Controle mediador

Não se pode dizer que Executivo legisla sem o Congresso

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26 de outubro de 2007, 19h04

O Brasil convive há quase duas décadas com um consenso: a demonização das Medidas Provisórias. Versão da Nova República para o famigerado Decreto-Lei, a Medida Provisória foi usada vastamente por todos os governos após a Constituição de 1988 e, na mesma medida de seu uso, foram as críticas a respeito deste modo do Executivo editar normas.

O ponto principal das críticas realizadas dizem respeito ao caráter antidemocrático da utilização deste instrumento normativo.

Na verdade, a grande distorção estaria na usurpação, por parte do Executivo, da função precípua do Legislativo que é, evidentemente, a de legislar. A separação dos Poderes é, segundo o artigo 60, parágrafo 4º, III, da Constituição Federal, cláusula pétrea. No entanto, essa separação tem limites ditados primeiramente pelo próprio artigo 2º da CF que determina que os poderes sejam “independentes e harmônicos entre si”, mas também por toda a divisão de atribuições entre os poderes que o constituinte originário desenhou. É lugar comum dizer que o Executivo legisla, o Legislativo julga e o Judiciário executa.

Ocorre que, apesar destes limites dados pela própria Constituição delinearem a fronteira de constitucionalidade da separação de Poderes, é fundamental que a sociedade esteja sempre atenta para acompanhar como se dá a real aplicação destes preceitos e fazer uma avaliação sobre o impacto deste desenho na ordem política nacional.

Ora, o que se viu após Constituição — e de maneira radicalizada durante o governo Fernando Henrique Cardoso — foi uma hipertrofia do Poder Executivo que detinha quase que o monopólio do poder de legislar sobre matérias relevantes. A possibilidade de reeditar as Medidas Provisórias sem limites, apesar de aceita pela interpretação vigente da Constituição, subvertia evidentemente a idéia de separação harmônica dos Poderes e dava ao Legislativo quase que exclusivamente o papel de se pronunciar em matérias constitucionais.

Para Fábio Comparato, o Executivo, com as MPs, tolhia “a função essencial dos parlamentares, enquanto representantes do povo, [que] consiste, justamente, em limitar os poderes de coação do governo e fiscalizar o seu exercício”[1].

No mesmo sentido, Carmen Lúcia Antunes Rocha afirma que a separação de Poderes existe justamente para evitar o abuso de poder por meio do “controle do exercício do poder” por outro Poder. [2]

A partir deste diagnóstico, e de uma grande pressão da sociedade sobre a utilização indiscriminada das medidas provisórias, o Congresso Nacional iniciou um debate, que durou muitos anos e culminou com a aprovação da Emenda Constitucional 32 de 2001.

A EC 32/01 trouxe uma série de modificações no processo de edição de Medidas Provisórias, que constituem limitações bastante sérias ao avanço do Executivo sobre o papel do Legislativo.

A primeira forma de restringir as edições de MPs foi o estabelecimento de limitações materiais ao Executivo. Essas limitações, inexistentes no texto original da Constituição[3], foram bastante severas. Atualmente, não se pode editar MPs sobre: nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos, direito eleitoral, direito penal, processual penal, processual civil, organização do Poder Judiciário e do Ministério Público (a carreira e a garantia de seus membros), matéria orçamentária (ressalvados os créditos extraordinários), que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro, matéria reservada a Lei Complementar e matéria já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso e pendente de sanção pelo presidente.

Tais limitações devolvem ao Congresso Nacional o monopólio da decisão política sobre temas fundamentais e que demandam uma discussão mais ampla com a sociedade. A recente tramitação em tempo absolutamente adequado dos projetos de lei da chamada “Reforma Infraconstitucional do Judiciário”, que modificaram e modernizaram sensivelmente o processo civil brasileiro e contaram com uma ampla colaboração do Congresso Nacional, é um exemplo de que o Legislativo é sensível a temas importantes e não há necessidade de se utilizar de um instrumento de maior fragilidade jurídica, como a Medida Provisória, para alterações legislativas desta magnitude.

Além disso, o novo texto constitucional como bem salientou Oscar Dias Corrêa[4], transfere do Executivo para o Legislativo o juízo sobre a relevância e a urgência das MPs editadas. O parágrafo 5º do artigo 62 prescreve que, antes de analisar o mérito da Medida, deve o Congresso analisar se estão atendidos os pressupostos constitucionais.

Finalmente, a EC estabeleceu o fim das reedições que, na prática, retirava o Parlamento do processo legislativo. O parágrafo 2º do artigo 62 determina que perderão eficácia as medidas que não forem apreciadas pelo Congresso Nacional no prazo de 120 dias.

Esta é sem dúvida a principal inovação da EC 32/01 e que produziu os mais robustos resultados. Com esta limitação de vigência da MP, não pode mais o Executivo, como fazia despudoradamente até 2001, reeditar medidas provisórias por anos sem que o Congresso Nacional seja ouvido e participe ativamente da Lei que será produto da MP editada.

Quando se analisa o que ocorreu com as MPs antes e depois da alteração constitucional, nota-se que a participação ativa do Congresso no processo de conversão de MPs em leis saltou de quase irrisória até 2001 para constante a partir de então.

Até 2001, foram editadas 6.110[5] MPs das quais 20 foram rejeitadas e 167 foram modificadas pelo Congresso. A partir de 2001[6], foram editadas 396 MPs, das quais 25 foram rejeitadas e 168, alteradas.

Mesmo sabendo que o número de MPs editadas inclui as reedições (que muitas vezes continham alterações com relação ao texto original) é forçoso reconhecer que não se pode mais dizer que o Executivo legisla sem a participação do Congresso.

Se ainda retirarmos os Créditos Extraordinários (matéria de cunho mais executivo, sobre a qual a participação do Congresso é, por natureza, menor) temos 298 medidas editadas, das quais 24 rejeitadas e 159 alteradas. Isso significa que, em 61% das MPs que tratam de matéria legislativa stricto sensu , o Congresso alterou ou rejeitou a proposta do Executivo.

A partir deste dado, fica claro que a principal crítica feita à utilização das MPs, no sentido de que o Executivo exercia o poder sem o controle do Legislativo, causando fissuras institucionais à democracia e ao sistema de separação de Poderes não pode mais subsistir. O Congresso hoje exerce controle ativo sobre as Medidas Provisórias, tendo claramente retomado o papel de controle que lhe é cabido na divisão de Poderes.

O Executivo possui sim, com as MPs, um enorme poder de agenda. Poder este que deve de fato caber ao presidente, que conquistou a maioria absoluta do eleitorado e tem, portanto, legitimidade para pautar a agenda política nacional.

Isso não significa que o instituto da Medida Provisória ainda não possua vícios relevantes. A quantidade de dias que a pauta do Senado, por exemplo, fica sobrestada em função de MPs[7] é um problema sério e que merece a atenção da sociedade.

Estes vícios podem ser facilmente corrigidos com uma análise cuidadosa sobre o processo de tramitação das MPs. Entretanto, o que se depreende ao se olhar com mais calma os dados sobre a edição de Medidas Provisórias após 2001 é que a emenda 32/01 cumpriu de maneira bastante satisfatória o papel de devolver ao Legislativo os instrumentos para o cumprimento de seu papel constitucional.


[1] Comparato, Fábio Konder – A “Questão Política “ nas Medidas Provisórias: um estudo de caso”, in Revista da Ordem dos Advogados do Brasil nº 72, 2001.,

[2] Antunes Rocha, Carmen Lúcia – Medidas Provisórias e Princípio da Separação de Poderes, in Direito Contemporâneo: Estudos em Homenagem a Oscar Dias Corrêa, Forense Universitária

[3] Texto original da Constituição Federal, revogado pela EC32/01 : “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.

Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes”

[4] Correa, Oscar Dias – As Medidas Provisórias e a Emenda Constitucional nº 32/01, in Belmonte, Cláudio e Melgaré, Plínio coord. – O Direito na Sociedade Contemporânea – Estudos em Homenagem ao Ministro Néri da Silveira, Forense, Rio de Janeiro, 2005.

[5] 2230 sem contar as reedições.

[6] Dados até 8 de outubro de 2007.

[7] A atual tramitação das MPs no Congresso, na qual se inicia a apreciação pela Câmara, mas com um prazo único de sobrestamento (45 dias), faz com que as MPs, muitas vezes, cheguem ao Senado sobrestando a pauta.

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