremo pode errar ao soltar determinado sujeito. Mas é melhor esse risco do que não ter para onde correr.”

Ao Supremo, diz o procurador, cabe a palavra final. Daí ser chamado de Supremo. Se erra, é o seu erro que se tornará a Justiça. Afinal, alguém tem de errar por último. Amaral afirma que a população tem de confiar na palavra da corte. Disso depende a democracia. “Aprender a confiar no STF demonstrará maturidade da democracia brasileira”, diz.

Amaral Júnior, hoje, atua como assessor da liderança do PSDB na Câmara dos Deputados. No STF, está engajado em um grande projeto da corte: resgatar a memória jurisprudencial dos ministros que por lá já passaram. A ele, coube escrever o perfil do ministro Aliomar Baleeiro.

Baleeiro foi ministro do STF de 1965 a 1975. Foi um dos grandes tiros do regime militar que saíram pela culatra. Nomeado pelos militares para ajudar o tribunal facilitar a vida do governo, não só não se curvou como passou a enfrentar os militares. É um dos exemplos de homens indicados à corte “que demonstram o quão a toga do Supremo faz deles homens imparciais”, aponta Amaral.

Em entrevista à Consultor Jurídico, José Levi Mello do Amaral Júnior traça um paralelo entre Baleeiro, o STF da sua época e o de hoje. Aliomar Baleeiro morreu em 1978, três anos depois de deixar a corte. Hoje, no entanto, seu legado permanece vivo nas palavras de Mello do Amaral.

Leia a entrevista

ConJur — Que importância Aliomar Baleeiro teve para o Direito?

José Levi Mello do Amaral Júnior — É tão profunda a influência dele em matéria tributária e é tão grande a consciência que o meio jurídico e político tem sobre isso que há um capítulo na Constituição Federal que reflete e homenageia uma de suas obras — Das Limitações do Poder de Tributar (Seção II do Capítulo I do Título VI da Constituição). Um de seus legados é a idéia de cláusulas gerais, ou seja, normas uniformes, nacionais, que têm de ser observadas por todos os municípios, estados e União. Essa uniformidade vem de Aliomar Baleeiro, que, como deputado constituinte, ajudou a construir a Constituição de 1946.

ConJur — Como Aliomar Baleeiro se tornou ministro do Supremo Tribunal Federal?

Amaral Júnior — Ele teve uma vida política muito intensa pela UDN (União Democrática Nacional). Foi um adversário ferrenho do governo Getúlio Vargas e, anos depois, apoiou o início do movimento militar. Em dado momento, com o AI-2, o STF ampliou o número de ministros: de 11 para 16. Aliomar Baleeiro foi um dos nomeados nessas vagas pelo presidente Castelo Branco, em 1965. Ele entrou nas vagas novas que foram criadas nitidamente para haver uma conformação do tribunal com o regime militar. Quatro anos depois, três ministros do STF, nomeados por João Goulart ou por Juscelino Kubitschek, foram aposentados compulsoriamente — Evandro Lins, Hermes Lima e Vitor Nunes. Em outra ocasião, o ministro Adaucto Cardoso, em protesto contra a censura prévia estabelecida pelo regime militar, tirou a toga, jogou em cima da sua cadeira e se retirou. Baleeiro sugeriu que essa toga fosse guardada em uma redoma de vidro para lembrar esse momento.

ConJur — Apesar de ter sido nomeado pelo regime militar, Aliomar Baleeiro se destacou por não ser reacionário.

Amaral Júnior — O ministro Evandro Lins, um dos aposentados compulsoriamente pelo regime militar, publicou um livro autobiográfico na década de 1990 (Salão dos passos perdidos) em que ele faz o seguinte comentário: o problema do regime militar é que escolheu homens liberais, que defendiam as liberdades. Ele cita o nome de Aliomar Baleeiro como exemplo daqueles que não se curvavam ao recrudescimento do autoritarismo e que, em dado momento, recrudesceram. Evandro Lins fazia referência ao governo Costa e Silva. A partir daí, Aliomar Baleeiro se tornou um crítico muito forte do regime militar e capitaneou decisões muito importantes do Supremo contra o próprio regime.


ConJur — O senhor pode dar exemplo dessas decisões?

Amaral Júnior — Em 1969, em pleno regime militar, ele comandou a declaração de inconstitucionalidade de um decreto que entendeu não versar sobre segurança nacional [à época, o executivo só podia legislar por decreto em matéria de segurança nacional]. Ele fez isso sem constrangimentos. O decreto disciplinava multa de mora em locação comercial.

ConJur — Essa independência de Aliomar Baleeiro é uma característica do Supremo Tribunal Federal?

Amaral Júnior — O Supremo tem vários exemplos históricos de homens que são indicados por um dado governo e, quando chamados a decidir sobre questões desse governo, demonstram o quão a toga do Supremo faz deles homens imparciais.

ConJur — Citaria outra decisão marcante?

Amaral Júnior — Em 1967, o STF teve um julgamento marcante. Um juiz de menores havia mandado apreender os exemplares de uma edição da revista Realidade [já extinta] que falava do comportamento sexual feminino e de maternidade fora do casamento, inclusive com gráficos do aparelho reprodutivo feminino. O caso foi parar no Supremo. O relator era o ministro Themistocles Cavalcanti, que mantinha a decisão do juiz de menores. Aí vem o ministro Baleeiro, faz uma ponderação de valores entre a liberdade de expressão e o resguardo do menor e conclui por liberar a circulação da revista. Já quase na conclusão do voto, Baleeiro fala: “a Realidade não é indicada para crianças. Isso não impede que desejem e possam lê-las adultos. E eu duvido muito que os colégios hoje ainda levem a sério a cegonha”. Ao fim do julgamento, a circulação da revista foi liberada.

ConJur — O STF é um tribunal garantista, que observa cada vez mais os direitos fundamentais do cidadão. Aliomar Baleeiro contribuiu para isso?

Amaral Júnior — A história brasileira é bastante recente e variou muito. Tivemos um Império com quase 70 anos de história e uma República com quase 120 anos. Do Império para cá, mas em especial da República para cá, houve uma série de variações no sistema de governo e até mesmo no regime de governo, da democracia ao autoritarismo. No meio dessas variações, há um fio condutor comum, uma instituição perene, que é o Supremo Tribunal Federal. Durante um longo tempo na jornada de Aliomar Baleeiro como ministro, o país vivia um déficit democrático. Sua contribuição para a história democrática brasileira é marcada pela independência, imparcialidade e tremendo apego à Constituição Federal, durante o tempo em que esteve no STF.

ConJur — Durante o julgamento do mensalão, o Supremo Tribunal Federal provou que é uma corte aberta. Todo o julgamento foi transmitido ao vivo pela televisão e a imprensa teve acesso tão livre ao STF que até conversa de ministro pelo computador foi fotografada. Essa abertura é uma característica brasileira?

Amaral Júnior — O Supremo Tribunal Federal é órgão de cúpula do Poder Judiciário extremamente discreto. A população em geral não sabe que ele existe. Mas, sempre que o STF se faz notar, faz de uma maneira positiva. No julgamento do mensalão, o Supremo se colocou absolutamente à vista da população e, com certeza, o saldo foi extremamente positivo no que se refere à impressão popular sobre o Supremo como instituição. Aliomar Baleeiro tem um livro que chama O Supremo Tribunal Federal: esse outro desconhecido. A obra revela a faceta de discrição própria da suprema corte brasileira.

ConJur — Baleeiro já falava da maneira positiva pela qual o STF aparecia para a sociedade?

Amaral Júnior – Na orelha do livro que escrevi sobre o ministro, há um trecho de O Supremo Tribunal Federal: esse outro desconhecido. Nele, Baleeiro conta quando se deu conta de que o STF existia. Ele fala do ano de 1918, quando tinha 13 anos e Rui Barbosa ia à Bahia fazer campanha para a presidência da República. Havia ameaças de atentados a Rui Barbosa e impedimentos para ele fazer seus comícios. Seus representantes, então, pediram ao Supremo um Habeas Corpus. O STF deu o Habeas Corpus e Rui Barbosa desembarcou calmamente na Bahia. Aliomar Baleeiro conta que aconteceu o comício político, uma festa impressionante e que marcou na memória o dia em que notou que o Supremo existia. Ele conclui assim: “Foi assim que tomei consciência do Supremo Tribunal Federal e de sua missão de sentinela das liberdades públicas, vinculado a imagens imperecíveis na minha memória. E também na minha saudade”.

ConJur — O senhor diz que o Supremo aparece sempre com boa imagem. Mas também se diz que a Polícia e o Ministério Público prendem os criminosos e o STF manda soltar?

Amaral Júnior — Dizer isso é não compreender o papel da instituição Supremo Tribunal Federal na própria democracia. Ele garante as liberdades de cada um. Vou, de novo, citar uma frase de Aliomar Baleeiro: “o Supremo Tribunal Federal, queira ou não queira, está sempre certo”. É o STF quem dá a última palavra e a ele cabe até errar por último.


ConJur — Será que a população tem essa compreensão de que o STF, quando garante a liberdade de cada um, está defendendo a democracia e o que diz a Constituição Federal?

Amaral Júnior — A democracia no Brasil não tem nem 20 anos. É muito nova. Antes de 1988, as pessoas não estavam acostumadas a ter a sua liberdade garantida. É preciso entender que, como uma instituição humana, o Supremo pode errar ao soltar determinado sujeito. Mas é melhor esse risco do que não ter para onde correr.

ConJur — As sessões nos órgãos de cúpula do Judiciário de outros países têm a mesma abertura que as do STF?

Amaral Júnior — A ministra Ellen Gracie, no final do julgamento do mensalão, afirmou que a maioria das pessoas, até mesmo muitos juristas, não tem noção de que a abertura e transparência do STF talvez sejam únicas no mundo. A Suprema Corte dos Estados Unidos decide reservadamente. A maioria dos tribunais europeus também. Gustavo Zagrebelsky, constitucionalista que fez parte da Corte Constitucional italiana na década de 1990, contou que há duas salas no tribunal: uma tem uma mesa forma de U, que expressa que a corte está aberta a ouvir advogados, partes e peritos; a outra tem uma mesa oval, que é onde os juízes sentam para decidir. Essa sala é fechada e não há publicidade do que é discutido. Ali, eles entendem que podem decidir livres das pressões da mídia e do público. No Brasil, a tradição é de total transparência. Com isso, confiamos que nossos ministros estão acima da pressão. Historicamente, isso tem se confirmado. Não me lembro de nenhuma decisão do STF que tenha sido tomada por conta de protestos da sociedade.

ConJur — A afirmação do ministro Ricardo Lewandowski, de que sentiu a faca no pescoço, não revela certa pressão nos julgamentos?

Amaral Júnior — No Brasil, por a democracia ainda ser nova, levamos ao limite certos princípios democráticos, por exemplo, a transparência. Eu acompanhei o julgamento do mensalão e fiquei com a sensação de que os ministros estavam extremamente à vontade. Se houve um ou outro desconforto, isso não prejudicou em nada o julgamento, que foi transparente, tranqüilo e sereno. Isso pôde ser notado na voz da ministra Ellen Gracie ao encerrar a sessão.

ConJur — O STF acaba de nomear um novo ministro. Mais uma vez houve várias críticas à forma de escolha dos ministros. O que o senhor acha da atual forma de indicação?

Amaral Júnior — Existem, basicamente, duas formas de escolha dos ministros da corte suprema: a européia e a norte-americana. No modelo europeu, diversos órgãos constitucionais participam da escolha, e não apenas o chefe do governo. No modelo norte-americano, o presidente da República indica alguém e o Senado sabatina. O Brasil segue este modelo desde a primeira Constituição republicana. A novidade que veio com a Constituição de 1988 é a sabatina prévia à nomeação do escolhido. O primeiro que passou por esse formato novo foi o ministro Paulo Brossard, primeiro indicado pelo presidente Sarney. Depois, vieram os ministros Sepúlveda Pertence e Celso de Mello. Agora, respondendo a sua pergunta, acho boa a forma de escolha brasileira dos ministros do STF porque ela deriva de um encontro de vontades do presidente da República e do Senado. A nossa mecânica é boa, mas a prática tinha de ser aperfeiçoada.

ConJur — Como?

Amaral Júnior – A sabatina tinha de ser o mais próximo possível de um grande debate nacional, que é o que os Estados Unidos fazem. Ela tinha de ser exaustiva, de vários dias, sobre temas pessoais e acadêmicos do indicado. A sociedade tinha de ser mobilizada para discutir o candidato. Ainda que a população não note, um ministro do Supremo tem uma influência tremenda na vida das pessoas. Eu também aumentaria a maioria necessária para aprovação no Senado. Hoje, vale a maioria absoluta. Deveria ser dois terços, como na Alemanha. Isso obriga os grupos parlamentares a ter um consenso maior e aumenta a chance de indicar um técnico distante da política partidária.

ConJur — Como o senhor vê as indicações para o STF até hoje?

Amaral Júnior – O Supremo tem funcionado muito bem e isso mostra que as indicações têm sido boas. Não há como não reconhecer isso.

ConJur — O Supremo julga demais? Há excesso de competência?

Amaral Júnior — O Supremo é uma suprema corte que exerce funções típicas de Justiça constitucional. Os similares do Supremo mundo afora escolhem o que julgam. É o famoso juízo de relevância. O argumento contrário é o de que isso contrariaria o acesso ao Judiciário e o duplo grau de jurisdição. Não é verdade. O acesso ao Judiciário se concretiza na primeira instância e o duplo grau de jurisdição, no tribunal de apelação, que pode ser Tribunal de Justiça, Tribunal Regional Federal ou Tribunal Regional de Trabalho. A corte suprema tem de poder escolher o que quer julgar. Só assim dá para controlar a quantidade de processos.

ConJur — O Brasil caminha para essa liberdade de escolha?

Amaral Júnior — Tenho a expectativa de que isso comece a mudar pela conjugação de dois fatores: a Súmula Vinculante e a Repercussão Geral do Recurso Extraordinário. O STF tem responsabilidade suficiente para dizer o que é relevante e merece seu julgamento. Aprender a confiar no STF demonstrará maturidade da democracia brasileira.

ConJur — Seu livro sobre Aliomar Baleeiro faz parte da série Memória Jurisprudencial do Supremo. Que série é essa?

Amaral Júnior — É um projeto que começou durante a presidência do ministro Nelson Jobim, sob a coordenação do ministro Gilmar Mendes, e foi acolhido com empolgação pela ministra Ellen Gracie. A idéia é fazer perfis jurisprudenciais dos ministros antigos. Nessa primeira leva, foram escolhidos cinco ministros: Pedro Lessa, Orozimbo Nonato, Castro Nunes, Vitor Nunes Leão e Aliomar Baleeiro. Desses, Baleeiro é o mais moderno e Pedro Lessa, o mais antigo. Cinco pesquisadores foram convidados para escrever os perfis. Eu fiquei com o perfil de Aliomar Baleeiro. É espetacular para recuperar a memória impressionantemente rica e atual que o Supremo lega para o país.

ConJur — Será feito um perfil de todos aqueles que já foram ministros do Supremo?

Amaral Júnior — Parece-me que a idéia é enfocar uns ministros mais antigos, da década de 1970 para trás, e recuperar a memória deles. Isso é importante para compreendermos a evolução da jurisprudência no tempo e para ver como questões que discutimos hoje eram tratadas anos atrás.

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