Vítimas da ignorância

Crime demandará atenção quando virar fumaça insuportável

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29 de outubro de 2007, 23h00

É possível comentar um filme, sem mesmo ter assistido? Não se trata o presente ensaio de analisar propriamente uma produção cinematográfica e sim os temas ventilados pela filmagem: o paradigma de bandido e mocinho. Daí que a realidade prescinde das lentes ou traduções artísticas, mas é sempre um alento quando o produtor logra perceber que o fenômeno da violência é maior do que fórmulas de simplificação.

A primeira observação sobre o mocinho — a Polícia — ineludívelmente trata-se de uma instituição das mais desprestigiadas pelo poder público, sem qualquer amparo técnico ou benefícios de carreira. A força policial é interpretada de forma marginal porque, deveras, é tratada marginalmente pelo Poder Executivo e, não raro, pelos demais que compõe a tríade republicana. Delegados que atuam sem garantias constitucionais mínimas, como braço longo do poder que gerencia a investigação, ainda sob as ameaças constantes de interceptações de atribuição funcional, é claro que não podem desenvolver uma produção na qual a sociedade aplauda.

Ainda dissertando sobre os mocinhos — os índices de corrupção policial são infinitamente menores do que a sensação generalizada de medo, contaminada a opinião pública. É bem verdade que ressalvas há em qualquer parte, o que não pode descredenciar todo um seguimento que, malgrado o despreparo e a carência franciscana de recursos, ainda se bate por conter o avanço das ocorrências penais. Quando falta gasolina para o flagrante e o papel para a ocorrência, a sociedade deveria ser informada da impossibilidade de retorno às suas expectativas, por culpa notória dos governos respectivos. Se o minguado contingente da Polícia Federal causa espanto àqueles que enaltecem a atuação sempre coberta pelas assessorias de imprensa, morrerá de desgosto ao perceber o pauperismo das polícias civis brasileiras.

O bandido, enfim. A figura do criminoso não poderá ser romanceada, de fato. Se há violência pura e simples, atentando contra a incolumidade pública e ameaçando a cidadania das vítimas, por certo é que a repressão estatal deve atuar contundentemente. Justificar o crime somente pela condição social no qual o delinqüente está inserido seria uma simplificação ignóbil, própria das esquerdas em todo o mundo. A motivação do crime pode contar com milhares de elementos, desde aspectos psicológicos, como questões atinentes ao meio econômico onde está mergulhado o criminoso. Todavia, devemos reconhecer que dificilmente alguém se arriscará a partilhar responsabilidades, na apuração do ilícito ou mesmo na sentença penal. E nem é o caso.

O que queremos deixar claro é que, ainda não culpando a pobreza pela incidência de crimes contra o patrimônio e nem escusando o delinqüente, a verdade é uma só: as ocorrências de delitos mais comezinhos que demandam atenção imediata do poder público e que sugerem um estado de insegurança pública, tanto mais são cometidos, quanto mais há disparidade de renda. O problema é que o Brasil é um país tão pobre que à mingua de dados estatísticos, ninguém ousa compará-lo com recantos menos e mais desenvolvidos, porque perceberia uma responsabilidade coletiva — difícil de assumir.

É preferível afirmar que “nem todo pobre é ladrão” do que reconhecer que a criminalidade está estampada em zonas mais pobres do globo e do país. Assim, a solução de emergência penal torna-se bem mais crível e cômoda, sem perpassar pela discussão social, tal qual a dificuldade em dialogar num casamento já fadado ao fracasso. Dessa forma, a polêmica sobre segurança pública sempre terá o fracasso como meta, caso insistamos em mirar o crime como fenômeno autônomo, sem causa além do barbarismo do indivíduo. Pode dar ibope aos programas policiais ou eleger alguns mantenedores da lógica do terror, mas não resolve o problema jamais.

Ora, a filmagem deixou claro que o tráfico de drogas tem como combustível fundamental o consumo e que a sociedade brasileira precisa ter ciência da co-responsabilidade e dos reflexos onerosos de opções que ela mesma toma. É o consumidor quem financia o tráfico e, desse modo, induz à violência. Por isso mesmo, temos insistido enfaticamente que se dá com o fenômeno criminal o mesmo da questão ambiental: o desmate e a queimada do norte está repercutindo no sul, de modo a chamar atenção dos centros financeiros até então pouco preocupados. É que a fumaça chegou aos quintais da elite formadora de opinião.

Dispenso os búzios: o crime demandará atenção quando se tornar uma fumaça insuportável. Contudo, nesse caso, as celas não vão poder conter o fogo. Com o advento do filme Tropa de elite, parece-me que o descaso e o cinismo institucional dos alienados críticos da Polícia precisa acabar, sob pena de serem os próximos alvos da própria ignorância.

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