Culpa presumida

Abuso na prisão preventiva faz STF abrandar Súmula 691

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26 de outubro de 2007, 16h37

Torna-se cada vez mais freqüente o abrandamento da Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal. A jurisprudência diz que o STF não pode analisar pedido de liminar contra decisão monocrática de tribunal superior. Segundo o ministro Marco Aurélio, o abrandamento tem acontecido porque, dado o quadro atual da criminalidade no país, tem sido cada vez mais expedidos mandados de prisão preventiva. Há um abuso. O Supremo fica, então, com o papel de cortar esse abuso.

Nesta quarta-feira (24/10), o ministro Marco Aurélio deu liminar em Habeas Corpus para que Nagib Teixeira Suaid, acusado de ser empresário do jogo do bicho, seja colocado em liberdade. Suaid foi investigado durante a Operação Hurricane e responde a quatro processos, também por lavagem de dinheiro. Sua prisão foi decretada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

Pedido de Habeas Corpus já foi negado no Superior Tribunal de Justiça. No entanto, o Supremo já determinou a suspensão de dois decretos de prisão preventiva de Suaid.

Para o ministro Marco Aurélio, não há motivos para o réu ficar preso enquanto a sua culpa não foi provada. A prisão preventiva é sempre excepcional, disse o ministro. Por isso, há flagrante ilegalidade e a necessidade de abrandar a jurisprudência do Supremo.

“A adequação deste [Súmula 691] pressupõe ato discrepante da ordem jurídica a cercear, na via direta ou indireta, a liberdade de ir e vir, exigindo-se tão-somente que haja órgão, na pirâmide do Judiciário, capaz de julgá-lo. Pouco importa que o pronunciamento seja individual ou de colegiado, precário ou definitivo, sob pena, até mesmo, de decisão de relator sobrepor-se à de colegiado.”

Operação Hurricane

A primeira fase da Operação Hurricane foi deflagrada pela Polícia Federal no Rio de Janeiro em 13 de abril. O objetivo foi prender supostos envolvidos em esquemas de exploração de jogo ilegal (caça-níqueis). A investigação durou um ano e foi autorizada pelo ministro Cezar Peluso, do STF.

Foram presos os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 2ª Região José Eduardo Carreira Alvim e José Ricardo Regueira, o juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região Ernesto da Luz Pinto Dória e o procurador regional da República João Sérgio Leal Pereira. Assim que o processo foi desmembrado, os acusados com prerrogativa de foro conseguiram liberdade.

Também foram detidos Anísio Abraão David, ex-presidente da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis; Capitão Guimarães, presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro; Antônio Petrus Kalil, conhecido como Turcão, apontado pela Polícia como um dos mais influentes bicheiros do Rio; a corregedora da Agência Nacional do Petróleo (ANP), Suzi Pinheiro Dias de Matos, entre outros.

Em junho, a segunda fase da operação foi deflagrada para o cumprimento de 37 mandados de prisão, a maioria contra policiais civis e federais, que recebiam mesadas entre R$ 3 mil e R$ 30 mil, também para dar proteção ao jogo ilegal. Na ocasião, a polícia prendeu equivocadamente José Renato Barbosa de Medeiros, de 53 anos, filho do apresentador Abelardo Barbosa, o Chacrinha. Nanato, como é conhecido, foi confundido com um policial envolvido no esquema.

Em julho, a PF cumpriu a terceira etapa da operação. Os mandados de busca e apreensão foram expedidos pela 6ª Vara Federal Criminal do Rio. A PF investiga policiais civis, militares e federais que receberiam mesadas de contraventores que exploravam o jogo ilegal no Rio.

Veja a decisão

HABEAS CORPUS 92.682-7 RIO DE JANEIRO

RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

PACIENTE(S): NAGIB TEIXEIRA SUAID

IMPETRANTE(S): BRUNO RODRIGUES

COATOR(A/S)(ES) : RELATORA DO HC Nº 91.878 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO

HABEAS CORPUS – IMPETRAÇÕES SUCESSIVAS – VERBETE Nº 691 DA SÚMULA DO SUPREMO – PRISÃO PREVENTIVA – AUSÊNCIA DE BASE LEGAL – EXCEPCIONALIDADE VERIFICADA – LIMINAR DEFERIDA.

1. À folha 33 à 35, prolatei o seguinte despacho:

HABEAS CORPUS – OBJETO – ELUCIDAÇÃO.

1. Eis as informações prestadas pelo Gabinete:

A impetração refere-se à quarta ação penal instaurada contra o réu, em curso na Sexta Vara Criminal Federal da Circunscrição Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, tendo como objeto o quarto decreto de prisão preventiva expedido.

O Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra o paciente e a esposa, imputando-lhes o cometimento do delito definido no artigo 1º, incisos III e VII, da Lei nº 9.613/98. Recebida a peça acusatória e instaurada a Ação Penal nº 2007.51.01.807725-4, veio a ser decretada a prisão preventiva do paciente. Na impetração formalizada no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, a medida acauteladora foi indeferida. No Habeas Corpus nº 91.878, a ministra Laurita Vaz, no Superior Tribunal de Justiça, indeferiu liminarmente a petição inicial – pronunciamento ora atacado (folha 163 a 168 do apenso). Sua Excelência destacou não estar evidenciada a flagrante ilegalidade do ato por meio do qual se decretou a custódia do paciente, assentando a inexistência de excepcionalidade a afastar o óbice revelado pelo Verbete nº 691 da Súmula desta Corte.


Os impetrantes recordam que o Supremo proclamou, por duas vezes, a ilegalidade da prisão do paciente, tendo abrandado a regra do citado Verbete no julgamento dos Habeas Corpus nos 91.723 e 92.423. Apontam a ilegalidade do referido decreto, consideradas as acusações vindas a conta-gotas, fundado na necessidade da garantia da ordem pública, não havendo indicação concreta, precisa e objetiva dos pressupostos autorizadores previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal. Sustentando a inaplicabilidade do Verbete nº 691, asseveram que o pedido há de ser conhecido.

Alegam que o procedimento do Ministério Público Federal, relativo às investigações da “Operação Furacão”, configura “verdadeiro excesso acusatório”, visando as sucessivas denúncias oferecidas à desconstituição das decisões das instâncias superiores, para manter o paciente preso. Dizem da circunstância de o acusado responder a quatro ações penais e, em três delas, a imputação ser a prática de lavagem de dinheiro. Afirmam a ocorrência de “arquivamento implícito”, por não se mostrar admissível a multiplicidade de ações deflagradas em doses homeopáticas, valendo-se o Órgão da acusação dos mesmos fatos então apurados.

Aduzem constar da denúncia a narração de o paciente haver declarado o recebimento de valores de rendimentos isentos de lucros distribuídos pela empresa Sauid Flipper Diversão Eletrônica Ltda. maiores do que a receita bruta por ela declarada. O paciente teria adquirido um imóvel por R$ 1.800.000,00, pagos à vista, aquisição que não poderia ser suportada pelos rendimentos então declarados. Contrapondo-se a tal assertiva, realçam que a quantia despendida não foi à vista, mas em parcelas, o que estaria registrado na escritura de promessa de compra e venda. Ressaltam que o fato não conduziria à configuração de lavagem de dinheiro, porquanto, segundo sustentam, far-se-ia indispensável à caracterização do crime a ocorrência de delito antecedente, que não pode ser o de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à produção — condutas prévias jamais cogitadas —, nem a imputação de “organização criminosa”, como pretendeu o Ministério Público, porque, em relação a esse tipo, haveria lacuna legislativa. Argumentam que, mesmo se existir justa causa para a instauração da ação penal, deve-se reconhecer que o decreto de prisão preventiva expedido contra o paciente não atende às disposições constitucionais e legais, contrariando entendimento jurisprudencial e doutrinário. Chamam a atenção para o fato de a ordem de prisão reproduzir texto “copiado” de outras decisões, as quais foram afastadas por liminares deferidas pelo Supremo, por não conterem, de forma concreta, os fundamentos capazes de demonstrar a necessidade da custódia cautelar. Frisam não autorizar a expedição da ordem de prisão preventiva conjecturas e impressões pessoais, sendo desrespeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana — a gerar instabilidade e insegurança jurídica —, reiterá-las desmotivadamente. Formulam pedido de liminar, determinando-se a imediata soltura do paciente. No mérito, pleiteiam o deferimento definitivo da ordem, cassando-se o ato mediante o qual se decretou a custódia preventiva.

No processo apenso, constam cópias da inicial do habeas formalizado no Superior Tribunal de Justiça, do pronunciamento atacado mediante esta impetração, da decisão proferida no Tribunal Regional Federal da 2ª Região e da denúncia oferecida.

No ato que implicou o recebimento da denúncia e a decretação da prisão preventiva do paciente, juntado à folha 28 à 97, não há referência a ação penal, não sendo possível afirmar a existência de correlação entre esta e a impugnação apresentada pelos impetrantes.

2. Hão de vir ao processo elementos viabilizadores do exame do pedido. Assim, o impetrante, profissional da advocacia, deve comprovar a correlação entre o ato atacado neste habeas e o pleito formalizado, revelando, de modo esquematizado e com desejável poder de síntese, ante a avalanche de processos, as ações em curso na Sexta Vara Criminal Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, os crimes imputados, os decretos de prisão e o afastamento destes até aqui implementado.

3. Publiquem.

Já agora, o Gabinete informa:

Vossa Excelência, por meio da decisão de folhas 34 e 35, determinou ao profissional da advocacia que comprovasse a correlação entre o ato atacado neste habeas e o pleito formalizado, revelando as ações em curso na Sexta Vara Criminal Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, os crimes imputados e os decretos de prisão.

O impetrante esclarece que o paciente, denunciado como incurso no tipo do artigo 1º, incisos III e VII, da Lei nº 9.613/98, “encontra-se preso em face de decisão que decretou a sua prisão preventiva nos autos do processo nº 2007.51.01.807725-4, datada de 5 de setembro de 2007”. Registra terem sido os demais decretos revogados.


Informa, ainda, que, em virtude de o documento de folha 28 a 97 não mencionar o número do respectivo processo no qual determinada a prisão preventiva, solicitou a expedição da certidão de folha 40, bem assim cópia do mandado de prisão (folha 41), na qual o paciente, em custódia, foi cientificado do ato de constrição. Reitera o pedido de concessão de liminar.

2. Com a petição de folha 37 a 39, juntaram-se a certidão de folha 40 e cópia do mandado de prisão expedido contra o paciente, datado de 5 de setembro de 2007. Na certidão, está registrada a existência de decisão relativa à prisão preventiva, formalizada no Processo nº 2007.5101807725-4 pelo Juízo da Sexta Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, que se encontra à folha 155 à 224 do referido processo. Ante a alusão às folhas citadas, identifica-se, como ato de constrangimento atacado mediante este habeas, o pronunciamento de folha 28 a 97 do apenso.

Passo à análise do pedido de concessão de medida acauteladora, ressaltando, mais uma vez, a necessidade de compatibilizar-se o Verbete nº 691 da Súmula do Supremo com a Carta Federal, sob pena de se restringir a ação constitucional do habeas corpus. A adequação deste pressupõe ato discrepante da ordem jurídica a cercear, na via direta ou indireta, a liberdade de ir e vir, exigindo-se tão-somente que haja órgão, na pirâmide do Judiciário, capaz de julgá-lo. Pouco importa que o pronunciamento seja individual ou de colegiado, precário ou definitivo, sob pena, até mesmo, de decisão de relator sobrepor-se à de colegiado. Nota-se, atualmente, um rigor maior na apreciação dos pedidos de liminar, considerada a prisão preventiva, o que talvez advenha da quadra de delinqüência vivida. Sucedem-se os indeferimentos e aí chega-se, em derradeira instância, ao Supremo, competindo a este o exame da matéria.

A prisão preventiva mostra-se sempre excepcional. A regra é, em face do princípio da não-culpabilidade, responder o acusado à ação penal sem o cerceio da liberdade. Não pode esse instrumental resultar em precoce pena, ainda não fixada, enclausurando-se aquele que tem contra si apenas a persecução criminal, incumbindo ao Ministério Público a prova da imputação. Não serve a respaldar a preventiva a visão de que haveria organização criminosa, no caso, especializada na exploração de jogo do bicho e máquinas caça-níqueis, com ramificações em diversos estados e também em outros países.

Sob o ângulo do crime de quadrilha, deve-se aguardar o aparelhamento do processo-crime e a prolação de sentença condenatória. Vale notar que, vindo à balha o quadro, com ajuizamento de ação penal, há de se presumir a cessação das atividades pelos envolvidos.

Na cuidadosa e longa decisão — de 69 folhas — que implicou o recebimento da denúncia e a prisão preventiva, proferida pela dedicada Juíza Ana Paula Vieira de Carvalho, transcreveu-se pitoresca transferência de atividade, considerada a contravenção, vindo esta a ser rotulada como “correta, honesta e escrupulosa exploração do jogo de bicho” no Estado do Rio de Janeiro, formalizada por Jorge Thomé em benefício do filho e da mulher. Evocaram-se precedentes. Aludiu-se aos mais de quarenta volumes da investigação policial, passando-se ao exame da situação do paciente presente o disposto no artigo 312 do Código de Processo Penal — folhas 51 e seguintes do ato. Seria ele importante membro da organização criminosa, bicheiro e proprietário de casas de bingo, “responsável pela administração da suposta ‘caixinha’, gerida por Júlio Guimarães, que teria como finalidade o pagamento de propina mensal a dezenas de policiais civis, federais e militares”. Ora, está-se diante de contexto a ser comprovado no curso do processo criminal em que denunciado, revelando as peças coligidas no inquérito indícios de autoria e materialidade, em tese, de crimes. É um dado que, isoladamente, não leva à inversão da ordem natural das coisas, prendendo-se para, posteriormente, apurar-se a culpa. Então, após análise de elementos coligidos, concluiu-se (folha 96 do processo apenso):

“Há, portanto, fundados indícios de intensa participação de NAGIB TEIXEIRA SUAID na organização criminosa desbaratada, especializada, em tese, na exploração de jogos ilegais e corrupção de agentes públicos. Nesta linha, a presente denúncia por lavagem de dinheiro possui suporte probatório suficiente em relação ao crime antecedente.

Por todo o exposto, e tendo em mira os veementes indícios de intensa participação do denunciado em sofisticada organização criminosa, bem como o relevante papel a ele atribuído, decreto a sua prisão preventiva, para garantia da ordem pública, com fulcro no art. 312 do Código de Processo Penal”.

No tocante à ordem pública, à garantia cabível, deu-se ênfase à presunção do extravagante, ou seja, que, desbaratada — para utilizar o vocábulo contido na peça — a quadrilha, continuaria o paciente a prática criminosa. Conforme já consignado, a imaginar-se algo, há de se supor a ordem natural das coisas, e não o extravagante.

Sem deixar de registrar o cuidado, em termos de abordagem de elementos, demonstrado pela Juíza Ana Paula Vieira de Carvalho, autora do ato de constrição, entendo configurada excepcionalidade a ditar a atuação desta Corte, ultrapassando-se o óbice do Verbete nº 691 da Súmula. O paciente está preso, em razão do ato examinado, sem culpa formada e sem base no artigo 312 do Código de Processo Penal.

3. Defiro a liminar para determinar a expedição de alvará de soltura, cujo cumprimento deve ocorrer com as cautelas próprias, ou seja, caso o paciente não se encontre submetido à custódia do Estado por motivo diverso do retratado na decisão formalizada à folha 155 à 224 do Processo nº 2007.5101807725-4, da Sexta Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro.

4. Colham o parecer da Procuradoria Geral da República.

5. Publiquem.

Brasília, 24 de outubro de 2007.

Ministro MARCO AURÉLIO

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