Bala sem fogo

TJ-SP aplica princípio da insignificância para porte de munição

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19 de outubro de 2007, 23h00

Movimentar a máquina judicial para julgar e condenar alguém porque estava portando cinco balas de revólver, sem a arma, não faz sentido. Essa foi a decisão da 12ª Câmara do TJ paulista, ao considerar insignificante o fato de um réu portar apenas munição.

O princípio da insignificância não tem uma definição específica. Constantemente, o Supremo Tribunal Federal tem trancado ações contra acusados de furtar botijão de gás, xampu e desodorante, por exemplo. Sobre o porte de munição, o STF ainda vai definir se manter apenas munição se equipara a crime de porte ilegal de arma de fogo.

Em São Paulo, a 12ª Câmara Criminal do TJ paulista inocentou o acusado R.C.B. do crime. “Já é chegada a hora de dar vida à exata proporcionalidade entre a pena criminal e a significância do bem jurídico”, disse o relator, desembargador Sydnei de Oliveira Júnior. Para ele, a posse de cinco balas “não deve sequer ser considerado criminoso, dada a sua absoluta insignificância penal”.

Para o desembargador, quando o crime não traz grandes conseqüências para a ordem social, não há por que se falar em imposição de pena. “Seria risível condenar-se alguém por deter sob sua guarda poucas munições, todas de calibre mediano.” Ele foi acompanhado por unanimidade por todos os desembargadores da 12ª Câmara Criminal. No entanto, mantiveram ao réu a pena por falsificação de documentos.

Veja a decisão

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal, nº 01092763.3/2-0000-000, da Comarca de Presidente Venceslau, em que é(são) APELANTE(s) R.C.B., sendo APELADO(s) MINISTERIO PUBLICO.

ACORDAM, em 12ª Câmara do 6º Grupo da Seção Criminal, proferir a seguinte decisão: “POR UNANIMIDADE REJEITARAM A PRELIMNAR E, NO TOCANTE À FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO, DERAM PARCIAL PROVIMENTO PARA ALTERAR O REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA PARA O ABERTO, SUBSTITUÍDA A REPRIMENDA CORPORAL PELA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS COMUNITÁRIOS, PELO MESMO PRAZO, BEM COMO AO PAGAMENTO DE OUTRA MULTA, NO VALOR DE 10 (DEZ) DIAS, FIXADOS AO MÍNIMO LEGAL; POR MAIORIA DE VOTOS, ABSOLVERAM O APELANTE DO DELITO INSCRITO NO ARTIGO 14, “CAPUT”, DA LEI Nº 10.826/2003. COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 386, INCISO III, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, VENCIDO NESTA PARTE DO DES. EDUARDO PEREIRA, QUE NEGAVA PROVIMENTO.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento foi presidido pelo(a) Desembargador(a) VICO MAÑAS e teve a participação do Desembargador EDUARDO PEREIRA.

São Paulo, 03 de outubro de 2007

Sydnei de Oliveira Jr.

Relator

Voto nº 5305

Apelação nº: 1.092.763-3/2

Comarca: Presidente Venceslau

Apelante: R.C.B.

Apelado: Ministério Público

1- Os presentes autos versam sobre recursos de apelação (fls. 162-188), interposto em face de sentença (fls. 133-142) que, em sede de ação penal pública incondicionada, julgou-a procedente, condenando-se o então réu à pena de 4 (quatro) anos de reclusão, em regime fechado, acompanhada do pagamento de multa, equivalente a 20 (vinte) dias, à razão menor da lei, por transporte de munição de arma de fogo e falsificação de documento público (cf. artigo 14, caput, da Lei nº 10.826/2003 e artigo 297, caput, do Código Penal).

Não satisfeito com esta diretriz jurisdicional, o acusado apela. Em preliminar, pretende a nulificação do feito, aduzindo ausência de regular defesa, por desídia do patrono. Quanto ao mérito, assevera que o delito foi cometido em estado de necessidade, postulando a absolvição, ou, subsidiariamente, o reconhecimento de que as circunstâncias judiciais lhe são favoráveis, com a redução da pena-base ao mínimo legal, a mitigação do regime carcerário e a substituição da pena corporal. De sua vez, o órgão da acusação insiste, em contra-razões (fls. 192-198), pela mantença do julgado, como proferido. Chamada à fala, a Procuradoria de Justiça opina pelo provimento parcial da insatisfação recursal (fls. 210-212).

2- Anódina, por assim dizer, a preliminar soerguida, porque não se verifica o aludido cerceamento de defesa. A isto se chega porque, concretamente, não se pode divisar a atuação do anterior defensor do acusado como inadequada. De fato, houve a sua intervenção antes do interrogatório judicial, sendo de se ressaltar que sua confissão não pode ser tida como ação incompatível com a defesa do acusado. O mesmo se diga do fato de não se ter arrolado testemunhas de defesa. Isso não basta para caracterizar eiva insanável, por se tratar de verdadeira estratégia de atuação do patrono.

Convenha-se que os causídicos, como especialistas jurídicos, têm autonomia para trilhar as teses que entenderem vantajosas aos interesses das pessoas que patrocinam, sendo que, neste caso, além da presença em todas as audiências, dirigiu reperguntas a uma das testemunhas de acusação, bem como apresentou coerentes razões finais, pleiteando a absolvição do acusado.


Note-se, ademais, que a alegação de que a oitiva de testemunhas poderia sustentar a tese de que o acusado agiu sob estado de necessidade também não convence, pelo simples fato de que se trata de afirmação incompatível com o conjunto probatório restante, como se analisará a seguir. Portanto e em suma, as circunstâncias apontadas como geradoras de nulidade não permitem, por si só e de modo automático, a conclusão de que delas derivou qualquer cerceamento de defesa. Ainda que se considerasse a ocorrência de deficiência de defesa, o que se admite por hipótese, seria preciso, nos termos da Súmula nº 523 do Supremo Tribunal Federal e refletindo tratar-se de nulidade relativa, a prova do detrimento por ela causado, comprovação que não foi feita, em virtude do que, também em homenagem a um dos princípios regentes no tema, qual seja, pas de nullité sans grief, inexiste nulidade a ser declarada.

Em relação ao mérito, a principiar pelo delito de transporte de munição, crê-se que outra devia ser a solução ditada. Embora certa sua apreensão, numa das bolsas pertencentes ao acusado, de 5 (cinco) cápsulas de munição (auto às fls. 13-14), tem-se que o fato não deve sequer ser considerado criminoso, dada a sua absoluta insignificância penal.

Nesse particular, viria a talhe trazer à tona importante lição passada por Carlos Vico Mañas, por obra do acaso Revisor neste feito, que, definitivamente, parece lançar uma pá de cal sobre a questão que se discute, in litteris: […] “não há mais justificativa para que o direito positivo, como objeto de estudo do direito penal, seja apreciado de forma abstrata e isolada. É preciso reaproxima-lo da realidade, fazendo com que o sistema não desconsidere as conclusões de outras áreas do conhecimento humano, dentre elas a irrefutável proposição político-criminal da necessidade de descentralização de condutas que não atinjam de maneira significativa a vida em sociedade, a fim de que a sanção penal, como última instância de controle social, seja reservada para os casos em que não haja outra solução possível, reduzindo-se, assim, seus efeitos deletérios […]. Para alcançar tal objetivo, sem que se abra mão da segurança jurídica que o sistema deve proporcionar, deve-se outorgar específico significado político-criminal a cada elemento do crime. À tipicidade, por conseguinte, não pode ser reservado o mero papel de juízo formal de subsunção. Como expressão do princípio constitucional da legalidade, deve ter, igualmente, conteúdo material e valorativo. O princípio da insignificância, assim, atua como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal e, portanto, de descriminalização judicial, tornando concreta a propalada natureza subsidiária e fragmentária do direito penal. Não é o direito penal o caminho para a solução de todos os males da sociedade. Não é mais possível aceitar a sua desenfreada utilização demagógica por nossos governantes. Ao contrário, é preciso demonstrar que, em virtude do alto custo social que a pena apresenta e dos efeitos maléficos que acarreta, devemos usa-la com extrema parcimônia, buscando soluções alternativas que se revelem mais eficazes na tarefa de manutenção da harmônica vida em sociedade”. (In O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994, p. X-XI).

Vê-se, destarte, que, hodiernamente, entende-se deva haver uma diminuição do campo próprio de incidência do Direito Penal. A cada momento, o Juiz, como o último operador do direito a se manifestar em certa causa criminal, há de fazer uma reflexão exaustiva acerca da necessidade da imposição de determinada sanção ou mesmo de sua mitigação. Já é chegada à hora de dar vida à exata proporcionalidade entre a pena criminal e a significância do bem jurídico vilipendiado. E, nos casos em que a afetação deste for de grandeza diminuta, sem conseqüências maiores para a ordem social estabelecida, deve-se entender ausente a razão para a imposição de reprimenda penal, diante da pequenez da significação social do fato cometido.

Essa intelecção não destoa do direito posto. Pelo contrário, faz vivificar os princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade. Logo, não é um juízo contra legem, como pode parecer, lamentavelmente, para não poços menos avisados, mas segundo estrito indicativo da Lei Maior do País (cf. artigo 1º, caput, e inciso III, artigo 3º, incisos III e IV, e, ainda, artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal).

Em outras palavras, não se deve nunca esquecer que o Direito Penal, modernamente, está ficando na idéia do subsidiário. Vale dizer: sua abrangência dispensa o atingir condutas desprezívesi, sem manifesto poder de ofensa e de lesão real a algum determinado bem jurídico. Seria risível, convenha-se, condenar-se alguém por deter sob sua guarda, poucas munições, todas de calibre mediano, qual seja, 38, que estavam envoltas em fita adesiva e acomodadas dentro de bolsa guardada junto ao bagageiro de um ônibus, como fez o acusado, segundo o relato dos milicianos (fls. 4-6 e 107-108).


Quanto à falsificação, bem andou a sentença combatida, visto que o conjunto probatório sempre foi uníssono neste sentido. De fato, os policiais militares ouvidos aduziram que, efetuando vistoria num ônibus interestadual, notaram a ansiedade do acusado, decidindo aborda-lo, momento em que este se identificou como sendo terceira pessoa. Em revista à sua bagagem, encontraram, além da munição mencionada, quatro cédulas de identidade, referindo-se cada uma a um indivíduo diferente, muito embora três delas estivessem com a foto do acusado, bem como documentos, extratos bancários, faturas, cartões magnéticos, uma procuração e contratos de telefonia e de cartão de crédito em nome destas quatro pessoas, bem como uma Carteira de Habilitação de titularidade de outro indivíduo, que a havia perdido (fls. 4-6 e 107-108).

Submetidas as cédulas de identidade a exame documentoscópico, duas delas tiveram sua falsidade atestada, remanescendo as demais, que, apesar de materialmente verdadeiras, referem-se a diferentes nomes mantendo a mesma foto do acusado. A razão dessa aparente incongruência foi apurada: adotado aos 17 (dezessete) anos, o acusado teve seu nome e filiação alterados por sentença, mas, certamente, manteve consigo a anterior identificação. Em relação àquelas cuja falsidade foi verificada, o acusado assumiu a autoria, de modo coerente (fls. 93-94). Afinal de contas, não é minimamente plausível cogitar que terceira pessoa, à revelia do acusado, teria inserido a foto do acusado em uma carteira de identidade falsa. Esse conjunto de elementos atesta, portanto, tanto a materialidade do delito quanto permite imputar a autoria ao acusado.

Finalmente, a alegação de que teria agido sob estado de necessidade não convence nem é crível. Embora não se negue que o acusado possa ter passado por dificuldades para manter o próprio sustento quando habitava em Campo Grande, como afirma, é certo que este período já se teria esgotado quando da detenção do acusado, posto que, naquela específica ocasião, já demonstrava suficiente capacidade econômica para aparelhos celulares, um dos quais adquirido (recibo à fl. 19) por R$ 279,00 (duzentos e setenta e nove reais), contas em bancos (com falsa diversidade de titulares, é de se acrescentar) e, mesmo, para viajar a um custo de R$ 80,40 (oitenta reais e quarenta centavos) apenas com o transporte (cf. bilhete à fl. 15).

Ora, se a condição econômica do acusado tivesse sido periclitante num determinado momento mas já normalizada quando dos fatos, não haveria razão para manter consigo os documentos fraudulentos, nem para, depois disso, efetuar utilização comercial tão intensa de tais papéis. Mesmo porque, em verdade, não necessitava o acusado destes documentos falsificados, pois mesmo durante os momentos mais difíceis já tinha ele duas cédulas de identidade com sua foto mas contendo informações diferentes quanto ao nome do acusado e seus genitores. Destarte, mesmo admitindo que o acusado tenha passado por um período de necessidades, não se pode excluir o crime de falsum, porque havia à disposição do acusado outros meios para prover sua subsistência.

Por conta disso, o édito condenatório foi de rigor. A dosimetria penal foi, também, adequada. Fixar a pena-base pouco acima do mínimo legal, tendo por base as conseqüências do delito (cf. artigo 59, caput, do Código Penal), já que as falsificações ensejaram uma cadeia de fraudes, produzindo outras tantas relações inquinadas com elementos de falsidade, não foi medida desproporcional. Na segunda fase, a pena foi novamente reduzida ao mínimo legal, tendo em conta a aplicação, ao caso, da atenuante genérica atinente à confissão espontânea (cf. artigo 65, inciso III, alínea “d”, do Código Penal), tornada definitiva neste patamar na falta de outras circunstâncias que ditem seu aumento.

Contudo, mesmo reconhecendo que as circunstâncias judiciais do acusado não lhe são completamente favoráveis, o regime de cumprimento da reprimenda corporal não deve se desviar do parâmetro inscrito no artigo 33, § 2º, alínea “c” do Código Penal, de modo que sua fixação no aberto é de rigor. Da mesma forma, não se crê haver suficiente óbice à substituição da reprimenda corporal por restritiva de direitos, consistentes, in casu, no pagamento de outra multa, no valor de 10 (dez) dias, fixada a diária no mínimo legal, bem como na prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, pelo mesmo período da pena principal

3- Com essas considerações, dá-se parcial provimento à apelação, para absolver o apelante do delito inscrito no artigo 14, caput, da Lei nº 10.826/2003, com fundamento no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal e, em relação à falsificação de documento público (cf. artigo 297, caput, do Código Penal), manter a pena imposta, alterando o regime de cumprimento para o aberto e substituindo a reprimenda corporal pela prestação de serviços comunitários, pelo mesmo prazo, bem como ao pagamento de outra multa, no valor de 10 (dez) dias, sempre fixados ao mínimo legal.

Sydnei de Oliviera Jr.

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