Justiça que legisla

No silêncio do Congresso, país segue na judicialização da política

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20 de outubro de 2007, 10h41

Ao mesmo tempo que assentaram em pedra e cal o princípio de que os mandatos eletivos pertencem aos partidos pelos quais os mandatários se elegeram e aos quais, portanto, devem ser fiéis, três decisões judiciais – duas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 27 de março e na última terça-feira, e uma do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 4 passado – enfim sacudiram os políticos de sua inapetência para mexer nas regras do jogo sobre as quais não se entendem.

Graças a isso, como se sabe, perpetuam-se os gritantes vícios de um sistema que só beneficiam, et pour cause, os agentes do imobilismo. Menos de 24 horas depois da segunda manifestação do TSE, estendendo aos eleitos pelo voto majoritário (presidente, governadores, senadores e prefeitos) as mesmas restrições à circulação pelas legendas, impostas em março aos eleitos pelo voto proporcional (deputados e vereadores), o Senado aprovou num piscar de olhos um draconiano projeto de emenda constitucional.

De autoria do democrata Marco Maciel, de Pernambuco, a proposta pune sumariamente com a perda do mandato o político que trocar de sigla, salvo nos casos óbvios de sua extinção, incorporação ou fusão. A Justiça Eleitoral, respaldada pelo Supremo Tribunal Federal, dá aos migrantes o direito de conservar as suas cadeiras se conseguirem provar que mudaram de agremiação porque eram discriminados naquela em que estavam ou se ela mudou de linha.

Pelo menos um dos três senadores que deixaram há pouco o rebatizado PFL já alega que o novo nome, DEM, é justa causa para a sua decisão. (Estranhamente, nem o TSE nem o projeto de Maciel admitem, como razão legítima para o desligamento, a criação de um novo partido, como previa a proposta de reforma política que engatinhou anos atrás no Senado.) Tendem a zero as chances de o projeto de Maciel passar incólume pela Câmara – se e quando for ali apreciado. “Autoritário”, e por isso “natimorto”, é o que dele dizem os deputados, pelo fato de não dar direito de defesa ao infiel.

Qualquer que seja o destino da pressurosa iniciativa do Senado, ela teve outro efeito além do de contribuir, à sua maneira, para o inglório funeral do troca-troca na política brasileira – uma aberração mesmo nas democracias amadurecidas em que o poder é disputado por mais de dois partidos. Serviu também para reforçar o debate público sobre um dos mais sérios problemas do funcionamento do regime democrático no País. Trata-se da desordem institucional resultante da chamada judicialização da política, que por sua vez carrega necessariamente o risco da politização da Justiça.

Em especial no caso da fidelidade partidária, a responsabilidade primeira e intransferível por essa anomalia, diga-se desde logo, é do Congresso Nacional. Não tivessem os parlamentares abdicado do dever de, respeitadas as premissas constitucionais cabíveis, impor limites ao intenso e alegre passeio dos políticos – tão móbiles quanto a donna do Rigoletto – pelas legendas, sempre conveniente para o governo de turno, em hipótese alguma poderia a Corte Eleitoral tomar a si o exame e a decisão sobre a paternidade dos mandatos eletivos.

Sangrada pelo Planalto e sem meios legais de coibir o adesismo, só restou à oposição provocar – como dizem os profissionais do direito – o TSE e o STF, na expectativa de reaver as cadeiras de que o lulismo a privou. Submetida a tal injunção, poderia a Justiça negar-se a responder ao que lhe perguntaram? Nesse caso, também ela se revelaria omissa. Reconhece o cientista político Carlos Melo, do Ibmec-SP – no Estado de ontem -, que a manifestação dos tribunais superiores “não integra a discussão política pura”. Mas, observa com propriedade, “é legal, não tem traços de autoritarismo, nem significa uma violência ao sistema político e está prevista na Constituição”.

De mais a mais, não ocorrerá a ninguém sugerir que os membros dessas Cortes votaram como votaram na matéria de caso pensado para favorecer ou prejudicar tais ou quais setores políticos. A bem da verdade, o mesmo talvez não se possa dizer, retrospectivamente, de certos votos no Supremo em recursos protelatórios impetrados por parlamentares suspeitos de envolvimento com o mensalão.

De resto, as decisões da Justiça sempre poderão ser suplantadas por alterações no texto constitucional. Mas isso é com o Congresso.

*Editorial do jornal O Estado de S. Paulo deste sábado (20/10).

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