Invasão de privacidade

Trezentos mil brasileiros estão com telefone grampeado

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27 de outubro de 2007, 11h49

Cerca de 300 mil brasileiros estão com o telefone grampeado. A estimativa é de Neri Kluwe, presidente da Associação de Servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Asbin). Segundo ele, apenas 15 mil escutas funcionam dentro dos limites da lei. O resto é clandestino.

Reportagem da revista Época, assinada pelas jornalistas Tina Vieira e Solange Azevedo, mostra que a prática de vigiar conversas telefônicas no Brasil se tornou tão corriqueira que transparece em boa parte das notícias sobre investigações policiais. A mais recente foi na semana passada, quando nove policiais foram presos no interior de São Paulo acusados de usar grampos para achacar traficantes. Segundo a Corregedoria da Polícia Civil de Campinas, São Paulo, o delegado Pedro Luiz Pórrio conseguiu na Justiça autorização para interceptar o telefone de um suspeito. As gravações, que incriminariam o suposto traficante, não foram usadas para prendê-lo, mas sim para extorquir R$ 35 mil.

Na terça-feira 23 de outubro, a Câmara dos Deputados criou uma comissão para investigar denúncias sobre grampos telefônicos ilegais por parte de órgãos policiais. O deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), que deverá presidir a CPI, diz que a comissão vai mapear o uso de grampos em todo o país e propor medidas de controle.

Assim como a Câmara, o governo está se mexendo. Em novembro, uma comissão com representantes do Ministério da Justiça, Polícia Federal e Ministério Público conclui a redação de um projeto de lei com novas regras para a interceptação telefônica.

Segundo a reportagem da revista Época, no Brasil o grampo alimenta uma rede de chantagem, intimidação e constrangimento da qual é difícil escapar. “As escutas têm servido para vários tipos de espionagem política, comercial, industrial e criminal. O abuso é grande”, afirma o desembargador Tourinho Neto, do Tribunal Regional Federal, em Brasília. No fim de junho, ele julgou o Mandado de Segurança pedido por uma companhia telefônica que se recusava a executar escutas a pedido da Polícia Federal. Os agentes da PF queriam instalar grampos telefônicos em várias linhas, sem especificar os números que deveriam ser interceptados.

A decisão que impediu o grampo afirma: “Na própria polícia, o subordinado escuta as conversas dos seus chefes, dos delegados, tomando conhecimento das pomposas operações, dos jornalistas, dos políticos, do amigo e do inimigo”. A decisão recebeu o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil. “Para a polícia, é mais fácil ficar ouvindo conversas alheias do que investigar”, afirma Cezar Britto, presidente nacional da OAB.

A proliferação de escutas levanta uma questão: existe direito à privacidade no Brasil? Para Rodrigo Collaço, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, a intimidade não está ameaçada. “Algumas instituições reclamam do uso de grampos porque agora pessoas de expressão estão sendo investigadas”, afirma. Neri Kluwe, presidente da Asbin, diz o contrário. “O descontrole no uso desses métodos de Inteligência no Brasil faz com que ninguém esteja livre do grampo.”

Driblar as escutas faz parte do dia-a-dia de criminosos, terroristas e até empresários desconfiados da concorrência. A paranóia alimenta a indústria da contra-espionagem, que lucra vendendo vacinas contra o grampo. Uma delas é a criptografia das conversas telefônicas. A SecurStar, uma das empresas que oferecem esse tipo de blindagem no Brasil, afirma que seu público-alvo não são criminosos. Mesmo assim, Wilfried Hafner, presidente da empresa, diz que a tecnologia pode servir tanto a honestos quanto a bandidos. “Infelizmente, não podemos impedir o uso indevido.” Entre seus clientes, há políticos, bancos, escritórios de advocacia e até órgãos de investigação do governo. No meio das escutas e dos despistes, como fica a intimidade do cidadão comum?

Lá fora

A invasão da privacidade tem sido discutida em vários países. Os Estados Unidos adotaram medidas radicais para monitorar suspeitos de terrorismo. Depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, a Agência de Segurança Nacional (NSA, em inglês) desenvolveu um sistema de espionagem para ter acesso a todo tipo de dados transmitidos pelas empresas de telecomunicação, inclusive por internet. As escutas funcionaram sem autorização judicial entre 2002 e 2006. Uma ação coletiva, da qual um dos autores foi o jornalista Christopher Hitchens, colunista de Época, conseguiu derrubar na Justiça o “big brother” de George W. Bush. Uma juíza federal ordenou a suspensão do programa. A Casa Branca recorreu da decisão e o programa de vigilância foi mantido por outra decisão, de julho deste ano.

Na Alemanha, a lei Grosser Lauschangriff (ou “grande ataque de espião”) permite que órgãos de investigação monitorem locais e grampeiem telefones e ainda proíbe a criptografia de voz que serviria de proteção antigrampo, por entender que ela pode obstruir a Justiça. Na Inglaterra, a preocupação com a privacidade vai além das escutas. Hoje, em Londres, um pedestre pode ser observado por 300 câmeras de circuito fechado num único dia. O sistema foi adotado para coibir a violência, sobretudo no centro da cidade. Pelos números da polícia, a vigilância não surtiu efeito – o crime vem aumentando na cidade.

No Brasil, a Lei no 9.296, de 1996, afirma que a polícia e o Ministério Público só podem recorrer a interceptações telefônicas quando houver “indícios razoáveis” de envolvimento em crime punível com prisão e se a prova não puder ser obtida de outra forma. Na prática, esses pré-requisitos não são respeitados. No fim de junho, promotores do Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial (Gecep) entregaram ao procurador-geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo Pinho, um relatório sobre irregularidades na realização de escutas telefônicas. “A maioria dos pedidos feitos pela polícia e autorizados pela Justiça é apresentada sem os dados do titular da linha. Há apenas o prenome ou o apelido dos investigados”, diz o promotor Fábio José Bueno, ex-integrante do Gecep.

Exemplos

Há três anos, o engenheiro Hugo Sterman Filho passou 11 dias na cadeia. Empresário do ramo imobiliário, ele foi preso por engano durante a Operação Anaconda, em que a Polícia Federal apurava um esquema de vendas de sentenças judiciais. O empresário foi libertado depois de o advogado dele, o criminalista Alberto Zacharias Toron, ter demonstrado à Justiça que, em determinado momento, sem explicação aparente, relatórios do serviço de inteligência da PF passaram a atribuir atos de Hugo Carlette, um dos suspeitos, a Hugo Sterman.

Toron recorreu a uma perícia de voz para mostrar que, nos grampos feitos pela PF, não era seu cliente quem conversava com o ex-agente federal César Herman, um dos principais envolvidos no esquema criminoso. A confusão teria ocorrido porque um celular adquirido pela empresa de Sterman foi desviado e usado, sem o conhecimento dele, por alguém que tinha contato com Herman. Nas gravações, Herman e o seu interlocutor, que a polícia tomou por Sterman, conversavam sobre as estratégias para obter liberdade provisória para um comparsa. Em abril deste ano, Sterman ganhou uma ação de indenização por danos morais movida contra a União. A Justiça Federal de São Paulo determinou o pagamento de R$ 500 mil ao empresário. Ainda cabe recurso.

Quando se é grampeado, a vida deixa de ter segredos. Tudo o que é dito cai nos ouvidos dos agentes: problemas familiares, intimidades de um casal, traições, tudo. Pela Lei de Interceptação Telefônica, todo esse material deveria ser descartado. Nem sempre isso acontece. Nas escutas feitas durante a Operação Anaconda, a Polícia Federal descobriu que o ex-agente da PF César Herman ligou para o advogado e ex-deputado federal José Roberto Batochio. Os contatos foram feitos durante a campanha eleitoral de 2002, quando Batochio coordenava a campanha de Ciro Gomes à Presidência da República.

Nas escutas, Herman diz querer contribuir com a campanha de Ciro e oferece a Batochio um dossiê sobre irregularidades no Funcef, o fundo de pensão da Caixa Econômica Federal. O material poderia ser usado contra o PSDB e enfraquecer a candidatura do tucano José Serra. “Herman disse que tinha um dossiê e queria entregá-lo para o Ciro. E eu dei o endereço do comitê. Como deputado, se eu recebesse alguma denúncia, a levaria direto para a Câmara.” As conversas vazaram para a mídia. “Trechos descontextualizados foram divulgados pela imprensa e houve insinuações de que eu tinha relações com os envolvidos na Operação Anaconda. Chegaram até a bisbilhotar minhas declarações de Imposto de Renda”, afirma Batochio.

Segundo ele, seus adversários no PDT aproveitaram o episódio para lhe tomar a presidência do partido em São Paulo. Em um relatório da Polícia Federal, Batochio, que já foi presidente nacional da OAB, chegou a ser incluído na categoria dos auxiliares da quadrilha que comandava o esquema de venda de sentenças judiciais. Mas, em uma nota divulgada à imprensa em novembro de 2003, o então diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda, admitiu que a inclusão do nome de Batochio como suspeito de envolvimento na Operação Anaconda foi um equívoco.

Problema da lei

A falta de indícios razoáveis nos pedidos de escuta telefônica fere a lei, mas é entendida pela Secretaria da Segurança Pública de São Paulo como parte da dinâmica das investigações. “É comum termos conhecimento sobre determinados números de telefones usados por criminosos, mas não sabermos quem são os donos das linhas”, diz Romeu Tuma Júnior, ex-delegado do Departamento de Inteligência da Polícia Civil e atual secretário nacional de Justiça. “Os criminosos costumam usar celulares clonados ou em nome de terceiros.” Em um caso de seqüestro, se os investigadores descobrirem o número dos bandidos, pedirão a quebra do sigilo mesmo sem ter idéia de quem está do outro lado da linha.

Para grampear telefones suspeitos, o sistema mais usado no país é o Guardião, desenvolvido em parceria por técnicos da Polícia Federal e pela empresa de telecomunicações Dígitro. O diretor da área de segurança pública da empresa, Roberto Prudêncio, diz que o Guardião é um programa de computador capaz de gravar conversas telefônicas e identificar vozes. Ele permite cruzar ligações entre as mesmas pessoas, facilitando a análise das informações.

“Quando um telefone está sendo monitorado, são gravados os dados e conversas de ligações feitas dele e para ele”, diz Prudêncio. Com o sucesso do Guardião, o faturamento da Dígitro cresce em média 30% ao ano. Até a Procuradoria-Geral da República, que por lei não tem o direito de grampear ninguém, comprou o sistema, em 2004, por R$ 732 mil. O motivo da compra, na gestão do ex-procurador-geral Claudio Fontelles, seria ajudar nas investigações sobre o uso indevido das contas bancárias CC5, que permitem remessa de dinheiro para o exterior. O atual procurador-geral da s República, Antônio Fernando de Souza, diz que pretende doá-lo à Polícia Federal.

No passado, os agentes públicos que faziam escutas eram conhecidos como arapongas. O termo saiu de moda, a prática não. Tanto que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) quer readquirir o direito legal de grampear. A idéia é defendida pelo novo diretor-geral do órgão, Paulo Lacerda, que chefiou a Polícia Federal nos últimos quatro anos. Para que a agência recupere o direito ao grampo é preciso mexer na Constituição. Além disso, a proposta precisa receber a aprovação do presidente Lula.

Por enquanto, o governo está disposto apenas a endurecer a atual lei de interceptação telefônica. “A escuta é um instrumento muito útil, mas também invasivo”, diz Pedro Abramovay, secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. O grupo de trabalho criado pelo Ministério deve apresentar uma lista de crimes para os quais a interceptação poderá ser utilizada. A punição para os vazamentos também deverá aumentar. Hoje, as penas vão de dois a quatro anos de prisão. Mas raramente os culpados são punidos.

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