Punição equivocada

Lei de Drogas falha ao diferenciar usuário de fornecedor

Autor

  • Antonio Baptista Gonçalves

    é advogado pós-doutor em Desafios en la postmodernidad para los Derechos Humanos y los Derechos Fundamentales pela Universidade de Santiago de Compostela pós-doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP pós-doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de La Matanza.

24 de outubro de 2007, 23h01

Grandes festas em locais geralmente afastados, com agrupamento de pessoas que variam entre 20 e 30 mil pessoas, para um período ininterrupto de musica eletrônica que, não raro, ultrapassa 24 horas. Esta é uma das definições possíveis para uma Rave.

Festas estas que são acompanhadas com um olhar próximo e atento das autoridades policiais, porque também existe uma concentração de substancias ilícitas presentes.

Afirmar que todas as raves são sinônimas de paraísos de drogas, seria uma completa leviandade, contudo, o fenômeno associativo das drogas não é adstrito às raves, mas é freqüente em eventos de musica eletrônica.

Na Inglaterra, num passado não distante, houve uma cruzada da policia inglesa contra o consumo de drogas em festas eletrônicas, o que denota uma preocupação mundial no combate ao uso de substancias entorpecentes.

Para a realidade nacional, existe uma verdadeira batalha contra as drogas, a prova cabal é a alteração da legislação brasileira que passou a abordar o tema sob uma nova ótica com a edição da Lei 11.343/06.

A argumentação que justifica a criação desta nova lei não pode ser consagrada como “material inédito”, afinal, a justificativa de um endurecimento normativo para perfilar as armas ante ao tráfico, não é tão diverso da mentalidade do legislador nacional e sua notada política de incremento normativo penal emergencial.

E, se em alguns dispositivos um maior rigor é inerente e de fácil percepção, o mesmo legislador que pretende o combate ao tráfico possibilitou a criação de um dispositivo, no mínimo, inusitado.

O artigo 28 da Lei 11.343/06 possibilita um tipo alternativo de controle no que tange as drogas. E sobre este aspecto é fundamental uma análise mais visceral.

“Artigo 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I — advertência sobre os efeitos das drogas;

II — prestação de serviços à comunidade;

III — medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.

O artigo prevê um apenamento singular ao usuário de substâncias ilícitas, agora, de acordo com a lei, generalizadas indistintamente com o termo drogas, e por quê?

Como o próprio artigo determina através de seus incisos, o usuário terá como punição uma singela advertência, uma pena de prestação de serviços à comunidade ou a freqüência compulsória a programas educativos.

No entanto, o legislador brasileiro incorporou um hábito sui generis que é perpetrado através da edição de novas leis, e qual seria este? A falta de procedimento indispensável para a elucidação dos próprios dispositivos.

Para a questão específica do artigo 28, qual seria a definição de uso pessoal? Pode parecer inocente tal indagação, mas, um indivíduo surpreendido com a posse de 300g de maconha pode ser considerado um traficante? Não é um evento que pode ser considerado como consumo pessoal com a compra para apreciação em longo prazo?

A dúvida interpretativa surge de acordo com o caput do próprio dispositivo: “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito…” Ora, segundo o artigo, nada impede que uma pessoa armazene a droga para consumo fracionado. Neste caso o elemento determinante será a quantidade?

E, vinculado à quantidade, uma pessoa receberá uma mera advertência, e esta seria aplicada de qual forma mesmo? Seria uma mera “bronca”, como a de um pai que surpreende um filho? Indagações que não alcançam uma resposta satisfatória.

O universo particular das festas eletrônicas e das raves são um verdadeiro teste para essas falhas apontadas no artigo 28.

Uma pessoa que vai para uma festa como esta e trás consigo um tijolo de 1 kg de maconha, ou 20 pastilhas de ecstasy e é surpreendido no caminho por uma operação especial da polícia deve ser enquadrado como usuário ou como traficante?

Neste caso a dúvida não se observa, pois tal pessoa deve ser considerada um traficante de acordo com a quantidade, não é mesmo? Todavia, o mesmo artigo 28 sinaliza com um argumento escusável: “Quem adquirir (…), para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Logo, num transporte público, com 20 pessoas que se destinam a uma rave, e contem o mesmo 1 kg de drogas para ser repartido entre todos; o argumento do consumo pessoal não pode ser utilizado?

Numa aplicação literal do artigo 28 haverá uma banalização da conduta e um claro enfraquecimento ao combate do tráfico. A única pena efetiva é considerada como de menor potencial ofensivo e, assim, passível das benesses do Juizado Especial Civil, ou seja, da aplicação de pena de multa e a suspensão do processo.

As autoridades têm descaracterizado o artigo 28 e, considerado a quantidade como elemento fundamental para a inserção de um combate efetivo, não com o artigo 28, mas sim com o artigo 33 da mesma lei:

“Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena — reclusão de 5 a 15 anos e pagamento de 500 a 1.500 dias-multa.”

Sendo assim, nas já referidas raves é possível a aplicação concomitante, no mesmo espaço físico, do artigo 28 e também do artigo 33, a diferenciação será o quantum que cada indivíduo porta.

Se festas como essas se transformaram na linha tênue entre a impunidade e a repressão este novo papel somente foi alcançado em decorrência da falha do legislador em conceber um procedimento adequado para o usuário de drogas.

Autores

  • Brave

    é advogado, doutorando em Filosofia do Direito (PUC), mestre em Filosofia do Direito (PUC), especialista em Criminologia pelo Istituto Superiore Internazionale di Scienze Criminali, especialista em Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra, pós-graduado em Direito Penal — Teoria dos Delitos (Universidade de Salamanca), pós-graduado em Direito Penal Econômico na Fundação Getúlio Vargas.

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