Privilégio ou prerrogativa

Procurador-geral e advogado divergem sobre extensão de foro

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1 de setembro de 2007, 11h19

Polêmico, porque divide juristas, promotores, advogados e magistrados, o foro privilegiado foi tema de debate no jornal O Estado de S. Paulo, que colocou frente à frente Rodrigo César Rebello Pinho, procurador-geral de Justiça de São Paulo, e Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, criminalista com ampla experiência nos tribunais.

“O Ministério Público é contra a ampliação indevida do foro, inclusive para ex-autoridades e ex-ocupantes de cargos públicos, porque é um privilégio que inviabiliza as investigações sobre atos de corrupção e improbidade”(Rodrigo Pinho).

“O foro não é um privilégio, é prerrogativa para algumas funções públicas. Deve existir. Privilégio é algo concedido a alguém em detrimento de outros que estão numa mesma situação jurídica, algo que quebra o princípio da igualdade” (Mariz de Oliveira).

Porque beneficia inclusive deputados, o foro arrastou o processo do mensalão para o Supremo Tribunal Federal. São 40 os réus desse capítulo da história que atormenta o governo Lula. Poucos desse grupo, que a Procuradoria-Geral da República rotulou de organização criminosa, têm direito ao foro, mas o princípio da conexão estendeu o privilégio a todos os demais acusados — empresários, publicitários, banqueiros e até servidores públicos que não ocupam ou não ocupavam funções de mando. O STF levou 5 dias apenas para decidir se abria a ação contra os réus do mensalão. Deverá levar pelo menos 5 anos para concluir o julgamento.

O procurador e o advogado divergem com relação a alguns pontos, mas concordam em outros — ambos se declaram contra a “extensão indiscriminada”, como a que foi promovida pela Assembléia de Minas Gerais, em julho, que estendeu o privilégio a cerca de 1,3 mil autoridades estaduais e municipais, atropelando veto do governador Aécio Neves (PSDB). Pinho e Mariz também avaliam que a morosidade do Judiciário aumenta a sensação de impunidade.

O debate, mediado pelo jornalista Roberto Godoy, do Estado, foi transmitido ao vivo no dia 27 pelo portal do Estadao.com.Br, com a participação de internautas, que puderam enviar perguntas.

A seguir, alguns dos principais pontos do debate:

O foro é justo e necessário?

Rodrigo César Rebello Pinho — O Ministério Público defende o foro por prerrogativa de função apenas nas hipóteses previstas na Constituição. Em relação ao presidente da República e aos governadores, por exemplo. Não é razoável que um juiz de primeiro grau possa afastar o presidente de suas funções. Isso cria uma instabilidade. O foro não é uma vantagem pessoal, em razão de uma estirpe, de uma condição pessoal. Ele existe em razão do cargo que, no momento do fato sob investigação, a pessoa exerce. É justo e razoável em relação a certas autoridades. Mas não pode ser ampliado de forma desmedida, para beneficiar até ex-ocupantes de cargos públicos.

Antonio Claudio Mariz de Oliveira — O termo correto não é foro privilegiado, é foro por prerrogativa de função. Algumas situações específicas justificam o foro, isso não afronta a igualdade. É preciso deixar claro que quem detém o foro não vai ser julgado por um órgão de fora do Judiciário. Não se trata de um tribunal especial para julgar presidente, governador, procurador-geral. São órgãos da estrutura do Poder Judiciário, compostos de juízes que têm as mesmas garantias e obrigações de todos os juízes. O acusado será julgado por alguém investido das funções de julgador. Algumas autoridades podem e devem ser julgadas de forma diferenciada porque exercem funções especiais, com características especiais. Não posso entender que um presidente de tribunal possa ser julgado por um juiz de primeira instância, recém-ingresso na magistratura, inexperiente.

O que mais preocupa com relação ao foro no momento?

Pinho — A extensão indiscriminada do foro. É o limite que devemos estabelecer, até onde é razoável o foro por prerrogativa. Entendo que em relação a chefe de Poder, aquele que ocupa cargo específico, até para possibilitar uma isenção maior do julgamento, para esses devemos fazer a distinção do que é privilégio e do que é foro por prerrogativa. Em Minas Gerais, a Assembléia aprovou uma lei que dá foro para 1,3 mil pessoas. Essa lei não tem previsão constitucional. Eram 4 ou 5 autoridades com foro, pulou para mais de mil. Querem estender o foro por legislação estadual. Isso esvazia o conteúdo da norma. Pelo foro busca-se impunidade. A conseqüência é a maior morosidade do Judiciário, que alimenta a impunidade e, em muitos casos, leva à prescrição de crimes. O exemplo de Minas é ruim, porque estende de forma abusiva o foro e concentra poderes nas mãos do procurador-geral. Devemos admitir o foro para quem tem grande poder de decisão.

Mariz —Em relação a Minas também sou absolutamente contra a ampliação do foro. Compreendo a preocupação com a prescrição, mas lembro que também as varas e os juízos singulares estão com suas pautas sobrecarregadas. Se os tribunais estão sobrecarregados, os juízes da primeira instância também estão. O juiz tem acúmulo de serviço muito grande.

O foro contribui ainda mais para a morosidade?

Pinho — Nossos tribunais já não têm condições de julgar o grande número de recursos. Logo, não terão como instruir tantas ações se o foro for estendido dessa forma, inclusive para os casos de improbidade. Devemos limitar o foro somente para aqueles citados na Constituição, para situações em que a autoridade está no exercício do cargo. É justamente o exercício que justifica o foro.

Mariz — O foro por prerrogativa é do Direito brasileiro. Acho que essa discussão envereda por alguns segmentos interessados na desmoralização do Judiciário, na diminuição da sua credibilidade. O Judiciário tem suas mazelas, que precisam ser corrigidas. Mas é preciso reconhecer o lado bom do Judiciário, porque do contrário vamos caminhar para uma situação muito perigosa. O foro não é pró-corrupção. Essa imagem é errada, porque estão enlameando os membros dos tribunais competentes. Os desembargadores e os ministros são homens de bem. Não fazem parte de um tribunal de exceção. Os ministros são piores que juízes de primeiro grau? Estão colocando uma pecha de que eles são adeptos da impunidade, e isso não é verdade. Há mais morosidade sim, mas dizer que há impunidade não é correto. É ruim porque desmoraliza o Judiciário.

Os prefeitos devem ter foro?

Pinho — Não. Na área criminal, a lentidão é evidente nos casos que envolvem prefeitos. Os promotores e os juízes que estão muito próximos do fato têm melhores condições de apreciar uma denúncia e investigá-la. O bom promotor e o bom juiz têm experiência suficiente para evitar que sejam transformados em instrumentos de utilização política, sobretudo em época de eleição. Isso realmente pode ocorrer, faz parte da democracia. É por isso que o juiz e o promotor têm que estar atentos. Mas tem uma boa notícia: o Tribunal de Justiça de São Paulo estuda a criação de uma câmara especializada para cuidar exclusivamente de ações relativas a prefeitos. O presidente do TJ (desembargador Celso Limongi) encaminhou proposta ao Órgão Especial.

Mariz — Sou a favor. Com relação aos prefeitos, a prerrogativa cria blindagem para impedir influências políticas. Um problema muito sério é o da politização da Justiça, especialmente nas comarcas do interior do Brasil, onde tanto o juiz como o promotor ficam sujeitos a influências e pressões. Isso é real. Na apuração dos crimes de maior repercussão, muitas vezes juiz e promotor ficam subjetivamente comprometidos emocionalmente com o fato. São seres humanos. Podem não se imiscuir, mas sentirão toda aquela repercussão que está batendo à sua porta.

Não é o momento de uma revitalização dos tribunais?

Pinho — Cada ministro do STF julga 10 mil feitos/ano. Eles julgam por pilha. Em outros países as altas cortes julgam 300 a 400 casos por ano. Aqui, a decisão judicial de primeiro grau não tem efeito tão forte, tudo vai parar em Brasília. A Justiça local não é tão valorizada, é preciso uma reforma.

Mariz —O problema atinge a Justiça como um todo. São muitos os problemas, informatização insuficiente, má condição de trabalho, escassez de funcionários e outros fatores que levam o Judiciário a não dar a resposta no tempo desejado.

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