Bate-boca judicial

Procuradores dizem que juiz agiu contra eles por vingança

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19 de outubro de 2007, 0h00

Os procuradores do estado de São Paulo, entre os quais a procuradora que foi comparada a um “rábula velhaco”, reagiram aos ataques do juiz Ângelo Malanga, da 4ª Vara Especial da Infância e Juventude de São Paulo. Eles tentam trancar inquérito policial contra eles, aberto a pedido do juiz.

De acordo com os procuradores, o juiz os proibia de conversar com os adolescentes que eles representavam antes das audiências. Também não permitia que os defensores falassem durante as audiências e nem registrava na ata as suas manifestações orais.

A briga dos procuradores com o juiz começou há cerca de três anos e culminou com o pedido de inquérito policial contra os procuradores em 10 de janeiro deste ano e com representação da Procuradoria-Geral do estado contra o juiz. A representação foi arquivada pelo TJ paulista. O inquérito ainda corre.

No inquérito, o juiz pede a investigação pelo crime de prevaricação contra nove procuradores do Estado que atuavam na Assistência Judiciária e um defensor público. O juiz acusa os defensores de abandonar a defesa dos adolescentes na 4ª Vara.

No pedido de Habeas Corpus assinado pelos advogados José Roberto Leal de Carvalho e Maria Helena Pacheco Aguirre, os procuradores contam a sua versão da briga. Eles afirmam que o juiz passou a persegui-los e a se irritar com eles única e exclusivamente porque estes queriam fazer cumprir as regras processuais.

O juiz também se irritava sempre que os procuradores buscavam resguardo no Superior Tribunal de Justiça. Em 22 de novembro de 2006, a situação teria chegado ao limite quando o juiz, segundo versão dos procuradores, pegou uma das procuradoras pelo braço e a afastou dos adolescentes. A partir daí, os procuradores relataram os acontecimentos à Subprocuradoria-Geral de Assistência Judiciária e esta determinou que eles não atuassem mais na 4ª Vara, e sim que os adolescentes fossem defendidos pelos advogados que fizessem parte do convênio da OAB com o Estado. Portanto, eles teriam parado de atuar na vara por determinação superior.

Um mês depois, então, o juiz teria pedido a instauração do inquérito. Segundo os procuradores, movido por dois motivos: vingança e na tentativa de se explicar na Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde estava sendo representado.

Agora, no pedido de Habeas Corpus, os procuradores tentam trancar a ação penal contra eles.

Há cerca de duas semanas, o Órgão Especial do TJ paulista rejeitou a representação da Procuradoria-Geral do Estado contra o juiz. O corregedor-geral de Justiça paulista, Gilberto Passos de Freitas, recomendou a abertura de processo disciplinar contra o juiz, mas ficou vencido. A maioria dos desembargadores acompanhou o voto do vice-presidente do tribunal, Canguçu de Almeida, para quem não cabe processar o juiz “pelo uso de palavras, quando muito, descorteses”.

Canguçu relatou que, depois de concordarem com o encerramento da instrução e de afirmar não terem mais provas a produzir, os defensores recorriam da sentença com a alegação de “nulidade decorrente de cerceamento do direito de defesa e do devido processo legal. Acrescentavam, até, estar ocorrendo abuso de poder”. Para o vice-presidente do TJ paulista, diante disso, é “compreensível, então, até natural, a irritação do juiz em face de tal procedimento, vez que a própria defesa, que com tudo concordara, venha agora atribuir ao magistrado a prática de ilegalidades de existência evidentemente questionável”.

Veja o pedido de Habeas Corpus dos procuradores

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO COLENDO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO.

Os advogados JOSÉ ROBERTO LEAL DE CARVALHO e MARIA HELENA PACHECO DE AGUIRRE, brasileiros, judicialmente separado o primeiro e divorciada a segunda, inscritos na Secção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, respectivamente, sob os números 26.291 e 45.375, com escritório na av. São Luiz, n1 50, conjunto 121-A e 122-C, na cidade de São Paulo, com fundamento no art. 51, inciso LXVIII, da Constituição da República, e também nos artigos 647 e seguintes, do Código de Processo Penal, vêm pela presente impetrar ordem de

HABEAS CORPUS

com pedido de medida liminar

em favor dos pacientes (1)Dra. ANNA LUÍZA MORTARI, (2)Dra. DANIELLE GONÇALVES PINHEIRO, (3)Dra. ISABELLE MARIA VERZA DE CASTRO, (4)Dr. JOÃO CESAR BARBIERI BEDRAN, (5)Dr. LUCIANO ALVES ROSSATO, (6)Dr. RAFAEL AUGUSTO FREIRE FRANCO, (7)Dr. RICARDO RODRIGUES FERREIRA, (8)Dra. SUZANA SOO SUN LEE, (9)Dra. TELMA BERARDO e (10)Dr. FLÁVIO AMÉRICO FRASSETO, qualificados a seguir, uma vez que estão padecendo de ato que configura constrangimento ilegal, consistente na instauração do inquérito policial n1 55/07 do 8º Distrito Policial do DECAP, tombado sob o nº 050.07.016140-2/0000, por requisição do MM. JUIZ DE DIREITO DA 4ª VARA ESPECIAL DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DA COMARCA DA CAPITAL, e é presidido pelo Ilmo. Sr. Dr. DELEGADO DE POLÍCIA TITULAR do mencionado Distrito Policial, aqui apontados como Autoridades Coatoras, conforme a seguir se expõe.


I – Breve apresentação

Os pacientes, exceto o último, que hoje exerce a função de Defensor Público do Estado de São Paulo, são Procuradores do Estado de São Paulo, e suas qualificações pessoais são as seguintes:

(1)Dra. ANNA LUÍZA MORTARI, brasileira, solteira;

(2)Dra. DANIELLE GONÇALVES PINHEIRO, brasileira, solteira;

(3)Dra. ISABELLE MARIA VERZA DE CASTRO, brasileira, casada;

(4)Dr. JOÃO CESAR BARBIERI BEDRAN, brasileiro, solteiro;

(5)Dr. LUCIANO ALVES ROSSATO, brasileiro, solteiro;

(6)Dr. RAFAEL AUGUSTO FREIRE FRANCO, brasileiro, solteiro;

(7)Dr. RICARDO RODRIGUES FERREIRA, brasileiro, solteiro;

(8)Dra. SUZANA SOO SUN LEE, brasileira, casada;

(9)Dra. TELMA BERARDO, brasileira, solteira;

(10)Dr. FLÁVIO AMÉRICO FRASSETO, brasileiro, casado.

Na época dos fatos que constituem objeto do citado inquérito policial – dezembro de 2006 — os pacientes (com exceção do último, que já havia optado pela Defensoria Pública) estavam classificados na PAJ — Procuradoria da Assistência Judiciária e todos exerciam, em sistema de rodízio, suas atividades profissionais nas Varas Especiais da Infância e da Juventude da Comarca da Capital, entre elas a 4ª Vara, onde oficia o MM. Juiz de Direito apontado como Autoridade Coatora.

No dia 10 de janeiro do corrente ano, o referido Magistrado requisitou a instauração de inquérito policial contra os pacientes para apurar pretenso crime de prevaricação. Cópias das peças principais dos autos desse inquérito instruem a presente impetração como doc. 1.

Essa conduta da Autoridade Coatora foi motivada pelo fato de o Exmo. Sr. Dr. PROCURADOR GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO haver representado à Egrégia Corregedoria Geral de Justiça, consoante expressamente reconheceu Sua Excelência no segundo parágrafo do ofício (fl. 3 do inquérito), onde consigna que “… sob a pretensa escusa de estarem sendo violadas suas prerrogativas de advogado, o que de forma alguma ocorreu, formularam os indiciados representação contra este magistrado e simplesmente deixaram de atender aos casos da 4ª Vara, desde 18 de dezembro p.p., como demonstram os documentos anexos.” (grifamos)

É importante ressaltar que na mesma data, 10 de janeiro, além de requisitar instauração de inquérito policial, a Autoridade Coatora também formulou representação contra os pacientes perante a Promotoria de Justiça da Cidadania, para que lá fosse instaurado inquérito civil destinado a apurar pretenso ato de improbidade que ele sabia não haver sido praticado. É intuitivo que essa conduta do MM. Juiz teve a finalidade de tentar justificar perante a E. Corregedoria os atos de abuso que motivaram a representação, ou seja, praticou aquilo que é vulgarmente chamado de “fogo de encontro”, bem como é também, evidentemente, ato de vingança.

A presente ação de habeas corpus tem por escopo o trancamento do mencionado inquérito policial porque constitui constrangimento ilegal contra os pacientes, na medida em que padece da falta de justa causa. O fato que constitui objeto da investigação policial é flagrantemente atípico, como adiante será mostrado. Aliás, convém anotar que o Dr. Delegado de Polícia que instaurou o procedimento, também apontado como Autoridade Coatora, sintomaticamente optou por não baixar portaria como costumeiramente faz.

Em sede de decisão provisória, o que se pretende é o sobrestamento do inquérito, até o julgamento de mérito deste writ. Anota-se desde já que essa providência não poderá acarretar qualquer embaraço à efetiva aplicação da lei penal, uma vez que não há o menor risco de o pretenso delito ser alcançado pela prescrição.

É despicienda argumentação alentada acerca do cabimento do Habeas Corpus para o fim de trancamento de inquérito policial porque há muito tempo se abandonou o entendimento, plasmado durante período em que não vivíamos num Estado Democrático de Direito, de que tal providência não constituiria constrangimento ilegal. Basta a transcrição das ementas abaixo, uma delas referente a julgamento ocorrido ainda no corrente ano:

“CRIMINAL. INQUÉRIT0 POLICIAL – FALTA DE JUSTA CAUSA – TRANCAMENTO

Dos préstimos do habeas corpus para trancamento do inquérito não há duvidar-se quando, às claras, falte ao fato noticiado qualquer conotação criminal.” (RHC 18/PR-1989/0007874-7, Rel. o Ministro JOSÉ DANTAS)

“HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. JUIZ COMO AUTORIDADE COATORA. POSSIBILIDADE. TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. PROVA ILÍCITA. ÚNICA PROVA. INOCORRÊNCIA. DECADÊNCIA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. OCORRÊNCIA. ATIPICIDADE.

1. Juiz que indefere pedido de trancamento de inquérito policial pode ser apontado como autoridade coatora, no lugar do Procurador que requisita a sua instauração. Precedentes.


2. É possível a instauração de inquérito policial se há outros elementos que apontem para a prática de crime, além da prova obtida por meio ilícito, desde que esta não seja valorada.

3. (…)

4. Ordem concedida para trancar o inquérito policial diante da flagrante atipicidade da conduta imputada aos pacientes.” (HC 37418/RJ2004/ 0110069-0, Relatora a Ministra MARIA THEREZA ASSIS MOURA)

Relativamente à competência deste Egrégio Tribunal, não desconhecem os impetrantes a existência de inúmeros julgados que proclamam que “Pouco importa saber como o inquérito teve seu início: se de ofício ou mediante requisição judicial ou a requerimento do ofendido” , porque a eventual coação ilegal decorre do próprio inquérito que se inicia por ato do Delegado de Polícia, que, ao menos em tese, tem a faculdade de deixar de dar atendimento a requisições que entenda serem contra legem.

Todavia, não é esta a posição dominante da doutrina e da jurisprudência. Ensina Tourinho Filho que “Se a requisição é feita pelo Juiz, ou se este determina a instauração, em face de solicitação do Promotor de Justiça, a Autoridade Coatora é o Juiz. A propósito, RT 612/312, 319, 627/361, 639/294, RTJ 87/832. No mesmo sentido a manifestação do STF no RHC 74.860-MT (Informativo STF, n.60, de 26-6-1997).”

Nessa medida, é induvidosa a competência deste Colendo Tribunal de Justiça para conhecer e julgar o presente writ.

II – Os fatos

Raríssimos são os que não se cansam de louvar a dedicação, a combatividade e, sobretudo, a altíssima qualidade do trabalho prestado pelos Procuradores da PAJ – Procuradoria de Assistência Judiciária – na defesa daqueles que não podem contratar um advogado. A propósito, não custa lembrar que a PAJ já contou com profissionais que se tornaram símbolo da advocacia criminal no país, entre os quais WALDIR TRONCOSO PERES, a quem os impetrantes rendem homenagens.

Todavia, assim como não há regra sem exceção, há quem enxergue no advogado combativo um verdadeiro estorvo porque a sua atuação muitas vezes contraria o que entende ser a sã consciência do povo, muitas vezes sem saber sequer onde e quando floresceu e vigeu a doutrina que se apoiava nesse princípio.

Parece ser o caso do MM. Juiz da 4ª Vara Especial da Infância e da Juventude. Sua Excelência se indispôs com os Procuradores da PAJ simplesmente porque eles exigiam o estrito cumprimento das regras processuais, que o grande João Mendes Júnior definiu como “o complemento necessário das leis constitucionais”, e notadamente porque eles não transigiam com as prerrogativas do advogado, previstas no Estatuto da Advocacia, a Lei nº 8.906/94.

Entre outros tantos atos de arbitrariedade, a Autoridade Coatora entendeu de proibir que os pacientes mantivessem contato pessoal e reservado com os adolescentes acusados da prática de atos infracionais antes das audiências em que deveriam ser ouvidos e os pacientes se opunham a essa prática. A par disso, como no processo relativo a menores diversos atos se concentram nas audiências, Sua Excelência, sistematicamente, procurava dificultar o trabalho dos Procuradores da PAJ, recusando-se a fazer constar das atas das audiências suas manifestações orais. Diante das reclamações dos pacientes, ele freqüentemente se saía com frases como “a ata é minha”, “na minha ata ninguém mexe”, “o defensor não está com a palavra” etc..

Porém, o que mais irritava o MM. Juiz da 4ª Vara Especial da Infância e da Juventude era o fato de os pacientes, cumprindo deveres que a lei impõe aos advogados, ajuizarem ações de habeas corpus e reclamações, especialmente perante o STJ, em favor dos seus assistidos. A propósito, merece destaque o fato de que a maioria das ações de Habeas Corpus apontadas como motivadoras da recentíssima Súmula nº 342, do STJ foram ajuizadas pelos Procuradores da PAJ, ora pacientes, contra arbitrariedades da apontada Autoridade Coatora.

Para que se possa formar um juízo adequado acerca da maneira como o magistrado tratava os pacientes é suficiente o relato sobre três fatos concretos. Um deles ocorreu em dezembro de 2004. Conforme demonstram as cópias anexas, que instruem o presente writ como doc. nº 2, ao prestar informações no Habeas Corpus nº 117.079.0/8-00, impetrado pela paciente Dra. SUZANA SOO SUN LEE perante este Colendo Tribunal de Justiça, ele fez as seguintes afirmações:

“(…)

Litiga, pois, em absoluta má fé …

Pior do que isso, parece claro que o objetivo é obter uma manifestação rápida dessa Egrégia Câmara Especial sem nunca enfrentar o mérito da causa, a fim de buscar guarida no Colendo Superior Tribunal de Justiça, que sabidamente é de uma benevolência com os adolescentes infratores realmente inexplicável.

Se existem as nulidades propagadas pela impetração, deveria a impetrante recorrer da sentença, como seu dever, e buscar através do remédio jurídico próprio eventual efeito suspensivo na decisão. Em vez disso, procura aplicar verdadeiro golpe na Superior Instância, conduta digna de rábula velhaco, pouco apropriada a um defensor público.


(…)

Sugiro ainda que esta Câmara Especial represente ao digníssimo Procurador Geral do Estado em função desse grave desvio de conduta funcional, pois o enorme número de impetrações recentes indica que a impetrante adotou esta má conduta como tática.” (grifos dos impetrantes)

O segundo fato também diz respeito a outro Habeas Corpus. A paciente Dra. TELMA BERARDO entendeu, no exercício da advocacia, que deveria insurgir-se contra uma decisão deste Egrégio Tribunal de Justiça que havia negado provimento a recurso que interpusera no feito nº 015.05.1577-4, e ajuizou o Habeas Corpus nº 49.089/SP perante o Colendo Superior Tribunal de Justiça. A ordem foi concedida, sendo declarada nula a sentença proferida em primeiro grau, na parte referente à aplicação de medida de internação que havia sido imposta, e assegurada ao adolescente paciente liberdade assistida até que lhe fosse aplicada reprimenda diversa. Mostram as cópias anexas (doc. nº 3), que Sua Excelência, desrespeitando a decisão do STJ, proferiu nova decisão em que impôs a mesma medida e, além disso, no final do texto, fez consignar a seguinte frase que, além de ofensiva, evidencia abuso e provocação inaceitáveis:

“Ciência especial à Procuradora da Assistência Judiciária Telma Berardo para que impetre reclamação, se tiver coragem para tanto.” (sublinhamos)

Como se viu, o motivo da irritação do magistrado sempre foi a exigência do respeito às garantias fundamentais do cidadão, o acatamento às prerrogativas do advogado e, sobretudo, o manejo das medidas processuais que o ordenamento jurídico prevê. No último caso acima noticiado, a sua determinação de “ciência especial à Procuradora” exigia uma resposta da advogada, que não se intimidou e efetivamente ajuizou reclamação perante o STJ [feito nº 2.247-SP (2006/0170696-2)], em que o Relator, Ministro NILSON NAVES, concedeu provimento cautelar para que o adolescente assistido fosse posto em liberdade assistida.

Definitivamente, esse comportamento do MM. Juiz da 4ª Vara Especial da Infância e da Juventude demonstra que Sua Excelência não tolera o Estado Democrático de Direito, onde quem decide sobre qual será a medida a ser adotada contra uma decisão judicial qualquer é a parte, por meio de quem está habilitado a representá-la, e não o juiz, que é inerte, conforme dispõe a lei.

Assim, foi em meio a tal clima que ocorreu o que se pode chamar de “a gota d’água que faltava”. Na final da tarde de 22 de novembro do ano passado, atuava perante o Juízo a paciente Dra. DANIELLE GONÇALVES PINHEIRO. Antes da audiência de apresentação dos adolescentes M.B.S. e S.O.M., a Procuradora da PAJ tentou entrevistar-se com eles. O MM. Juiz não se conformou com aquela violação à ilegal proibição dele; dirigiu-se ao local em que os três se encontravam; pegou o braço da Procuradora e a empurrou para afastá-la dos adolescentes, que foram conduzidos por ele mesmo à sala de audiências. Apesar de evidentemente abalada pelo inusitado comportamento do MM. Juiz, cumprindo o seu dever de advogada, a Dra. Danielle entrou na sala de audiências. Ao final, após Sua Excelência haver decidido que “mantinha a internação provisória e designava audiência em continuação” para outra data, a defensora pediu a palavra para interpor agravo retido, o que lhe foi negado. Por esse motivo, ela se recusou a assinar o termo da audiência, cuja cópia constitui o doc. 4. É fundamental a transcrição de parte do texto desse termo porque constitui prova do que acima foi afirmado, que sistematicamente o MM. Juiz dificultava o trabalho dos defensores da PAJ não fazendo registrar na ata suas manifestações orais:

“… A seguir pelo MM. Juiz foi dito que mantinha a internação provisória do(s) adolescente(s) e designava audiência em continuação para o dia 13.12.2006, às 16:00 horas, abrindo-se vista à defesa para manifestação em um tríduo. Pediu a palava a Dra. Defensora para interpor agravo retido, tendo o MM. Juiz dito que, não havendo decisão, não cabia falar em agravo, pelo que não franqueava a palavra para tal fim. Saem intimados os presentes, advertidos de que a audiência poderá ser antecipada em até 30 minutos, pelo que deverão estar presentes com esta antecedência. …Por fim, fica consignado que a Defensora, apesar de presente, se recusa a assinar o termo. …”

Diz-se que isso é prova do mau hábito cultivado pelo Magistrado porque esse registro foi exceção, provocado por outra atitude excepcional. A coragem da advogada levou a Autoridade Coatora a um dilema: ou fazia o registro para demonstrar que os adolescentes contaram com a assistência de defensor, ou a ata se tornaria prova de que o ato processual praticado era nulo, por ausência de defensor. Portanto, ao contrário do que informou o MM. Juiz à E. Corregedoria, esse termo de audiência constitui a prova cabal de que reiteradamente se negava a registrar as manifestações orais dos Procuradores da PAJ.


Dois dias depois, a Dra. Danielle apresentou ao Juízo petição em que requereu a anulação da audiência por haver sido negado o direito de manter prévia entrevista pessoal com os seus assistidos e, em caso de indeferimento, fosse recebida como agravo retido. E é elucidativo o despacho que foi proferido pela Autoridade Coatora, cuja cópia instrui a presente como doc. nº 5:

“1. Petição retro, recebo como agravo retido. Anote-se.

2. Quanto às alegações ali contidas, alguns reparos devem ser feitos: Primeiro, a audiência de apresentação não é interrogatório. Segundo, a ela não se aplicam …

3. A defensora mostra bem o seu caráter ou talvez fosse melhor dizer, a falta dele, a assacar inverdades. Aleivosa a afirmação de que esse magistrado empurrou e puxou a defensora pelo braço.

4. Assim sendo, difícil sustentar qualquer clima de respeito em face da dita defensora, pelo que outro caminho não resta senão revogar a sua nomeação e nomear em seu lugar, qualquer outro membro da PAJ atuante na Vara.”

Como advogada exemplar que é, a Dra. Danielle impetrou Habeas Corpus (feito nº 143.855-0/5-00) que foi distribuído ao Eminente Desembargador SIDNEI BENETI, que em seu voto consignou que “A realização do ato (refere-se àquela audiência) sem atendimento ao requerido (o pedido de prévia entrevista pessoal com os assistidos) afronta a garantia constitucional e legal assegurada aos adolescentes (art. 5º, XXXVIII,’a’, da CF a art. 111, III, do ECA), além de atingir o direito da Defensora de se comunicar com os assistidos, inclusive reservadamente (art. 7º, III, da Lei nº 8.906/94). Daí, porque, reconhece-se o vício que macula o processo.” As cópias relativas a tal processo integram a impetração como doc. 6.

Neste passo, é fundamental que se tenha presente que a arbitrariedade foi praticada em meio a uma situação peculiar. Enfrentava-se um momento de transição, em que a Procuradoria da Assistência Judiciária estava sendo paulatinamente desativada, uma vez que as suas atividades passariam a ser desempenhadas pela nova DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, o que é do conhecimento público, ao menos nos meios forenses. E tanto isso é verdadeiro que, dos dez pacientes que oficiavam nas Varas Especiais da Infância e da Juventude, apenas um, o Dr. FLÁVIO AMÉRICO FRASSETO, optara por se transferir para a nova instituição. Além disso, outra circunstância há de ser levada em consideração para a correta compreensão dos fatos: como há muito tempo a PAJ não dispõe de número suficiente de Procuradores para atender a demanda por assistência jurídica da população carente, há mais de 20 (vinte) anos a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo vem firmando sucessivos convênios com a Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo. Hoje os advogados conveniados prestam assistência em todas as Comarcas do interior, e já há algum tempo diversos fóruns regionais da Capital deixaram de contar com os defensores da PAJ. Pelo que sabem os impetrantes, mesmo antes da sua transferência para o Complexo Judiciário Mário Guimarães, da Barra Funda, o Tribunal do Júri de Pinheiros já não tinha defensores da PAJ.

Feitos esses registros essenciais para a exata compreensão dos fatos, tornemos a eles. O relato antes apresentado demonstra à saciedade que já havia um clima de animosidade do MM. Juiz da 4ª Vara Especial da Infância e da Juventude em relação aos pacientes. Como se viu, em dezembro de 2004, em informações prestadas em Habeas Corpus, referindo-se à paciente Dra. SUZANA SOO SUN LEE, além de outros insultos, disse que ela litigava “em absoluta má-fé” e que tinha “conduta digna de rábula velhaco, pouco apropriada a um defensor público”. Mais tarde, desafiou a Dra. TELMA BERARDO, determinando que lhe fosse dada “ciência especial” de sua sentença para que ela, “se tivesse coragem”, aforasse reclamação perante o STJ. Aliás, ele viu que ela tinha coragem e viu também que o STJ lhe deu razão. Por fim, em 22 de dezembro, resvalou as vias de fato ao pegar o braço e empurrar outra procuradora, a Dra. DANIELLE GONÇALVES PINHEIRO, para impedir que ela mantivesse entrevista reservada com os seus assistidos, e dias depois afirmou textualmente que ela “mostra bem o seu caráter ou talvez fosse melhor dizer, a falta dele…”, e que por isso tornara-se “difícil sustentar qualquer clima de respeito em face da dita defensora”.

Diante desse último incidente, envolvendo a Dra. Danielle, os Procuradores da PAJ que atuavam perante as Varas Especiais da Infância e da Juventude, todos eles, resolveram redigir um documento que foi encaminhado à Exma. Dra. SUBPROCURADORA GERAL DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA (cuja cópia constitui o doc. nº 7), no qual relataram os reiterados desmandos do Dr. Ângelo Malanga e pediram que fossem formuladas representações contra ele, conforme deixam claro os dois últimos parágrafos:


“Ante todo o exposto, observa-se que a situação se tornou insustentável, pois nossa atuação tem sido obstada de tal modo a inviabilizar o exercício da defesa técnica, gerando irreparável prejuízo aos adolescentes assistidos.

Deste modo, requeremos que sejam tomadas as devidas providências no sentido de que o MM. Juiz indicado seja REPRESENTADO perante o Conselho Nacional de Justiça e a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo.”

Ora, é inegável, portanto, que havia um quadro insustentável que resultava em prejuízo para aqueles a quem os Procuradores da PAJ prestavam assistência. Aliás, no dia imediato ao incidente envolvendo a Dra. Danielle, o MM. Juiz chegou a proibir “que a defesa tivesse qualquer tipo de contato com os adolescentes, em toda em qualquer audiência, inviabilizando assim a defesa”, conforme registraram os pacientes no mencionado documento. Aliás, esta reação era até previsível. Afinal de contas, o MM. Juiz já havia ofendido e desafiado diversos Procuradores, já havia dito expressamente que não mais respeitaria outro, e já tivera o atrevimento de desrespeitar decisões do Superior Tribunal de Justiça. Portanto, já era esperado que ele não hesitaria em passar a agravar a situação dos adolescentes por conta da animosidade contra os pacientes.

Assim, em meio àquele clima insuportável, já havendo prova de que a continuidade da prestação dos serviços pelos pacientes estava acarretando prejuízos para a defesa técnica dos adolescentes, e também porque eram favas contadas que em pouco tempo nove dos dez Procuradores seriam removidos para outros setores, para desempenhar suas funções nas áreas da advocacia contenciosa do Estado e da consultoria das diversas Secretarias de Estado e autarquias, com o intuito de preservar o direito dos adolescentes, a PROCURADORIA GERAL DO ESTADO decidiu que, além de serem encaminhadas as representações solicitadas, os Procuradores da PAJ deveriam deixar de atuar nos processos que tramitavam perante o Juízo da 4ª Vara, sendo substituídos por advogados inscritos no convênio firmado com a OAB, até que as atividades pudessem ser definitivamente assumidas pela nova Defensoria Pública.

Coube ao então Exmo. Dr. Procurador do Estado Chefe da PAJ Criminal, superior hierárquico imediato dos pacientes, redigir e enviar ofício cuja cópia se encontra na folha 7 do inquérito (doc. 1), vazado nos seguintes termos:

“Dirijo-me à presença de Vossa Excelência para informá-lo que a partir de 18 de dezembro p.f., a Procuradoria da Assistência Judiciária e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo deixarão de atuar, provisoriamente, de forma direta, na defesa dos menores em conflito com a lei perante o juízo da 4ª Vara Especial da Infância de da Juventude. / Em vista disso, a defesa dos menores, cujos processos tramitam perante esse nobre juízo, será feita através de advogados nomeados através do convênio PGE-Defensoria/OAB, sendo necessário que os pedidos de indicação de advogados sejam remetidos por esse juízo à secretaria da PAJ Criminal/Defensoria, no Complexo Judiciário … ou através do fax 3392-4630.”.

Registre-se que tal ofício é do dia 6 de dezembro de 2006, e a Autoridade Coatora não manifestou qualquer inconformidade contra a decisão da Procuradoria Geral do Estado. Passou a cogitar de pretenso crime de prevaricação, que também supostamente caracterizaria ato de improbidade, depois de decorrido mais de um mês, quando teve que prestar informações à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça.

Portanto, fica claro que nunca houve “movimento paredista” algum, como consignou a Autoridade Coatora no ofício pelo qual requisitou a instauração do inquérito. Se houvesse ocorrido, ele já teria se insurgido contra a irregularidade logo que recebeu o mencionado ofício de 6 de dezembro de 2006.

Além disso, tal ofício do Dr. Procurador do Estado Chefe da PAJ Criminal constitui prova incontestável de que a decisão de não mais atuar nos processos da 4ª Vara Especial da Infância e da Juventude não partiu dos pacientes. Eles se limitaram a pleitear, como se viu acima, representações contra o Juiz, perante o Conselho Nacional da Magistratura e perante a Egrégia Corregedoria Geral de Justiça.

Mas não só. Essa decisão constitui ato discricionário da administração praticado, não pelos próprios pacientes, mas por seus superiores hierárquicos, que tinham atribuição para tanto. A propósito, esse ato veio a ser confirmado, no dia 1º de março do corrente ano, pelo atual PROCURADOR GERAL DO ESTADO, pelo ofício GPG 1047/2007, enviado ao Dr. Promotor de Justiça da Cidadania que preside o inquérito civil PJC-CAP nº 103/07-4º PJ, cuja cópia integra a presente impetração como doc. nº 8, merecendo destaque os trechos a seguir transcritos:

“Para o desempenho de suas funções possui a Administração Pública, e no caso inclui-se a Procuradoria Geral do Estado, poder discricionário.


A discricionariedade permite que a Administração adote, perante eventuais problemas, uma ou outra solução, segundo critérios de conveniência e oportunidade, sem definição prévia da legislação.

Isto não significa arbitrariedade, pois o poder discricionário tem limitações legais quanto à competência, forma e finalidade.

Diante do caso concreto, qual seja, a necessidade de readequação de quadros dentro da Procuradoria Geral do Estado, que assumiu novas atribuições nas áreas do Contencioso e Consultoria, determinando a desativação paulatina da Área da Assistência Judiciária com a remoção de Procuradores, a Administração da Instituição adotou uma solução legal, dentro dos limites de sua competência e finalidade, atendendo o interesse público e concomitantemente sem deixar descoberto o atendimento jurídico à população carente: lançou mão da utilização do serviço indireto por uma das entidades com as quais mantém convênio.

Ora, a Procuradoria Geral deixou de atuar na 4ª Vara Especial da Infância e Juventude por absoluta necessidade de realocação de Procuradores em outros locais, com vistas a uma melhor distribuição de seus quadros para manter, a despeito de suas idiossincrasias, o exercício de suas atribuições, atendendo o interesse público sem descumprir dever institucional.

O ato foi discricionário, dentro dos limites de obediência à legalidade, adotando a Administração a solução que lhe pareceu a mais oportuna e adequada.

A antecipação do afastamento, pela ocorrência do dia 22 de novembro, veio por dever de zelar pelos interesses dos usuários do serviço público, evitando que sofressem qualquer prejuízo por conta de problemas que a eles não diziam respeito, além de atender a Administração Pública que necessitava da readequação de recursos humanos.

Na medida em que a decisão da Administração foi discricionária, adotando a solução que melhor lhe pareceu adequada ao caso concreto, obedecendo aos requisitos de competência, forma e finalidade, outra não causa que não a impressão de que a representação que deu início a este inquérito tem mera finalidade de enfraquecer as medidas tomadas pela procuradoria junto a Corregedoria Geral da Justiça e ao Conselho Nacional de Justiça.” (os destaques são dos impetrantes)

Portanto, fica cristalinamente claro que os pacientes deixaram de atuar nos processos da 4ª Vara Especial da Infância e da Juventude em virtude de ato discricionário da PROCURADORIA GERAL DO ESTADO, e não por vontade própria, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Não se nega que a decisão da Procuradoria Geral do Estado haja sido provocada pelos pacientes, uma vez que ela foi tomada em razão do relato que encaminharam aos seus superiores hierárquicos, acerca do comportamento que, há muito tempo, a Autoridade Coatora vinha adotando em relação a eles.

Entretanto, a prova cabal de que a decisão constitui ato discricionário da instituição a que pertencem os pacientes repousa no fato de que o relato feito pelos pacientes foi levado à apreciação do CONSELHO DA PROCURADORIA GERAL DO ESTADO que culminou por deliberar, na sua 41ª sessão ordinária, ocorrida em 7 de dezembro passado, a realização de desagravo, que se concretizou na sessão seguinte, do dia 14, conforme mostram as cópias das atas que integram a presente como doc. 9.

Portanto, não há como cogitar-se da possibilidade de configuração do crime do art. 319 do Código Penal, como adiante será demonstrado.

III – O direito

O crime de prevaricação, segundo o preceito primário do art. 319, do Código Penal, tem como objeto o ato de ofício, que na definição de HELENO FRAGOSO “é todo aquele que corresponde à competência legal do funcionário, enquadrando-se nas atribuições da função exercida.” Três são as condutas incriminadas em relação ao ato de ofício, expressas pelas ações consistentes em (1)retardá-lo, (2)deixar de praticá-lo e (3)praticá-lo contra disposição expressa de lei, as quais estão condicionadas pelo advérbio indevidamente, que para NELSON HUNGRIA “tanto significa ilegalmente, quanto injustificadamente”. Além disso, o preceito também prevê um especial fim de agir — elemento subjetivo do tipo — expresso pela fórmula “para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.

Resulta disso, portanto, que se a conduta (omissiva ou comissiva) do funcionário não for ilegal ou injustificada (indevida), o tipo penal não se aperfeiçoa, e o mesmo se dá em face da ausência do elemento subjetivo específico.

Nessa medida, conclui-se, já à primeira vista, que os pacientes não podem ser sujeitos ativos desse crime, porque não havia ato de ofício que devesse ser praticado por eles no Juízo da 4ª Vara Especial da Infância e da Juventude, nem sua conduta omissiva era ilegal, injustificada ou ilegítima.


Está plenamente demonstrado no ofício que foi recebido pela a Autoridade Coatora (fl. 7 do inquérito – doc. 1), datado de 6 de dezembro de 2006, que houve uma deliberação oficial superior no sentido de “que a partir de 18 de dezembro p.f., a Procuradoria da Assistência Judiciária e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo deixarão de atuar, provisoriamente, de forma direta, na defesa dos menores em conflito com a lei perante o juízo da 4ª Vara Especial da Infância de da Juventude.”

Assim, se houve uma decisão — que constitui ato discricionário da administração — da cúpula da instituição (interveio até mesmo o Conselho da Procuradoria Geral do Estado), de que os membros da Procuradoria da Assistência Judiciária não mais exercitariam a defesa dos adolescentes naquele Juízo (porque essa atividade passaria a ser desempenhada por advogados inscritos no convênio firmado com a OAB), a partir da data assinalada (18 de dezembro), não mais havia ato de ofício que devesse ser praticado pelos pacientes, do que resulta que a sua conduta é flagrantemente atípica.

É este o entendimento pacífico da jurisprudência, conforme se vê das ementas colacionadas na obra coordenada por ALBERTO DA SILVA FRANCO e RUI STOCO , a seguir transcritas:

“Prevaricação — Delito não configurado — Policial militar que, para satisfazer sentimento pessoal, deixa de atender à determinação do delegado de polícia — Recusa baseada em ordem emanada de seu superior hierárquico — Estrita obediência, portanto, à ordem não manifestamente ilegal — Absolvição decretada — Inteligência dos artigos 319 e 13 (atual art. 22) do CP — ‘A ordem de superior hierárquico (isto é, emanada de autoridade pública, pressupondo uma relação de direito administrativo) só isenta de pena o executor se não é manifestamente ilegal. Outorga-se, assim, ao inferior hierárquico, uma relativa faculdade de indagação da legalidade da ordem’ (TACRIM-SP — AC — Rel. Lauro Malheiros – RT 490/331).”

“Não se configura, sequer em tese, o delito de prevaricação quando a recusa do funcionário se baseia, em ordem emanada de seu superior hierárquico. A estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal é causa de exclusão de ilicitude (art. 22 do CP)” (TACRIM-SP — Rec. — Rel. Sérgio Carvalhoza – RT 606/342).”

“Não pode haver prevaricação se o ato praticado, omitido ou retardado refugia ao âmbito da competência funcional do servidor. É que o delito se caracteriza pela infidelidade ao dever funcional e pela parcialidade no seu desempenho” (TACRIM-SP — Res. Azevedo Franceschini — RT 381/222).”

“Para que se verifique o crime de prevaricação, é necessário que o funcionamento seja responsável pela função relacionada ao fato ou pelo fato relacionado à função” (TAPR — AC — Rel. João Cid Portugal — RT 486/357).”

“Não pratica o delito de prevaricação o funcionário público que, ao deixar de praticar ato de ofício, não se encontra no exercício de suas atividades” (TACRIM-SP — AC Rel. Rocha Lima — JUTACRIM 71/290).”

Todavia, ainda que fosse possível questionar a legalidade ou a legitimidade da decisão que norteou a conduta dos pacientes, ainda assim o fato não configura o crime de prevaricação.

Com efeito. Ensina HELENO CLÁUDIO FRAGOSO que “O especial fim ou motivo de agir que aparece em certas definições de delitos condiciona ou fundamenta a ilicitude do fato. Trata-se, portanto, de elemento subjetivo do tipo de ilícito, que se apresenta de forma autônoma, junto ao dolo. / Assim, por exemplo, no crime de prevaricação (art. 319, CP), o tipo configura-se objetivamente quando o agente retarda ou deixa de praticar indevidamente ato de ofício, ou o pratica contra disposição expressa de lei. Todavia o tipo subjetivo não se esgota com a vontade conscientemente dirigida à prática de tais ações ou omissões: só haverá crime se, além disso, atuar o agente ‘para satisfazer interesse ou sentimento pessoal’”.

Ao tratar especificamente do delito em questão, o saudoso autor acrescenta que “É indispensável que a ação ou omissão seja praticada para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Nisso está o traço fundamental da prevaricação, que a distingue de outros delitos da mesma natureza.”

Portanto, além do dolo representado pela vontade livre e consciente de praticar as ações omissivas e comissivas previstas, para a configuração do crime de prevaricação mister se faz também a presença simultânea do elemento subjetivo do tipo, que é o intuito de “satisfazer interesse ou sentimento pessoal.” Sem ele, o que se tem é conduta irrelevante ao Direito Penal.

Ora, conforme esclareceu o Exmo. Dr. PROCURADOR GERAL DO ESTADO (doc. nº 8), a decisão de que os Procuradores não mais oficiariam no Juízo da 4ª Vara obedeceu a dois propósitos: o de preservar o direito dos adolescentes e a necessidade da administração de realocação dos funcionários que passariam a prestar serviços em outras áreas. Portanto, é manifesta a ausência do intuito de satisfação a interesse ou sentimento de ordem pessoal.


A propósito, veja-se a argumentação precisa do Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE no voto que proferiu no julgamento do HC nº 68.348, do Colendo Supremo Tribunal Federal, impetrado em favor do então Ministro da Administração Aluizio Alves, para trancamento de inquérito policial instaurado por requisição do Ministério Público Federal, porque o paciente havia expedido orientação para que fossem suspensas medidas judiciais e administrativas visando à desocupação de apartamento funcionais ocupados por servidores inativos:

“As circunstâncias incontestes que induziram o Ministro à orientação questionada de suspensão das medidas administrativas e judiciais de retomada dos imóveis ocupados por servidores inativos, enquanto o governo estudava a alteração da legislação correspondente constitui ato discricionário ditado por elementares razões de eqüidade que — quando acaso não autorizado formalmente pelas normas regulamentares em vigor, o que se admite para argumentar — de certo, à evidência não permitem o enquadramento do fato no art. 319 C.Pen., tipo que não se substantiva se ausente o seu elemento subjetivo específico, qual seja, o de visar a prática ou omissão ilegal do ato de ofício à satisfação de ‘interesse ou sentimento pessoal’ do agente.

Ao contrário, movido o agente por finalidade pública, de ordem administrativa, ainda quando não bastasse para descaracterizar a ilegalidade, não há crime, que não se realiza sem a concorrência do especial fim de agir, de ordem privada, que o tipo reclama.” (destaques dos impetrantes)

Ora, se é certo que os pacientes podem ter motivos de ordem pessoal — e eles não faltam — para nutrir desafeição ao MM. Juiz da 4ª Vara Especial da Infância e da Juventude, tanto que requereram aos seus superiores hierárquicos que fossem formuladas representações contra ele, o fato é que eles agiram em atendimento a decisão da Procuradoria Geral do Estado, tomada com a finalidade de “zelar pelos interesses dos usuários do serviço público, evitando que sofressem qualquer prejuízo por conta de problemas que a eles não diziam respeito, além de atender a Administração Pública que necessitava da readequação de recursos humanos”, conforme deixou assentado o Exmo. Sr. Dr. Procurador Geral do Estado no ofício que remeteu ao Ministério Público.

Mas não só. A prova incontestável de que comportamento dos pacientes não foi ditado pela satisfação de interesses ou sentimentos pessoais reside na circunstância de que, durante quase um mês, depois do incidente do dia 22 de novembro, eles continuaram a prestar assistência aos adolescentes cujos processos tramitavam na 4ª Vara Especial da Infância e da Juventude, e só deixaram de prestá-la a partir de 18 de dezembro, por força de decisão da instituição à que pertencem.

Mas não só. Junte-se a este fato o esclarecimento prestado pelo próprio MM. Juiz à Egrégia Corregedoria, de que os mesmos Procuradores trabalharam normalmente enquanto ele cumulava a 3ª Vara Especial da Infância e Da Juventude, nas férias do seu titular. Onde está, então, na conduta dos pacientes, o especial fim de agir?

Assim, diante da inequívoca ausência do elemento subjetivo do tipo, que impede a configuração do crime, ajusta-se como uma luva ao caso concreto a redação da ementa oficial do v. acórdão do Supremo Tribunal Federal no mencionado HC nº 68.348:

“PREVARICAÇÃO. COMPORTAMENTO ATRIBUÍDO AO PACIENTE QUE NÃO CONFIGURA ILÍCITO DE TAL NATUREZA, NEM QUALQUER OUTRO TIPO PENAL.

Se o inquérito foi aberto para apuração de fato devidamente caracterizado no pedido de sua instauração, mas de pronto se vê inexistir, no comportamento do paciente, o crime de prevaricação – que teria sido cometido – ou outro qualquer previsto na legislação penal, é de ser trancado o inquérito, evitando-se prossiga ele inutilmente.” – (Relator o Ministro ALDIR PASSARINHO)

Dessa forma, salvo melhor juízo, entendem os impetrantes haver sido suficientemente demonstrado que por dois motivos não se pode cogitar da caracterização do crime de prevaricação:

a) Os pacientes deixaram de prestar assistência aos adolescentes nos processos que tramitavam perante o r. Juízo da 4ª Vara Especial da Infância e da Juventude em virtude de decisão (ato discricionário da administração) da Procuradoria Geral do Estado e, portanto, inexistia ato de ofício que devessem praticar.

b) A omissão não foi ilegal nem injustificada, e flagrante é a ausência do elemento subjetivo do tipo, porque a decisão da Procuradoria Geral do Estado foi motivada pela necessidade de realocação dos Procuradores em outras áreas da administração e, sobretudo, para preservar o direito de defesa dos adolescentes carentes, na medida em que era previsível que a Autoridade Coatora viesse a prejudicá-los em razão da animosidade que nutria contra os pacientes.


E não custa repisar. O MM. Juiz permaneceu mais de um mês sem se insurgir contra a decisão da Procuradoria Geral do Estado, e só resolveu requisitar a instauração de inquérito contra os pacientes quando se viu obrigada a prestar informações à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça, em razão da representação formulada pelo Exmo. Procurador Geral do Estado. Resta claro, portanto, que a requisição do inquérito teve duas finalidades: a de instruir as informações que teve que prestar, para tentar justificar os abusos praticados, e a vingança, que constitui, este sim, comportamento marcado por sentimento pessoal.

Como se observa, a questão que é objeto da presente impetração não demanda exame aprofundado de prova, uma vez que para a aferição da atipicidade da conduta dos pacientes basta a simples leitura de três ofícios: 1) o da Autoridade Coatora pelo qual requisitou a instauração de inquérito [doc. 1]; 2) o do Exmo. Dr. Procurador do Estado Chefe da Procuradoria da Assistência Judiciária [fl. 7 do inquérito — doc. 1]; e 3) o do Exmo. Dr. Procurador Geral do Estado à Promotoria da Cidadania da Capital [doc. 8].

Portanto, concretamente, há uma situação idêntica à do mencionado HC nº 68.348 do E. Supremo Tribunal Federal que decidiu que “Se o inquérito foi aberto para apuração de fato devidamente caracterizado no pedido de sua instauração, mas de pronto se vê inexistir, no comportamento do paciente, o crime de prevaricação … ou outro qualquer previsto na legislação penal, é de ser trancado o inquérito, evitando-se prossiga ele inutilmente.”

IV – O pedido de fundo

Diante da argumentação acima, entendem os pacientes haver sido demonstrado que a conduta dos pacientes é flagrantemente atípica e não pode configurar o crime de prevaricação, nem qualquer outra infração penal, e que a aferição da atipicidade independe de prova que deva, ou possa, ser produzida no curso de investigação policial.

Nessa medida, resta evidente que o inquérito instaurado contra os pacientes pelo Dr. Delegado de Polícia do 8º Distrito Policial, mediante requisição do MM. Juiz da 4ª Vara Especial da Infância e da Juventude caracteriza constrangimento ilegal, passível de ser cessado pela via do Habeas Corpus.

Impõe-se esclarecer, neste passo, que o Dr. Delegado de Polícia que preside o inquérito também é apontado como Autoridade Coatora por cautela, porque que não são poucas as decisões que, como acima foi mostrado, sustentam que o constrangimento ilegal passa a ter existência com o ato de instauração do inquérito, que é próprio da Autoridade Policial.

Assim, requerem os impetrantes que seja determinado o regular processamento do presente writ, com a expedição de ofícios às apontadas Autoridades Coatoras para que prestem as informações cabíveis, bem como, após elas, sejam os autos remetidos ao Ministério Público para que seja colhido o seu parecer e, a final, seja concedida ordem em favor dos pacientes para o trancamento do inquérito policial n1 55/07 do 8º Distrito Policial do DECAP, registrado no Distribuidor Criminal da Comarca da Capital sob o nº 050.07.016140-2/0000.

Além disso, tendo em vista a maneira pela qual o MM. Juiz da 4ª Vara Especial da Infância e da Juventude costuma se referir aos advogados quando presta informações em processos de Habeas Corpus contra simples decisões por ele proferidas, rogam os impetrantes que, no ofício requisitório das informações, seja Sua Excelência alertado de está sujeito ao dever previsto no art. 35, IV, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar nº 35/79), eis que não poderão ser toleradas eventuais ofensas aos pacientes bem como aos impetrantes.

V – O pedido de provimento cautelar

O Dr. Delegado de Polícia Titular do 8º Distrito Policial expediu ofício ao Exmo. Dr. Procurador Geral do Estado para que os pacientes fossem notificados a comparecer à Delegacia nos dias 26 e 28 próximos, “para serem ouvidos nos autos do inquérito policial em referência”, conforme mostram as cópias que constituem as peças de fls. 71/72 dos autos do inquérito (doc. 1). Como se observa, não explicitou essa d. Autoridade Coatora se eles serão interrogados, e portanto indiciados, ou se apenas serão ouvidos em termos de declarações.

Todavia, anota-se que o Dr. Delegado de Polícia já tomou a iniciativa de requisitar ao Instituto de Identificação da Polícia a remessa dos dados cadastrais de todos os pacientes (fls. 44/64 do inquérito — doc. 1), medida essa que somente é adotada em relação às pessoas que serão indiciadas em inquérito policial. Aliás, se a intenção fosse outra, pelo menos por enquanto, a medida seria destituída de qualquer sentido. Se realmente quisesse os endereços, bastaria a solicitação à própria Procuradoria Geral do Estado.

Dessa forma, têm os impetrantes e também os pacientes motivos para temer que, no curso do desenvolvimento do inquérito, mesmo que, num primeiro momento, o Dr. Delegado de Polícia se disponha a tomar os depoimentos dos pacientes em termos de declarações, possa ele, no exercício da presidência do feito, promover o seu indiciamento indireto, e passarão os pacientes a figurar, para sempre, no banco de dados da Polícia, com os evidentes prejuízos disso decorrentes. Aliás, é oportuno observar que a primeira medida que a Polícia adota para promover o indiciamento indireto é exatamente a requisição desses elementos.


Além disso, é inegável que o simples ato de alguém, nas mesmas circunstâncias, ver-se obrigado a comparecer à Delegacia de Polícia para prestar declarações, já implica em atentado ao status dignitatis, e certo que a Constituição, antes mesmo da proteção da honra e da imagem (art. 5º, X) elegeu a dignidade da pessoa humana (art. 11, III) como valor fundante do Estado Democrático de Direito, como ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA:

APoderíamos até dizer que a eminência da dignidade da pessoa humana é tal que é dotada ao mesmo tempo de natureza de valor supremo, princípio constitucional fundamental e geral que inspiram a ordem jurídica. Mas a verdade é que a Constituição lhe dá mais do que isso, quando a põe como fundamento da Republica Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito. Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor fundante da República, da federação, do País, da Democracia e do direito. Portanto, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí a sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional.@

Impende observar também que, na medida em que este Colendo Tribunal poderá determinar o trancamento do inquérito com a concessão da ordem pleiteada, porque emerge à primeira vista a atipicidade dos fatos imputados aos pacientes, e em tais circunstâncias qualquer ato que venha a ser praticado será de completa inutilidade, e sofrerá a sociedade que necessita dos serviços da Polícia, que sabidamente conta com quadro insuficiente de policiais.

Para a concessão da providência cautelar, devem estar presentes os requisitos do fumus boni juris e do periculum in mora.

É induvidosa a existência do primeiro requisito, o fumus boni juris, porquanto foi demonstrado que os fatos que são objeto de investigação policial são atípicos. Por via de conseqüência, o inquérito que foi instaurado configura constrangimento ilegal e é o Habeas Corpus meio idôneo para combatê-lo.

Além disso, à toda evidência, até que sejam remetidas a este Egrégio Tribunal as informações que devem ser prestadas pelas dignas Autoridades Coatoras e, em seguida, colhido o parecer do Exmo. Dr. Procurador de Justiça, até ser finalmente julgado o mérito da presente impetração, deverão os pacientes se apresentar no 8º Distrito Policial para prestarem os seus depoimentos. E mais: no ofício que remeteu ao Exmo. Dr. Procurador Geral do Estado , o Dr. Delegado de Polícia que preside o inquérito não esclareceu se pretende interrogar e indiciar os pacientes ou simplesmente ouvi-los em termos de declarações, porém é certo que já requisitou do Instituto de Identificação a cópias das folhas cadastrais.

Ora, essa medida só é adotada em relação às pessoas que são, ou serão, submetidas ao indiciamento, e não para aquelas que são simplesmente meras suspeitas da prática de um crime. Além disso, é certo que freqüentemente as Autoridades Policiais realizam o indiciamento indireto a partir dos elementos fornecidos pelas folhas de antecedentes, e nesse caso, passarão os pacientes a figurar do banco de dados criminais para sempre, mesmo que a ordem de Habeas Corpus venha a ser futuramente deferida.

Portanto, não será difícil a conclusão de que a demora na formação da decisão definitiva de mérito da presente impetração a tornaria inócua e, caso venha a merecer o esperado provimento, o constrangimento ilegal que se pretende evitar já estará efetivamente consumado.

Dessarte, também está presente o periculum in mora, que é o segundo requisito autorizador da tutela cautelar e que, segundo a Professora ADA PELLEGRINI GRINOVER “visa a assegurar imediatamente a eficácia do próprio processo, protegendo o direito substancial apenas indiretamente”.

Ou na lição de JOSÉ ALBERTO DOS REIS , “A formação lenta e demorada da decisão definitiva expõe o presumido titular do direito a riscos sérios de dano jurídico; para afastar estes riscos, para eliminar o dano, admite-se a emanação duma providência provisória ou interina, destinada a durar somente enquanto não se elabora e profere o julgamento definitivo.”

Por conseguinte, na medida em que, concretamente, é induvidosa a presença simultânea dos requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, requerem os impetrantes a concessão de medida liminar para que seja determinado o sobrestamento do andamento do inquérito policial em questão, até o julgamento do mérito da presente ação de Habeas Corpus.

Aliás, de maior valia será a requisição dos próprios autos do inquérito, uma vez o seu exame contribuirá para o julgamento definitivo de mérito.

Termos em que pedem deferimento.

São Paulo, 17 de setembro de 2007.

José Roberto Leal de Carvalho

OAB/SP 26.291

Maria Helena Pacheco de Aguirre

OAB/SP 45.375

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