Contra-ataque

Juiz pode rebater ofensas recebidas em processo

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18 de outubro de 2007, 0h00

O juiz não pode ser punido por rebater ofensas recebidas no exercício da função. A decisão é do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, que rejeitou representação da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo contra juiz que comparou os argumentos de uma defensora pública aos de um “rábula velhaco”.

O corregedor-geral de Justiça paulista, Gilberto Passos de Freitas, recomendou a abertura de processo disciplinar contra o juiz. Mas foi vencido. A maioria dos desembargadores acompanhou o voto do vice-presidente do tribunal, Canguçu de Almeida, para quem não cabe processar o juiz “pelo uso de palavras, quando muito, descorteses”.

Em seu voto, Canguçu afirmou que o juiz, titular de Vara da Infância e Juventude, tinha suas ordens desrespeitadas por defensores públicos nas audiências e foi acusado injustamente de cerceamento de defesa.

De acordo com o desembargador, em diversas ocasiões, os procuradores ajuizaram pedidos de Habeas Corpus contra decisões do juiz, onde afirmavam, injustamente, que ele não respeitou o princípio do contraditório. Canguçu relata que, depois de concordarem com o encerramento da instrução e de afirmar não terem mais provas a produzir, os defensores recorriam da sentença com a alegação de “nulidade decorrente de cerceamento do direito de defesa e do devido processo legal. Acrescentavam, até, estar ocorrendo abuso de poder”.

Para o vice-presidente do TJ paulista, diante disso, é “compreensível, então, até natural, a irritação do juiz em face de tal procedimento, vez que a própria defesa, que com tudo concordara, venha agora atribuir ao magistrado a prática de ilegalidades de existência evidentemente questionável”.

Com exceção do corregedor, o Órgão Especial acolheu o voto de Canguçu de Almeida e entendeu que o juiz não faltou com o dever de urbanidade ao dizer que a atitude da defensora se igualou à de um rábula velhaco. Para os desembargadores, no contexto em que foi proferida tal expressão, como resposta à acusação de que o juiz desrespeitou direitos de menores infratores, não houve falta funcional.

“O magistrado que, ainda que com alguma veemência, reconhecida indignação e até deselegância, rebate conceituação que lhe é dirigida dando-o como autor de arbitrariedade, não merece ser punido”, afirmou o desembargador.

Leia o voto de Canguçu de Almeida

ÓRGÃO ESPECIAL:

Expediente nº 4949/06

REPRESENTANTE: Procuradoria Geral do Estado de São Paulo

REPRESENTADO: Â. M. (Juiz de Direito)

VOTO nº 16.611

Representação para abertura de processo disciplinar – Juiz de Direito que teria, em informações prestadas quando da impetração de habeas corpus, utilizado expressão ofensiva a advogados – Procuradores do Estado que sistematicamente desistiam da produção de outras provas e, mais tarde, em advindo condenação, impetravam habeas corpus imputando ao Juiz a prática de ilegalidades – Comportamento evidentemente malicioso, a justificar a repulsa apresentada pelo magistrado – Retorsão a acusação indevida, feita de forma veemente e até mesmo deselegante, que não caracteriza ofensa ao dever de urbanidade, porque não dissociada do contexto fático em discussão na causa em que proferida – Inteligência do artigo 41 da LOMAN – Representação arquivada.

1. Trata-se de representação apresentada pela Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, contra o Juiz de Direito Dr. A. M., a quem vem imputada a prática de diversos atos que, em tese, poderiam caracterizar infrações disciplinares, postulando, por isso, a instauração do competente processo administrativo, para que, afinal, seja imposta ao magistrado a justa sanção que fizer por merecer.

A solução proposta pelo douto relator, o Excelentíssimo Desembargador o Corregedor Geral da Justiça, depois de recusadas seis das imputações então feitas, porque inconsistentes e por não amparadas pela prova, é no sentido de que seja instaurado processo administrativo, tão somente em razão de suposto tratamento não urbano que o magistrado teria dispensado a Procuradores do Estado, a quem se referira como “rábulas velhacos”, tudo de forma a caracterizar afronta à regra inscrita no inciso IV, do artigo 35 da LOMAN.

Mas, pese, embora o respeito devido ao eminente Desembargador Passos de Freitas, atrevo-me, com toda vênia, a divergir da proposta, trazendo à consideração do Egrégio Órgão Especial solução diversa daquela. Na esteira, aliás, do que já sugeriram, em sessão anterior, os eminentes Desembargadores Ivan Sartori, Pedro Gagliardi e Renato Sartorelli.

Ao fazê-lo, ressalto, inicialmente, que não se pode aqui desvincular a imputação trazida à consideração desta Corte, da própria situação vivenciada pelo magistrado, à frente da Vara de que é titular.


É que há nos autos indicação de que diversas são as audiências ali realizadas, com a presença de inúmeros menores autores de atos infracionais, os quais, no mais das vezes, como não possuem defensores constituídos, são assistidos por Procuradores do Estado, vale dizer, Defensores Públicos, integrantes da carreira cujo chefe assina a representação ora em análise.

O Dr. M. é magistrado reconhecidamente rigoroso na análise da prática dos atos infracionais em que chamado a proferir decisões. E por tal razão, bem como pela severidade com que sanciona os menores que considera autores dos atos que lhes são atribuídos, parece ter angariado alguma antipatia dos defensores que atuam perante a Vara de que é titular, defensores que, anote-se, por seu procedimento, em nada colaboram para um relacionamento mais cortês entre eles e o juiz.

Para uma tal constatação, basta a análise de uma das imputações feitas a Sua Excelência, no sentido de que teria empurrado uma das ilustres defensoras públicas que assistia menor que seria ouvido em audiência, havendo, no entanto, prova segura no sentido de que, feito o pregão, a aludida defensora não permitiu que o menor ingressasse na sala do magistrado, sob a singela justificativa de que com ele ainda estaria a conversar.

Sobre isso, ponha-se em destaque, ressaltou o eminente Corregedor Geral que “A prova produzida converge, sem discrepância, no sentido de que a audiência já havia sido apregoada e que a Dra. Danielle efetivamente estava retendo o adolescente no corredor, local em que com ele mantinha entrevista, que pretendia estender por mais algum tempo”. E retendo indevidamente, digo eu.

Vê-se, portanto, que sequer ordens dadas pelo magistrado para o início da audiência eram acolhidas por alguns dos defensores públicos como bem reconheceu o Corregedor Geral da Justiça, que tratou de pôr em destaque que, já por aqui, a acusação não reunia condição de admissibilidade.

Ademais, foi um expediente de comum utilização por parte dos defensores, o responsável pela ocorrência do incidente que ensejou a única das imputações cuja acolhida é sugerida pelo relator.

Em não poucas ocasiões, depois de concordarem com o encerramento da instrução, logo após a audiência de apresentação e procedida a oitiva do menor, que acabava confessando a autoria do ato infracional, tendo consignado, expressamente, não terem outras provas a produzir, culminavam os defensores por impetrar ordem de “habeas corpus”, uma vez proferida sentença que impunha ao menor alguma medida sócio-educativa, onde alegavam nulidade decorrente de cerceamento do direito de defesa e descumprimento do devido processo legal. Acrescentavam, até, estar ocorrendo abuso de poder por parte da autoridade judiciária, que não realizara provas e não respeitara o contraditório que eles mesmos haviam dispensado…

Compreensível, então, até natural, a irritação do juiz em face de tal procedimento, vez que a própria defesa, que com tudo concordara, vinha agora atribuir ao magistrado a prática de ilegalidades de existência evidentemente questionável.

Na Câmara Especial deste Tribunal de Justiça, da qual sou o presidente e que detém competência para apreciação de questões relativas à infância e juventude. tal expediente, porque claramente esdrúxulo, sempre mereceu repulsa e até algumas manifestações de indignação, dado o caráter nitidamente protelatório da postulação. E as impetrações, por isso, jamais lograram sucesso. Até que o Superior Tribunal de Justiça, sabe-se lá porque, editou Súmula dizendo obrigatória a produção de provas ainda que as partes digam não ter interesse em produzi-las, nem testemunhas a ouvir… A propósito disso, aliás, invoco aqui o testemunho dos eminentes Desembargadores Luiz Tâmbara, Jarbas Mazzoni, Vallim Bellocchi e Ribeiro dos Santos, que também integram a referida Câmara e que, como eu, julgaram inúmeros casos onde a absurda alegação vinha deduzida por defensores que já haviam prescindido da prova, assegurado não terem outras a produzir, mas nem se acanhavam, uma vez julgada a representação, ao impetrarem hábeas corpus argüindo vícios para os quais, se existentes, voluntariamente haviam concorrido. E o faziam atribuindo ao magistrado postura comprometedora do direito de defesa, do devido processo legal e do contraditório.

Foi isso o que ocorreu no caso que ensejou a oferta da presente representação.

Inegável, pois, que o comportamento dos defensores que, no desempenho de suas funções, utilizam-se desse expediente, é passível de crítica e de censura, não se mostrando, por isso, intolerável que o magistrado, injustamente acusado da prática de ilegalidades, reaja com alguma indignação e veemência, quando se vê, imerecidamente, apontado como autor de arbitrariedade ou de abuso de poder.

É em face de um contexto com tais características, Senhores Desembargadores, que devem ser analisadas as informações prestadas pelo magistrado ora representado, o qual, certamente cansado do comportamento nada respeitoso, até desleal, dos Procuradores do Estado que atuavam perante sua Vara, anotou, com compreensível indignação, que tinham eles conduta digna de “rábula velhaco”, bem como que demonstravam falta de caráter, ao assacar inverdades contra sua pessoa.


E sempre lembrando que o magistrado não os classificou como “rábula velhaco”, mas apenas disse que o procedimento dos Procuradores lembrava aquele personagem que antigamente atuava em nossos pretórios, o que impende considerar é que o uso de tal expressão, no contexto em que empregada, nem de longe constituiu a violação ao dever funcional que se pretendeu ter por configurado com sua ocorrência. Não passou de inconseqüente desabafo partido de quem, com justa razão, se sentia imerecidamente conceituado como autor de uma arbitrariedade.

Tenha-se, ainda, em mente, que a expressão “rábula” nada tem de ofensiva, sendo de comum utilização ainda hoje no meio forense, conforme precedente desta Corte que isso já reconheceu, segundo está consignado nos autos do Agravo de Instrumento nº 336.411.5/1-00, julgado pela antiga 7ª Câmara de Direito Público, onde o relator, o eminente Desembargador Torres de Carvalho, pôs em destaque que “trata-se de expressão que, embora não exatamente elogiosa, vem sendo utilizada com alguma freqüência no linguajar jurídico como substituo de ‘advogado antigo’, sem conotação pejorativa”.

Igualmente despida de intento ofensivo, sempre lembradas as razões que a ditaram, parece ter sido o uso da expressão “velhaco”, cujo primeiro significado, nos melhores léxicos nacionais, ao contrário do que restou consignado no voto do douto relator, diz respeito à característica daquele que ludibria de propósito, ou por má índole.

Ora, foi exatamente isso o que aqui praticara a defesa do menor, ao desistir da produção de outras provas, concordar com o pronto julgamento do processo e, ao depois, interpor recurso apontando o magistrado que confiara em tais intentos como desrespeitador da lei e dado à prática de ilegalidades.

Forçoso é concluir, destarte, que as aludidas expressões guardam estrita conotação com tudo o que se passou nos autos em que proferidas, bem como com a própria realidade da Vara em que é titular o magistrado representado. Para tudo concorreram, e de forma significativa, muitos dos signatários da presente representação, com o freqüente desrespeito a ordens judiciais e com a tomada de posições processuais que, mais tarde, vieram utilizar na defesa dos interesses das pessoas que representam, como se constituíssem violações a seus direitos e configurassem episódios de manifesta ilegalidade.

A violação ao dever de urbanidade, para caracterizar a infração funcional alvitrada pela LOMAN, pressupõe a prática de ofensa indubitável, no mais das vezes dissociada dos fatos em discussão na causa em que proferida. Tanto que, segundo consta do diploma legal supra referido “o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir…” (artigo 41).

Bem por isso, a análise da ocorrência de eventuais impropriedades ou excessos de linguagem deve ser feita com redobrada cautela, tendo-se em conta as circunstâncias que ditaram a manifestação conceituada como agressiva. E o magistrado que, ainda que com alguma veemência, reconhecida indignação e até deselegância, rebate conceituação que lhe é dirigida dando-o como autor de arbitrariedade, não merece ser punido.

Convém transcrever, a propósito dessa distinção, interessante lição proferida pelo eminente Ministro Celso de Mello, nos autos da Queixa-Crime nº 501-1/DF, em que Sua Excelência deixou assentado que “o magistrado, no exercício de sua atividade profissional, está sujeito a rígidos preceitos de caráter ético-jurídico que compõem, em seus elementos essenciais, aspectos deontológicos básicos concernentes à prática do próprio ofício jurisdicional”. Para acrescentar, linhas adiante, ao comentar o artigo 41 da LOMAN, que: “A ratio subjacente a esse entendimento decorre da necessidade de proteger os magistrados no exercício regular de sua atividade profissional, afastando – a partir da cláusula de relativa imunidade judiciária que lhes é concedida – a possibilidade de que sofram, mediante injusta intimidação representada pela instauração de procedimentos penais ou civis sem causa legítima, indevida inibição quanto ao pleno desempenho da função jurisdicional. A crítica judiciária, ainda que exteriorizada em termos ásperos e candentes, não se reveste de expressão penal, em tema de crimes contra a honra, quando, manifestada por qualquer magistrado no regular desempenho de sua atividade jurisdicional, vem a ser exercida com a justa finalidade de apontar equívocos ou de censurar condutas processuais reputadas inadmissíveis. Situação registrada na espécie dos autos, em que o magistrado, sem qualquer intuito ofensivo agiu no estrito cumprimento do seu dever de ofício”.

Tudo isso porque – reitere-se – não há confundir rudeza, falta de amabilidade, ou mesmo simples descortesia com o excesso de linguagem que deve ser punível, segundo preceitua nossa Lei Orgânica.

Se o advogado, no desempenho de seu mister, erigido constitucionalmente à condição de indispensável à administração da Justiça, é inviolável por seus atos e manifestações (artigo 133), dispositivo esse complementado pelo Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), que dispõe que “o advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis, qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele” (artigo 7º, § 2º), quer-nos parecer de todo desarrazoado permitir a utilização de veemência, por parte do advogado, na defesa dos interesses de seus clientes e não permitir ao magistrado a mesma veemência, na defesa dos atos judiciais que praticou, da regularidade funcional conferida ao seu procedimento.

Ao Juiz de Direito, segundo penso, no exercício de suas funções e especialmente na defesa de seus atos quando questionados sob o prisma da legalidade, deve ser permitida a mesma veemência, não se lhe podendo atribuir excesso de polidez, ou ausência de completa rispidez, ao assim proceder, em face de censura grave que lhe vem dirigida. Máxime se esta se mostra evidentemente imerecida.

Por tudo isso, Senhores Desembargadores, segundo penso, submeter o magistrado A. M a um processo disciplinar, pelo uso de palavras quando muito descorteses, mas que terão sido aplicadas em retorsão em face de comportamento que muito dista da cortesia, até de lealdade, constitui evidente injustiça.

Essas as razões pelas quais, não vislumbrando a prática de infração disciplinar por parte do magistrado A. M., pelo meu voto, e com a devida vênia do eminente Desembargador relator, fica proposto o arquivamento desta representação, oficiando-se, por fim, ao Conselho Nacional de Justiça, com cópia do presente acórdão, para ciência quanto ao desfecho do presente caso.

Des. Canguçu de Almeida

Vice-Presidente do Tribunal de Justiça

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