Justiça de todos

Operadores devem refletir sobre assistência judiciária gratuita

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21 de outubro de 2007, 23h00

Com fundamento na CRFB[1], bem assim nas Leis 1.060/50 (alterada pela Lei 7.510/86) e 7.715/83, o entendimento prevalecente no âmbito judiciário é o de que a simples declaração do interessado, passada sob as penas do falso, basta ao deferimento da mercê da assistência judiciária gratuita, incumbindo à parte contrária, se assim entender cabível, objetar pretensão que tal.

Não é o caso, bem se compreenda, de rechaçar a mecânica da simples declaração, pois a mesma é engenho do legislador positivo e tem, sim, vigência desde a alteração do artigo 4º da Lei 1.060/50 pela Lei 7.510/86. Todavia, propõe-se maior atenção para o texto constitucional expresso: “Art. 5º. LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

Quer-se evidenciar, dessarte, e a tanto se prenderá o esforço, que a impugnação legalmente autorizada torna-se, as mais das vezes, um mister inatingível, a depender da própria confissão do agraciado, da exibição de documentos resguardados pela privacidade, ou mesmo em poder de bancos de dados, tudo a tornar custosa a tarefa do requerido, travando o desate efetivo da quizília em função de questões processuais. Muito mais compreensível, nessa toada de coisas, que o próprio necessitado indique, e não simplesmente afirme, qual exatamente o espectro da sua necessidade (evidentemente sem qualquer sujeição ao indigno), e que o juízo, calcado nos poderes diretivos que lhe confere a legislação processual vigente, salvaguarde a gratuidade em favor dos efetivamente necessitados, o que de idêntica forma, e numa dimensão mais abrangente, cumpre a principiologia da Carta vigente.

Para fins do presente trabalho, portanto, considera-se pressuposto a faculdade de o juiz da causa estabelecer parâmetros razoáveis, no caso concreto, para a concessão da gratuidade (tese com bom trânsito pretoriano), para, então, detectar-se quais deveriam ser as fontes de onde extrair as balizas para o estabelecimento de critérios lógicos.

Não é necessário mencionar que, do repositório de decisões disponível, há entendimentos os mais diversos, parte deles de feição restritiva (v.g., impossibilidade de declaração firmada por advogado; impossibilidade do benefício a pessoas jurídicas; certas categorias, melhor remuneradas, não fariam jus ao benefício; imposição de “tetos remuneratórios” para a concessão, etc.), parte deles mais liberais. Deste universo, merecerá foco a premissa de que as balizas da necessidade estão configuradas no ordenamento, dele são extraíveis, e podem substituir com vantagem muitos dos parâmetros empregados atualmente.

Antes, contudo, é imperioso constatar que, no amiúde, percebe-se certo desvirtuamento do instituto, pois a prerrogativa excepcional de litigar sob o pálio da gratuidade tornou-se, a bem da verdade, a regra, incentivando, de uma forma encorajadora, o ingresso de lides de natureza temerária, inclusive por pessoas que não satisfazem a condição legal de necessitado[2], e que de igual forma não constituem público alvo do atendimento pela novel Defensoria Pública, incumbida constitucionalmente do cumprimento do prefalado artigo 5º da Carta Maior.


Pois bem, à evidência de que a legislação sempre se aferrou à dimensão protetiva dos necessitados, conceituando-os como aqueles que não dispõem de condições financeiras para vencer, sem sacrifício do sustento próprio/do núcleo familiar, as custas do processo e os honorários advocatícios, torna-se bastante útil a identificação, no contexto do ordenamento vigente, do trato que a legislação protetiva confere aos assistidos, especialmente a fim de se chegar a uma conclusão sobre parâmetros econômicos que permitam sua correta identificação.

Em um primeiro momento, e de conformidade com a lógica ordenamental, perscruta-se o texto da CRFB e se verifica que o salário mínimo, tal como definido no artigo 7º, IV, consubstancia o identificativo primeiro, haja vista que, abaixo de seu patamar, não será possível conjuminar de trabalho remunerado.[3] A mais disso, e ainda em sede constitucional, garantiu-se ao trabalhador vinculado ao INSS o percebimento de um valor mínimo de benefício (artigo 201, § 2º), bem como, ao ser vivente efetivamente necessitado, a percepção de um benefício que equivalha ao salário do artigo 7º, IV (artigo 203, V). Assim é que, como conseqüência, e em trabalho legislativo franqueado à seara ordinária (cf. artigos. 201, caput, e 203, V), o legislador pátrio consagrou não só um teto máximo para os benefícios da previdência pública (artigo 33 da Lei 8.213/91)[4], como também definiu o elenco de pessoas alcançadas pela mercê assistencial (artigo 20, § 3º, da Lei 8.742/93, e artigo 34 da Lei 10.741/03)[5], tudo a imbricar, para efeitos do presente estudo, em balizas inaugurais da conceituação de necessitados.

Mas o legislador ainda ofereceu outros tantos parâmetros à consideração dos intérpretes. O mais conhecido deles chega regido pela Lei 10.836/04 (Bolsa Família), a qual, sendo responsável pela unificação de todos os programas de transferência de renda do Governo Federal, agracia famílias necessitadas que tenham renda per capita situada entre R$ 50, e R$ 100. A propósito, e no que diz também com a assistência social, a pletora de programas governamentais, em benefício das pessoas menos aquinhoadas, e no cumprimento das diretivas programáticas da Constituição, oferece um manancial de indicações sobre o conceito de necessitado. Cito: (a) reserva de vagas graciosas, para idosos com renda não superior a 2 salários-mínimos, em carros do sistema de transporte coletivo interestadual (artigo 40 do Estatuto do Idoso); (b) possibilidade de adesão ao programa de moradia através de arrendamento residencial (Lei 10.188/01, artigo 1º); (c) subsídio no custo do quilowatt/hora da eletricidade para o consumidor residencial de baixo espectro (Lei 10.438/02).

Atentando, já por outro ângulo, à constatação de que muitas das pessoas que buscam demandar em juízo, sendo parte integrante da economia formal, auferem renda, um outro critério possível residiria nos lindes isentivos do imposto de renda, atualmente no patamar de R$ 1.313,69, conforme artigo 1º, I, da Lei 11.482/07.

Bem se vendo, já daí, que não rareiam critérios objetivos, e factíveis, para a identificação de uma parte verdadeiramente incapaz de desembolso de custas para vencer um litígio judicial. Neste sentido, e como corolário do raciocínio cartesiano, esquematizo:


Referencial

Fundamento normativo

Público contemplado

Beneficiários do Bolsa-Família

Lei 10.836/04.

Famílias que tenham renda per capita situada entre R$ 50 e R$ 100.

Beneficiários da LOAS

CF, art. 203, V; Lei 8.742, art. 20.

Famílias que tenham renda per capita de até R$ 95.

Trabalhadores assalariados

CF, art. 7º, IV; Lei 11.498/07, art. 1º.

Pessoa que receba R$ 380 mensais.

Contribuintes isentos do IRPF

Lei 11.498/07, art. 1º, I.

Pessoa que receba até R$ 1.313,69 mensais.

Beneficiários do RGPS

Lei 8.213/91, art. 33.

Pessoa que receba até R$ 2.894,28 mensais.


Sob o mesmo norte de conferir objetividade à certificação da condição de beneficiário da gratuidade, existe uma gama de documentos que, uma vez exigidos com a peça de ingresso, traduziriam direito à mercê. Exemplifico: (a) faturas de água, luz, e telefone; (b) cartão do IPTU; (c) CTPS/últimos salários; (d) cartão de benefícios da assistência social; (e) declaração de isento do IRPF; (f) histórico de créditos de beneficiário do RGPS.

A este passo do raciocínio, poderia objetar-se que só a lei, na abstração que lhe é própria, desserve para aquilatar a verdadeira (im)possibilidade de uma pessoa vencer custas processuais. Há um fundo de verdade nisso, se bem que tal suposição olvida o trabalho do legislador, e sua percepção, como representante popular, do que sejam as necessidades sociais. Contudo, a fim de não subtrair o enfrentamento também desse legítimo óbice, debruço-me sobre alguns dos indicativos atuais da renda nacional pertinentes ao caso.

Em consulta aos estudos do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, atento para o fato de que aquela instituição calcula um salário mínimo necessário, em oposição ao salário mínimo legal, assim o definindo:

Salário mínimo necessário: Salário mínimo de acordo com o preceito constitucional "salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajustado periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim" (Constituição da República Federativa do Brasil, capítulo II, Dos Direitos Sociais, artigo 7º, inciso IV). Foi considerado em cada mês o maior valor da ração essencial das localidades pesquisadas. A família considerada é de dois adultos e duas crianças, sendo que estas consomem o equivalente a um adulto. Ponderando-se o gasto familiar, chegamos ao salário mínimo necessário.

De conformidade com a prefalada instituição, no mês de agosto de 2007, quando se leva a cabo o presente trabalho, R$ 1.733,88 consistiriam no salário mínimo necessário.

Outrossim, o IBGE aponta em seu sítio, para julho de 2007, na região metropolitana de São Paulo, a qual define como a mais próspera do país, um rendimento médio de R$ 1.218,70 para as pessoas ocupadas, sendo algo maior para os empregados do serviço público (R$ 1.568,90) (cf. Pesquisa Mensal de Emprego — PME).

Tais valores, assim contextualizados, apontam numa direção segura e convergente, a saber, que a renda que impossibilita vencer-se as despesas processuais está muito distante de algumas construções atuais, especialmente quando se leva em conta, ao menos no âmbito federal, a modicidade das custas praticadas, definidas em função do ganho econômico que se almeja na causa (cf. Lei 9.289/96). A mais disso, exalta notada importância atentar-se para o fato de que, a cada pessoa indevidamente agraciada pelo benefício, toda a sociedade, inclusive a expressiva parcela que nunca questionou em juízo, é convocada a suportar o custo da mercê.


Portanto, e já à guisa de conclusão, espera-se que, com os parâmetros apresentados acima, a comunidade jurídica reflita sobre a presença, no ordenamento vigente, de efetivas balizas para o reconhecimento do direito de litigar sob o pálio da gratuidade, não olvidando que a Constituição, ao mesmo tempo em que erigiu a assistência judiciária graciosa como direito/garantia coletiva, reclamou textualmente a comprovação da insuficiência de recursos.


[1] Art. 5º. XXXIV — são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; XXXV — a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; LXXIV — o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

[2] Art. 2º. Gozarão dos benefícios desta Lei os nacionais ou estrangeiros residentes no país, que necessitarem recorrer à Justiça penal, civil, militar ou do trabalho. Parágrafo único. — Considera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.

[3] Atualmente em R$ 380. CF. Artigo 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: IV — salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

[4] Desde 1º.04.2007 — R$ 2.894,28

[5] Artigo 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.(…) § 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo. Artigo 34. Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social — Loas.

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