Fiel representante

Leia voto de Carlos Britto sobre fidelidade de majoritários

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17 de outubro de 2007, 20h59

O fato do candidato a um cargo majoritário ter menos dependência do partido do que aquele que disputa uma eleição proporcional não o torna um independente. Como o representante eleito a um cargo público media sua representação eleitoral pelo partido político, ele renuncia ao posto ao deixar a legenda pela qual se elegeu. Este é o fundamento do voto do ministro Carlos Ayres Britto, do Tribunal Superior Eleitoral, em Consulta que entendeu ser do partido e não dos eleitos os mandatos de ocupantes de cargos majoritários.

Por unanimidade, os outros ministros seguiram voto do relator em julgamento que, como no caso dos eleitos proporcionalmente, selou a fidelidade partidária também do presidente da República, governadores, senadores e prefeitos na Justiça Eleitoral. O STF já reconheceu que perdem o mandato se deixarem o partido pelo qual foram eleitos os ocupantes de cargos proporcionais: deputados federais e estaduais e vereadores.

Ayres Britto iniciou o seu voto com detalhado estudo sobre a figura constitucional do partido político. “A vontade objetiva da Constituição faz dos partidos políticos um mecanismo elementar do sistema representativo em que se traduz a nossa democracia do tipo indireto”, disse o ministro.

Este mecanismo elementar é quem faz a mediação do eleito e eleitor em uma relação tridimensional. Como nos entendimentos anteriores sobre a questão, esta relação obriga aquele que pleiteia a um cargo a se filiar a um partido. “Ninguém chega ao poder estatal de caráter eletivo-popular sem a formal participação de uma dada agremiação política. O que traduz a formação de um vínculo necessário entre os partidos políticos e o nosso regime representativo”, anotou Ayres Britto.

Deste modo, “essa obrigatoriedade de filiação partidária só pode corresponder à proibição de candidatura avulsa. Candidatura zumbi ou exclusivamente pessoal, pois a intercalação partidária se faz em caráter absoluto ou sem a menor exceção”, argumentou o ministro.

Além disso, ao se candidatar por um partido, o político recebe dele um atestado de bons antecedentes, pureza de propósitos, apego a regras de disciplina e lealdade associativa. É através do partido que se estabelece o contrato eleitor-eleito. Assim, sair da legenda, que lhe deu este aval, o mandatário renuncia tacitamente ao cargo já que “o dever de não desocupar a cadeira em que se foi eleitoralmente assentado é a primeira das condições de leal exercício de um mandato que não é senão uma binária representação”.

Apesar de ser um sistema de eleição diferente ao do proporcional, o majoritário segue as mesmas regras do jogo político eleitoral dos deputados e vereadores. “Tenho que todos os exercentes de mandato eletivo federal (com seus equivalentes nas pessoas federadas periféricas) estão vinculados a um modelo de regime representativo que faz do povo e dos partidos políticos uma fonte de legitimação eleitoral e um locus de embocadura funcional. Tudo geminadamente, como verdadeiros irmãos siameses. Donde o instituto da representatividade binária, incompatível com a tese da titularidade do mandato como um patrimônio individual ou propriedade particular”, afirmou Ayres Britto.

O ministro reconheceu o argumento de que o eleito para a presidência e Senado participa de uma disputa “homem-a-homem, candidato versus candidato”. Nestes casos, o prestígio individual tende a suplantar o partidário. No entanto, “essa dependência eleitoral menor do partido não se confunde com independência. Não significa desideologia partidária ou coligacional. Desrepresentação em toda a linha, do povo ao partido. Liberdade para se metamorfosear em ave de arribação, pouco importando se faz inverno ou verão. Seria um salto interpretativo chapadamente acrobático, entendo, sem nenhuma rede de proteção constitucional”, disse.

O voto do relator foi acompanhado a unanimidade. “A valorização do candidato em detrimento do partido facilita a migração muitas vezes com finalidade meramente pessoal”, afirmou o ministro José Delgado em seu voto. O ministro Cezar Peluso defendeu que a troca de partido do eleito é um ato incompatível com a subsistência do mandato. Os ministros responderam à consulta do deputado federal Nilson Mourão (PT-AC).

O deputado perguntou se os partidos têm direito sobre o mandato do parlamentar que, eleito no sistema majoritário, mudou de legenda ou pediu cancelamento de filiação. Em março deste ano o TSE entendeu que mandatos obtidos no sistema eleitoral proporcional — deputados e vereadores — são dos partidos e coligações, e não dos eleitos.


Este posicionamento do TSE foi confirmado pelo Supremo Tribunal Federal há quase duas semanas. Por oito votos a três, o STF decidiu que os mandatos pertencem aos partidos e que os infiéis que trocaram de legendas depois do dia 27 de março poderiam perder os mandatos. Porém, definiu que cabe aos partidos pedirem o mandato de volta perante o TSE. A Corte Eleitoral ainda precisa definir os contornos da fidelidade partidária e o alcance da decisão sobre os infiéis.

De acordo com a decisão do Supremo, relativa a 23 mandatos, apenas a deputada Jusmari de Oliveira (PR-BA) corre o risco de perder o cargo. Ela foi a única dentre os 23 infiéis que mudou de partido depois de 27 de março.

Leia voto

CONSULTA Nº 1.407 – CLASSE 5ª – DISTRITO FEDERAL (Brasília)

Relator: MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO

CONSULENTE: NILSON MOURÃO, Deputado Federal

RELATÓRIO

Trata-se de consulta eleitoral, formulada pelo deputado federal Nilson Mourão, eleito pelo Estado do Acre e sob a legenda do Partido dos Trabalhadores (PT). Consulta que nos é feita por esta forma:

“(…) Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral majoritário, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?”

2. Provocada sobre o tema, a Assessoria Especial da Presidência sugeriu a este nosso Tribunal Superior Eleitoral que respondesse afirmativamente à consulta. Eis a sugestão: “o partido político será sempre o primeiro e último detentor dos mandatos eletivos, uma vez que não são estes propriedades dos que os auferem” (fls. 7-16).

3. É o relatório.

4. Passo ao voto. Fazendo-o, tenho que a presente consulta exige um detido exame no modo constitucional de ser dessa figura que atende pelo nome de “partido político”. Seja o partido político de forma isolada, seja mediante “coligações eleitorais” ou “blocos parlamentares”, pois o fato é a que a nossa Lei Maior contém nada menos que 20 expressos dispositivos sobre a complexa realidade partidária do País. Um desses dispositivos é o que prevê, justamente, a formação de blocos para uma atuação parlamentar concertada (é o § 1º do art. 58); outro, é o que se refere à formação de “coligações eleitorais” (§ 1º do art. 17); um terceiro, enfim, é o que menciona a figura dos “líderes partidários” (art. 140).

5. Acrescento: além dessa pesquisa para o conhecimento do modo constitucional de ser dos partidos, suas coalizões e liderança, é preciso revelar as funções que lhes são próprias. Isto para se ver até que ponto a Magna Carta Federal faz do conjunto das instituições partidárias uma necessária peça da requintada engrenagem do nosso regime ou sistema representativo. Regime ou sistema representativo que já é a preponderante dimensão da democracia política brasileira.


6. Se afirmo ser o sistema representativo a preponderante dimensão da democracia política brasileira, é em atenção aos seguintes dizeres iniciais do parágrafo único do art. 1º da nossa Lei Maior: “Todo o poder emana do poder, que o exerce por meio de representantes eleitos (…)”. O povo, então, posicionado como fonte primaz do poder político e a ser representado por aqueles a quem elege para o exercício dos Poderes Executivo e Legislativo; pois o certo é que esse poder que emana do povo e que por ele é exercido mediante representação (regime representativo) é o poder de natureza política. Vale dizer, poder eminentemente governativo, partilhado, no plano da União, entre os membros do Congresso Nacional e do Poder Executivo Federal.

7. Por um modo diferente de dizer a mesma coisa, o que importa saber é se a vontade objetiva da Constituição faz dos partidos políticos um mecanismo elementar do sistema representativo em que se traduz a nossa democracia do tipo indireto (com toda procedência normada no título constitucional de nº I, que porta o altissonante nome “Dos Princípios Fundamentais”). Logo, o que importa saber é se tal vontade constitucional objetiva confere ou não confere posição de centralidade aos grêmios partidários, em matéria de regime representativo ou de democracia indireta. Se a eles incumbe ou não incumbe, sozinhos, aliançadamente e ainda por suas lideranças, uma protagonização de primeira linha no processo político-eleitoral e de representatividade popular[1].

8. Assim indicados os pressupostos de elaboração do presente voto, passo a lembrar que os “partidos políticos” (forma plural que se lê na cabeça do art. 17 da Constituição Federal) são pessoas jurídicas de Direito Privado. Isso porque adquirem sua personalidade “na forma da lei civil”, embora tenham que registrar os seus estatutos “no Tribunal Superior Eleitoral” (§ 2º desse mesmo artigo constitucional de nº 17). Mas em que tipo de pessoa jurídico-privada os partidos políticos se constituem?

9. Resposta: assim como todo agente público é gente antes de ser agente, o partido político é associação antes de ser partido. Associação a que a nossa Lei Maior confere tratamento em apartado, especializado mesmo (já veremos), por cumprir funções transcendentes daquelas que são próprias das pessoas jurídicas meramente privadas. Lógico! Não fosse por essa transcendência funcional, os partidos políticos permaneceriam na vala comum das entidades associativas. Referidos tão-só de forma genérica ou de cambulhada nos incisos de nºs. XVII a XXI do art. 5º.

10. Pois bem, enquanto modalidade de associação, todo partido político é constituído por uma reunião formal de pessoas do mundo do ser para compor uma outra realidade, abstrata ou ideal, chamada de “pessoa jurídica”. Pessoa jurídica ou pessoa plural. Coletiva. Não de acordo com a lista que se lê nos incisos de I a V do art. 44 do Código Civil brasileiro, porém como expressão do direito individual que a nossa Constituição vocaliza por esta forma: “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter militar” (inciso VII do art. 5º).

11. Com mais exatidão, esse direito subjetivo-constitucional é do tipo individual, mas exercitável por modo necessariamente coletivo; ou seja, “pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos”, segundo – agora sim – definição que se lê na cabeça do art. 53 do nosso Código Civil (lei federal 10.406, de 10 de janeiro de 2002). Isto porque “o substrato básico” (Celso Antônio Bandeira de Mello) ou o substrato primário sobre que repousa toda associação é, logicamente, uma pluralidade orgânica de pessoas. Não um serviço ou atividade juridicamente personalizada (caso das autarquias), menos ainda a personificação normativa de um patrimônio (caso das fundações)[2].


12. Sem embargo dessa natureza primariamente associativa, a categoria dos partidos políticos principiou a ganhar especificidade constitucional com a primeira das duas alíneas do inciso LXX do art. 5º da Constituição. Isto a propósito da habilitação processual ativa de todos eles em tema de mandado de segurança coletivo. Habilitação processual que voltou a ser consagrada em duas oportunidades: uma, administrativamente, perante o Tribunal de Contas de União (§ 2º do art. 74); outra, judicialmente, perante o Supremo Tribunal Federal (inciso VIII do art. 103). Sendo que, tanto em sede de mandado de segurança coletivo quanto de ação direta de inconstitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade, é exigível deles, partidos políticos, representação no Congresso Nacional; quer dizer, os parlamentares a representar os seus partidos, ou, no que dá no mesmo, os partidos a se fazer representar pelos parlamentares eleitos sob sua bandeira. Porém com este complemento de idéia, já denotativa de uma especial relevância constitucional dos grêmios partidários: cada qual deles tanto pode agir por motivação meramente privada ou corporativa (defendendo, estatutariamente, interesses próprios e dos seus filiados) quanto por impulso altruístico ou rigorosamente institucional (velando, então, programaticamente, por interesses e valores que já são de índole societária). É o que se tem chamado de habilitação processual ativa do tipo universal; a mesma, por sinal, que se reconhece ao Procurador Geral da República e ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a teor das seguintes decisões do Supremo Tribunal Federal, entre muitas outras: ADI 1.096-MC, Rel. Min. Celso de Mello, e ADI 1.963-MC, Rel. Min. Maurício Corrêa.

13. Por que habilitação processual ativa do tipo universal? Pela clara razão de que o lado institucional de todo partido político é uma antecipada credencial jurídica para velar pelos assuntos da pólis. Pelos negócios de governo e de Administração Pública. Daí porque dissemos, pessoalmente, em voto proferido na ADI 3.059-MC:

“(…) partido político existe para manter com o Poder Governamental – também apropriadamente chamado de Poder Político – um enlace tão umbilical quanto insuscetível de desfazimento. Pois começa com a própria forma de conceber a estruturação de tal Poder e prossegue, ora com a tentativa eleitoral de assumi-lo, ora com o acompanhamento crítico do respectivo desempenho. Logo, enquanto houver governo da pólis haverá partido político (tirante as hipóteses do mais radical holocausto da própria Democracia). O que já significa, no plano das ações diretas de inconstitucionalidade, uma habilitação processual cujo núcleo deôntico se mantém logicamente aberto. Não aberto no sentido negativo de que não se exige o requisito da pertinência temática sempre que a autoria do feito couber a organização político-partidária. Mas aberto no sentido positivo de que tal pertinência já existe por antecipação. Já se presume, então, como corolário do regime jurídico-constitucional de todo partido político brasileiro com representação no Congresso Nacional. É repetir: pertinência material adrede assegurada por essa filha unigênita do Poder Constituinte, que é a Lei Maior de 1988, ao fazer das instituições político-partidárias pessoas jurídicas de permanente vitalização do pluralismo político. Entendido o pluralismo político, já do ângulo dos cidadãos, como o direito de se organizarem em pessoas jurídico-eleitorais diferenciadas para conceber por um modo peculiar o Governo da pólis. Com seus naturais desdobramentos quanto à forma de investidura e sua duração, exercício e acompanhamento crítico desse Poder de abrangência territorial e pessoal máxima. Logo, e em última análise, direito à convivência político-ideológica dos contrários, que é um dos mais visíveis conteúdos da Democracia” (pp. 3 e 4).

14. Dou seqüência ao raciocínio para aditar que, a essa função de sujeito processual ativo que é ínsita aos partidos políticos, a Constituição ajuntou a de intermediário entre o corpo de eleitores de uma dada circunscrição e todo e qualquer candidato a cargo de representação popular. O partido enquanto necessária ponte. Elo imprescindível na corrente que vai do eleitor ao eleito. É como está no inciso V do § 3º do art. 14, que torna “a filiação partidária” uma das explícitas “condições de elegibilidade, na forma da lei”.

15. Ora bem, a essa obrigatoriedade de filiação partidária só pode corresponder à proibição de candidatura avulsa. Candidatura zumbi ou exclusivamente pessoal, pois a intercalação partidária se faz em caráter absoluto ou sem a menor exceção. O que revela a inserção dos partidos políticos na compostura e no funcionamento do sistema representativo, na medida em que somente eles é que podem selecionar e emprestar suas legendas para todo e qualquer candidato a posto político-eletivo. Candidatos deles, partidos (devido a que ninguém em particular é candidato de si mesmo), para o que a Constituição lhes concede o direito subjetivo de “autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária” (§ 1º do art. 17). Autonomia que é reforçada com a regra impeditiva da edição de medidas provisórias sobre partidos políticos (alínea a do inciso I do § 1º do art. 62) e com o desfrute do direito subjetivo “a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei” (§ 2º). Tendo por contrapartida o dever de “prestação de contas à Justiça Eleitoral” e a “proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes” (aqui, inciso II do art. 17, e, ali, inciso III desse mesmo artigo).


16. Dizendo as coisas por modo reverso, ninguém chega ao poder estatal de caráter eletivo-popular sem a formal participação de uma dada agremiação política. O que traduz a formação de um vínculo necessário entre os partidos políticos e o nosso regime representativo, a ponto de se poder afirmar que esse regime é antes de tudo partidário. Por isso que se fala, em todo o mundo ocidental civilizado, de democracia partidária, como ressai dos escritos de Norberto Bobbio e Maurice Duverger. Este último, por sinal, apropriadamente lembrado no magistral voto que exarou o ministro César Ásfor Rocha nos autos da referida consulta (a nº 1.398-DF). Voto assim parcialmente redigido:

“É da maior relevância assinalar que os Partidos Políticos têm no Brasil status de entidade constitucional (art. 17 da CF), de forma que se pode falar, rememorando a lição de Maurice Duverger (As Modernas Tecnodemocracias, tradução de Natanael Caixeiro, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978), que as modernas democracias de certa forma secundarizam, em benefício dos Partidos Políticos, a participação popular direta; na verdade, ainda segundo esse autor, os Partidos Políticos adquiriram a qualidade de autênticos protagonistas da democracia representativa, não se encontrando, no mundo ocidental, nenhum sistema político que prescinda da sua intermediação, sendo excepcional e mesmo até exótica a candidatura individual a cargo eletivo fora do abrigo de um Partido Político” (p. 3).

17. Com efeito, a âmbiência normativo-constitucional aqui retratada nos autoriza a inferir que:

I – se o regime representativo brasileiro decola da regra constitucional de que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos (…)” (parágrafo único do art. 1º da Constituição), esse poder que tem no povo a sua única fonte é o de natureza, justamente, político-representativa; isto é, poder de se investir, após candidatura partidária vitoriosa, nos postos de comando político do nosso País, mediante os quais se constitui e se exercita a democracia indireta ou representativa (por oposição à democracia direta ou participativa, enunciada pela parte final desse mesmo parágrafo único do art. 1º e também pelo art. 14, caput, da Constituição);

II – se a soberania popular é o primeiro dos “fundamentos” da República Federativa do Brasil (inciso I do art. 1º), e se tal soberania é a que se exerce “pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos” (parte introdutória do art. 14), nada disso é operacionalizado senão pela sobredita intermediação partidária. Vale dizer, o esquema ou o arranjo político-partidário nacional é via de obrigatório trânsito pelos exercentes da soberania popular para se chegar até aos candidatos eleitos. Soberania popular, partidos políticos e candidatos eleitos a se atraírem magneticamente ou no curso de uma necessária relação “de implicação e polaridade”, como dizia Miguel Reale para caracterizar as relações de complementaridade ou de mútua causalidade. Aqui, nos autos desta consulta, relação trina de causa e efeito.

18. Tal caminhar entrelaçado com a soberania popular e candidatos é explicativo, a seu turno, do “caráter nacional” dos partidos políticos e da liberdade de sua “criação, fusão, incorporação e extinção (…), resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana (…)” e “vedada a utilização de organização paramilitar” (caput e inciso I do art. 17 da nossa Lei Fundamental, combinadamente com o § 4º desse artigo). É que todo grêmio partidário se define como segmento, facção, parte, corrente, enfim, de convicção público-ideológica ou de filosofia política. Centro subjetivado de opiniões convergentes quanto ao modo de conceber e praticar o governo da pólis brasileira, esse caracterizado espaço de irrupção contínua das relações entre os nossos governantes e governados[3]. Por conseguinte, a cada partido é franqueado atuar em todas as circunscrições eleitorais brasileiras para divulgar uma otimizada fórmula de engendrar e operacionalizar o governo do nosso País, e, assim, arregimentar simpatizantes, associados e candidatos. Estou a dizer: cada partido político é predisposto a laborar no campo da qualificação informativa dos eleitores-soberanos, nesse plano da filosofia de governo ou “pluralismo político”, para a formação de blocos de eleitos com perfil ideológico definido. Fórmula racional de se fazer política, pelo antecipado conhecimento das linhas de atuação de governo e de oposição, com as respectivas cobranças de fidelidade programático-partidária e de campanha eleitoral (daí a parte final do § 1º do art. 17, sobre a consignação, em estatuto, de “normas de disciplina e fidelidade partidária”). Signo de uma autenticidade representativa e de uma lealdade que têm tudo a ver com legitimação para o desempenho dos cargos públicos e superior qualidade de vida política para o Brasil.


19. Já em termos rigorosamente objetivos ou de ideação programática, a encarecida intercalação partidária atua no próprio interior dos fundamentos da República Federativa do Brasil (incisos de I a V do art. 1º da Constituição). É que o primeiro desses fundamentos, que é a soberania popular, chega por modo facilitado ao último deles, que é o pluralismo político, por obra e graça de uma sistemática divulgação dos conteúdos programáticos ou doutrinários de cada partido. Visto que todo partido político intenta alcançar o Poder pela captação do voto popular, é certo, porém precedida de uma vis-atrativa que se faz pela divulgação de determinadas idéias quanto ao melhor modo de se estruturar e funcionalizar o governo da pólis. Idéias-força, em verdade, na acepção de que superadoras de uma opinião apenas esporádica, anódina, fragmentária. Quero dizer: idéias-força que se qualificam pela sua mais elaborada consistência mental e pelo seu professar por um número de adeptos já constitutivos de verdadeiro grupo ou corrente ideológica. Por isso que titular (tal grupamento social orgânico) “do direito de influir, na proporção de sua força, no governo do país” (Gilberto Amado, referido às fls. 15 do mencionado voto do ministro Cezar Peluso, a propósito do sistema proporcional de eleição).

20. As coisas se encaixam. É que a pré-falada dimensão institucional ou altruística dos partidos políticos advém, inicialmente, do lógico imbricamento de todos eles com o “pluralismo político”. Isto por ser o pluralismo político o princípio fundamental que, para ser colocado em prática por modo sistemático, organizado, racional, passa pelos aparatos personativos que são, justamente, os partidos políticos. Donde o princípio constitucional do “pluripartidarismo” (caput do art. 17 da Constituição) como densificação daquele específico fundamento, a ponto de se poder ajuizar que o pluripartidarismo existe porque o pluralismo político existe. Este último a ser concentrada e incessantemente servido por aquele, visto que uma das razões do constitucional acesso gratuito dos partidos a rádio e televisão (§ 3º do art. 17) é lhes possibilitar, inicialmente, propaganda institucional junto ao público em geral. Depois é que eles, partidos políticos, sobretudo valendo-se de recursos do fundo partidário e de um desonerado acesso à mídia radiodifusora sonora e de sons e imagens, se põem a trabalhar a quatro mãos com cada qual dos seus candidatos; e já numa fase pós-eleitoral, perfilam-se ao lado da sua bancada de eleitos e respectivas lideranças (“lideranças partidárias”, disse a Constituição, para encarecer a necessidade da organizada presença dos partidos já no âmbito de cada uma das Casas do Congresso Nacional).

21. Outra causa da dimensão institucional dos partidos políticos, percebe-se, reside na citada intermediação de caráter subjetivo; ou seja, os partidos e suas eventuais coligações a se colocar de permeio entre os eleitores e os candidatados à ocupação de cargo de provimento eletivo. Permeio ou intercalação que se materializa pela assunção de condutas deste naipe, assumidas indistintamente para a disputa de cargos sob o sistema proporcional ou sob o princípio majoritário de eleição: filiação partidária; escolha dos candidatos em convenção; registro das candidaturas em unidade da Justiça Eleitoral; identificação dos concorrentes pela legenda do partido; celebração de alianças; financiamento da campanha com recursos do fundo partidário; utilização dos espaços de rádio e de televisão para o fim de propaganda individual; endosso ou aval ético-ideológico-profissional de cada candidato assim partidariamente disputante da preferência do eleitorado, pois se candidatar por um partido ou coligação é deles receber uma espécie de atestado de bons antecedentes, pureza de propósitos, apego a regras de disciplina e lealdade associativa, sólido compromisso com idéias (o perfil ideológico de cada candidato se conhece é pelo perfil ideológico do seu partido). Idéias constitutivas de uma doutrina que se acalenta como verdadeira razão de viver, a tornar impensável o seu arbitrário ou desmotivado abandono após a unção pelas urnas. Tão impensável esse abandono por eles, candidatos já eleitos, quanto pelos partidos mesmos; que não podem desertar nem do seu ideário nem da cobrança de fidelidade por parte daqueles a quem ajudaram eleger. Afinal, avalista é assim mesmo: tem que velar pelo adimplemento dos compromissos assumidos pela pessoa a quem somente avalizou por lhe parecer digna de confiança.

22. Numa primeira síntese, é em virtude de toda essa laboriosa engenharia constitucional que se busca tonificar o pluralismo político e assim elevar os padrões da representatividade popular em nosso País. Os partidos políticos a ocupar uma posição de nítida liderança no processo político-eletivo, desde a filiação à escolha dos candidatos em convenção, para desaguar na fiscalização dos eleitos e no co-desempenho dos cargos assim eletivamente conquistados. Espécie de ímã e de bússola para simpatizantes, filiados, candidatos, eleitores e eleitos. Logo, cada agremiação encarnando o civilizado apogeu da institucionalidade, do coletivo, do estatutário e do programático, a patentear o reconhecimento da posição de centralidade constitucional de todos eles, grêmios partidários. Seja qual for o cargo eleitoralmente disputado e obtido. Seja qual for o “sistema” ou o “princípio” eleitoral de votação (na linguagem da Constituição, “sistema proporcional” e “princípio majoritário”, o primeiro a figurar no art. 45, e, o segundo, no art. 46).


23. Passo, agora, à indicação de mais uma função constitucional-partidária. A de intercalação, acabamos de ver, é a que se dá no curso de um determinado período eleitoral. Momento que antecede ao exercício desse ou daquele cargo de investidura eletiva. Já a de natureza processual, é a que transcorre em fase posterior à eleição e no pressuposto da vitória de pelo menos um representante partidário (explicado que somente partido político com representação no Congresso Nacional é que pode impetrar mandado de segurança coletivo e propor ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade e argüições de descumprimento de preceito fundamental). Mesmo pressuposto, aliás, da terceira função agora apontada: a do “funcionamento parlamentar de acordo com a lei” (inciso IV do art. 17, negritos à parte). Corresponde a dizer: trata-se de uma terceira função, posterior ao momento eleitoral e que também é desempenhada a partir de pelo menos um deputado ou senador eleito. Os partidos a deter o direito de acompanhar e até de coordenar o desempenho dos seus representantes, para o que escolhem seus líderes (referidos no art. 140) e ficam autorizados a celebrar acordos para a formação de blocos (§ 1º do art. 58). De parelha com o uso das competências que a Magna Carta de logo lhes conferiu: propor a abertura de processo de perda de mandato (§§ 2º. e 3º. do art. 55), requerer a sustação do andamento de ações penais da competência originária do Supremo Tribunal Federal (§ 3º. do art. 53), participar, proporcionalmente às respectivas bancadas, tanto da constituição das Mesas legislativas quanto das comissões parlamentares, inclusive durante o recesso de todo o Poder Legislativo (§§ 1º. e 3º. do art. 58).

24. É o clímax da mencionada relação tripartite de interesses e valores (partido-eleitor-candidato), já agora transposta para a atuação parlamentar de quantos conseguirem êxito na final apuração dos votos populares. Atuação parlamentar que também se projeta sobre os exercentes do Poder Executivo e o funcionamento de toda a Administração Pública (direta e indireta), seja para manifestar apoio, seja para vocalizar contestação. É que ao Poder Legislativo tanto cabe legislar – o que faz, o mais das vezes, com a participação do Chefe do Poder Executivo (art. 48 da Constituição) – como “fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas” os atos desse mesmo Poder Executivo, “incluídos os da administração indireta” (inciso X do artigo constitucional de nº 49, ao lado de outras competências e atribuições de efeitos concretos).

25. É o quadro normativo que me basta para fazer as seguintes e decisivas perguntas, na linha da presente consulta: uma eventual e desmotivada desfiliação partidária, ora por desistência pura e simples de se permanecer associado, ora por transferência para uma outra unidade partidária, é opção que implica auto-desqualificaçao para a titularidade do cargo? Sabido que mandato é representação? Não presentação? Um agir em nome de outrem, que, no caso, tanto é o povo quanto o partido sob cuja legenda se deu a eleição? Não apenas um ou outro, alternativamente, mas um e outro simultaneamente? Por todo o tempo de duração do mandato, então?

26. Recolocando as perguntas, a partir da primeira hipótese, que é a de desligamento puro e simples do partido. Pode o eleito, em tal conjectura, mutilar o mandato e torná-lo um instrumento de representação pela metade? O até então representante do partido a fazer o representado decair dessa condição e unilateralmente dizer que, doravante, só lhe interessa representar diretamente o povo? Inaugurando, por essa forma voluntarista, um relacionamento político não mais institucional, não mais programático, não mais estatutário? Livre, leve e solto para somente ao povo dar satisfações quanto ao seu modo de atuar e respectivas motivações? Alterando, por conseguinte, em pleno desenrolar do jogo político-partidário, as respectivas regras e a própria configuração ideológica do voto popular?

27. Já na pressuposição de mudança de partido “transfugismo”, para Victor Nunes Leal, pergunto: é dado ao representante passar a representar uma entidade sob cuja bandeira ideológica deixou de hastear perante o povo, quando em campanha pela captação do voto? Bandeira ideológica muitas vezes criticada como encarnação do próprio mal, nas refregas em que se dá toda campanha eleitoral? Um novo partido por cuja convenção o trânsfuga não foi indicado nem sob cuja legenda obteve registro eleitoral como candidato? Partido que não investiu em sua pessoal eleição e ao lado do qual não se apresentou como detentor de uma história de pensamento e luta em comum? Partido que para crescer quantitativamente em sua representação impõe ao do eleito em debandada um correspondente desfalque? Alimentando-se da esqualidez do outro, de maneira a alterar o próprio resultado eleitoral-partidário das urnas? Forcejando, também aqui, por inverter um quadro ideologicamente definido nas pranchetas do voto popular?


29. Minha resposta é rotundamente negativa. O dever de não desocupar a cadeira em que se foi eleitoralmente assentado é a primeira das condições de leal exercício de um mandato que não é senão uma binária representação (é a Constituição que fala assim, com todas as letras, conforme vimos da citação do parágrafo único do art. 1º e da mencionada alínea a do inciso LXX do art. 5º, combinadamente com os §§ 2º e 3º do art. 55, mais o inciso VIII do art. 103). O eleito a compor com o seu partido e com o povo uma relação jurídica de inerência com o regime representativo brasileiro. Relação tricotômica de que inicialmente participou quando ainda candidato, de sorte a já não poder desunir o que a Constituição uniu. Como na liturgia católica do casamento.

30. Esta nossa conclusão ganha em robustez se voltarmos à afirmativa de ser o partido político, antes de tudo, uma pessoa jurídica do tipo associativo. Como tal, a ele se aplica a regra de que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado” (inciso XX do art. 5º). Do que decorre a licitude da desvinculação partidária, seja qual for a base de sua motivação. Sem que isto signifique, entretanto, prosseguir no exercício do mandato popular, que a tanto se opõe o sistema de comandos constitucionais em torno de um regime representativo que é eminentemente partidário, conforme visto. Até porque mandato é representação e representação é função. Quer dizer, “existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las” (Celso Antônio Bandeira de Mello, em “Curso de Direito Administrativo”, 23ª edição, Malheiros Editores, p. 68, agosto de 2007). Donde a serena dedução de que, ao se demitir do dever de servir ao partido pelo qual foi eleito, o demissionário incide em renúncia tácita de mandato. Renúncia lógica. Renúncia auto-evidente, porque a relação tripartite dos interesses, compromissos e valores que permeiam a disputa e o exercício do mandato popular é tão elementarmente expressão do regime representativo que não pode ser rompida assim discricionariamente, assim unilateralmente, assim caprichosamente pelo mandatário popular e partidário. De acordo, aliás, com recente e majoritária decisão que o Supremo Tribunal Federal exarou nos mandados de segurança nºs. 26.602, 26.603 e 26.604, sessões plenárias dos dias 3 e 4 do fluente mês de outubro).

31. Foi precisamente no curso desse histórico julgamento plenário que perguntei e em seqüência respondi:

“(…) dentre esses direitos que o ex-filiado não leva pra casa, já não carrega a tiracolo como se fosse a própria roupa do corpo ou uma bolsa de moedas, está o mandato parlamentar?

“Uma primeira resposta: se considerarmos que o mandato foi obtido em virtude de um obrigatório vínculo jurídico-partidário, a desfiliação não pode deixar de implicar uma perda do mandato. Perda, não como castigo ou sanção, visto que nenhum ato ilícito foi praticado. Porém como expressão de renúncia tácita. Um abrir mão da continuidade do exercício do mandato. Como sucederia com quem deixasse a condição de sócio de qualquer outra entidade da espécie associativa, ainda que estivesse a exercer cargo de direção. O apeiamento de ambas as condições seria automático”.

32. Na mesma oportunidade, ajuntei:

“Sucede que essa voluntária desfiliação, quando inteiramente discricionária ou sem nenhuma outra justificativa que não seja o puro querer subjetivo do até então associado, é uma opção que tem suas conseqüências. As conseqüências lógicas da escusa de deveres e do exercício de direitos que tenham a sua única razão de ser na permanência mesma da filiação. Estou a dizer: a desfiliação é ato voluntário que, uma vez formalizado, aparta o desfiliado do grêmio a que pertencia. Corta-lhe o cordão umbilical partidário. Deixando ele, ex-associado, de cumprir os deveres e exercer os direitos que eram próprios da filiação.

“Esse bater em retirada, emanação direta de uma constitucional autonomia de vontade, é direito potestativo que opera pelo automático desligamento partidário do parlamentar. O desligamento em si como o próprio objeto do direito subjetivo. Mas de sorte a reinvestir o partido, também por modo automático, na inteireza da sua composição numérico-parlamentar. Na integridade de sua bancada, tal como ressaída, com toda legitimidade, da pia batismal do voto popular. Recomposição que se dá pela convocação de quem já diplomado como primeiro suplente do partido ou coligação, conforme o caso. Pois somente assim é que se restaura a pureza de uma relação de direito que tanto faz o candidato depender do partido, no período de registro eleitoral e votação popular, quanto o partido depender do candidato já eleito, na subseqüente fase de atuação parlamentar de um e de outro. Despontando claro o raciocínio de que, progressivamente abandonado pelos seus eleitos, o partido se expõe ao risco mortal de zerar seus representantes legislativos e aí já não ter como exercitar o seu direito subjetivo a um funcionamento parlamentar. Nem perante o Parlamento mesmo, nem perante o Poder Judiciário, para o manejo das conhecidas ações de controle concentrado de constitucionalidade (ADIN’s, ADC’s, ADPF’s)[4]. E se falo do parlamentar como representante do partido – e não somente do povo −, é porque a Magna Lei assim o diz, com todas as letras, nos §§ 2º e 3º do art. 55, tanto quanto no inciso VIII do art. 103.


“Acresce que o § 1º. do mesmo art. 17 da Lei Fundamental remete para os estatutos de cada grêmio político as “normas de disciplina e fidelidade partidária”. Isto, naturalmente, em prol do partido e em desfavor do filiado. Saltando aos olhos que a infidelidade máxima é alguém abandonar o partido após a investidura no mandato parlamentar. Daí a exegese da presunção de renúncia ao respectivo exercício, somente incabível se na própria Constituição Federal se preservasse, às expressas, a mantença naquela investidura. Como fez – isto sim – com as hipóteses de que trata o art. 56, todas elas no pressuposto do não-cometimento de infração (sabido que as normas veiculadas pelos incisos de I a VI do art. 55 pressupõem ilicitude de conduta parlamentar, que não é o caso dos autos)”.

33. É neste fluxo de idéias que vocalizo uma segunda síntese: todas as três comentadas funções (a processual, a de intermediação e a parlamentar) confirmam o regime da mais entranhada inserção dos partidos políticos no espectro constitucional do sistema representativo brasileiro. Sistema, então, que adiciona um ingrediente partidário à soberania do voto popular e ao poder-dever da representação que assiste a todo e qualquer detentor de mandato eletivo. Repito: sistema que adiciona um ingrediente partidário à soberania do voto popular e ao poder-dever da representação que assiste a todo e qualquer detentor de mandato eletivo.

34. Tal ingrediente partidário não desconfirma que todo o poder emana do povo, que se faz representar por aqueles a quem elegeu (parágrafo único do art. 1º da Constituição). Mas implica o reconhecimento de que: a) a soberania do voto popular é exercitada para sufragar candidatos-partidários, e não candidatos avulsos; b) os candidatos-partidários, eventualmente eleitos, se investem em cargos de representação binariamente popular e partidária mesma. Por conseguinte, o eleitor-soberano vota no candidato e no seu partido (isoladamente, ou em coligação, conforme repetidamente anotado), para instaurar uma futura relação de representação que permaneça tridimensional; quer dizer, o mandato que se ganhou por modo popular e partidário é de ser exercido como expressão de uma representatividade igualmente popular e partidária. Com o que se atende ao próprio conceito de soberania como o grau máximo do poder político (soberania vem de super omnia, a significar o que está acima de tudo e acima de todos).

35. É assim com a participação orgânica ou sinérgica das agremiações partidárias que a soberania popular brasileira decide, eleitoralmente, a cada quatro anos (tempo de uma legislatura e do mandato das chefias executivas, segundo o parágrafo único do art. 44 e o art. 82 da Constituição) − decide a cada quatro anos, dizíamos, sob cujo esquadro político ideológico o País vai viver. Esquadro que se impõe aos Poderes eminentemente políticos da nossa República Federativa, que são os chefes do Poder Executivo e os parlamentares em geral; seja porque os primeiros se constituem nas figuras centrais de todo processo eleitoral e, depois, da vida institucional de cada unidade federativa (monopolizadores que são da iniciativa das leis orçamentárias e dirigentes supremos de toda a Administração Pública, esse focado espaço das políticas públicas, atividades e serviços de que fundamentalmente depende a qualidade de vida da população), seja porque todos eles, chefes do Poder Executivo e conjunto dos parlamentares, exercitam um grande rol de competências que só podem ser validamente tocadas se em regime de atuação concertada. Esquadro, enfim, que, a toda evidência, não é de ser conspurcado e muito menos revogado a golpes de um tão arbitrário quanto unilateral e provinciano decisionismo.

36. Não que se ignore a forma dual de se estar num partido durante o processo eleitoral: a forma proporcional e a majoritária. Não que se desconheça o fato de que a Constituição mesma fez dos deputados federais uma instância de representantes do povo (art. 45), enquanto o senado foi normado como instância de representação dos Estados e do Distrito Federal (art. 46). Mas tudo isso tem que ser interpretado em harmonia com, pelo menos, três anteriores e fundamentais comandos: a) o povo é a fonte de todo o poder governamental, exercendo tal poder por meio de representantes eleitos (todos, sem exceção, conforme o parágrafo único do art. 1º); b) a primeira forma de exercício da soberania popular está no sufrágio universal e no voto direto e secreto (art. 14, caput; c) a filiação partidária é condição sine qua non de elegibilidade (toda elegibilidade política, insista-se, a teor do inciso V do § 3º do art. 14).

37. Com efeito, é preciso conciliar as respectivas interpretações, a partir de uma preponderância que somente cabe àqueles três anteriores e fundamentais comandos constitucionais. Donde a imperiosa compreensão de que, ao falar dos deputados federais como representantes do povo (“A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal”), a nossa Lei Maior não recusou ao Presidente da República e aos senadores a condição de legítimos detentores de uma representação popular (isto seria uma grosseira negação ao parágrafo único do art. 1º e à parte inicial da cabeça do art. 14). Ela falou do povo, é certo, porém como categoria demográfica. Não em sentido propriamente político ou como instância de poder soberano.


38. Na matéria, o que a nossa Lei Fundamental ordenou foi o seguinte: a) o número dos deputados federais a eleger em cada qual das três unidades da Federação (Estado, Território e Distrito Federal) é proporcional à respectiva população (mesma proporcionalidade populacional que se lê no inciso IV do art. 29, a respeito do número de vereadores por Município); b) o sistema de votação de tais parlamentares é o proporcional, na acepção de que operante pela conjugação de dois quocientes: um quociente eleitoral e um quociente partidário (tal como densificados pelos arts. 106, 107 e 108 do Código Eleitoral brasileiro[5]).

39. Já no tocante à redação do art. 46 (“O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário”), com seu § 1º (“Cada Estado e o Distrito Federal elegerão três senadores, com mandato de oito anos”), cuida-se de dispositivos que encerram dois núcleos semânticos. O segundo, consubstanciado na regra de que o número de senadores é igual para o Distrito Federal e os Estados-membros, independentemente do tamanho das respectivas populações (critério por unidade federativa, portanto, e não por quantitativo populacional). O primeiro núcleo deôntico, a seu turno, consubstanciador de um sistema de votação que secundariza o coletivo partidário em favor do desempenho individual dos candidatos. Noutros termos, por esse princípio de votação é considerado eleito quem obtém, pessoalmente, a maioria dos votos válidos apurados. Logo, princípio que não conduz à disputa entre partidos ou coligações, uns perante os outros, (coletivamente, então), mas entre os próprios candidatos em sua concreta individualidade. Cidadãos contra cidadãos, conforme acentuei no voto que emiti por ocasião do julgamento daqueles referidos mandados de segurança, no STF.

40. É o mesmo princípio que timbra a eleição para o cargo de Presidente da República (§ 2º do art. 77 da Constituição), que também não foi topicamente referido como representante do povo. Nem do povo nem de nenhuma das pessoas políticas de natureza federada. Não se podendo, aqui, negar o óbvio: nesse tipo de competição federal homem-a-homem, candidato versus candidato, o prestígio individual tende a suplantar o partidário. A luta que se trava envolve pessoas já mais avançadas em idade cronológica (mínimo de 35 anos) e, portanto, com maior possibilidade de afirmação profissional e ideológica. Pessoas de um mais disseminado conhecimento junto ao corpo de eleitores. Mas essa dependência eleitoral menor do partido não se confunde com independência. Não significa desideologia partidária ou coligacional. Desrepresentação em toda a linha, do povo ao partido. Liberdade para se metamorfosear em ave de arribação, pouco importando se faz inverno ou verão. Seria um salto interpretativo chapadamente acrobático, entendo, sem nenhuma rede de proteção constitucional. Um atentado ao método ou processo de interpretação sistemática da Constituição, quando se sabe que toda interpretação jurídica, “ou é sistemática ou não é interpretação” (Juarez Freitas, citado, ainda uma vez, pelo Ministro Cezar Peluso (p. 29).

41. Sem prejuízo destas proposições, e atento à diretriz hermenêutica de que a Constituição não tem palavras inúteis, admito que o art. 46 faz da Câmara dos Deputados Federais uma instituição preponderantemente republicana, como faz do Senado Federal uma instituição marcadamente federativa. Mas sem que isto signifique negar à Câmara o desempenho de misteres federativos, nem ao Senado o desempenho de misteres republicanos. Até porque deputados federais e senadores são membros de um Congresso Nacional que desempenha multitudinárias funções que ora têm na forma republicana de governo a sua base de inspiração e balizamento, ora têm na forma federativa de Estado a sua justificativa e limites.

42. Nesse ritmo argumentativo, e já me encaminhando para o fecho deste voto, tenho que todos os exercentes de mandato eletivo federal (com seus equivalentes nas pessoas federadas periféricas) estão vinculados a um modelo de regime representativo que faz do povo e dos partidos políticos uma fonte de legitimação eleitoral e um locus de embocadura funcional. Tudo geminadamente, como verdadeiros irmãos siameses. Donde o instituto da representatividade binária, incompatível com a tese da titularidade do mandato como um patrimônio individual ou propriedade particular.

43. Respondo, pois, afirmativamente à consulta que nos é dirigida, para assentar que uma arbitrária desfiliação partidária implica desqualificação para se permanecer à testa do cargo político-eletivo. Desqualificação que é determinante da vaga na respectiva cadeira, a ser, então, reivindicada pelo partido político abandonado. É a única resposta que me parece rimada com a Constituição, toante e consoantemente, conforme procurei demonstrar. Convicto de que é no devocional respeito a ela, Constituição, que se propicia à sociedade o máximo de segurança jurídica. Afinal, só a Constituição governa quem governa. Governa permanentemente quem governa temporariamente.


44. É como voto, permitindo-me lembrar postura hermenêutica entusiasticamente recomendada pelo imortal Geraldo Ataliba: não se pode interpretar a Constituição como se ela fosse uma fortaleza de paredes indestrutíveis em torno dos mais excelsos valores, porém fechada com portas de papelão.

Brasília, 16 de outubro de 2007.

Ministro Carlos Ayres Britto


[1] Acerca da imprescindibilidade do governo representativo, consta do magnífico voto que o ministro Cezar Peluso proferiu na Consulta n. 1.398 – Classe 5ª, Distrito Federal: “É bem conhecida, desde antes da clássica obra de JOHN STUART MILL sobre o tema, a conveniência política da adoção de um governo representativo: “o único governo capaz de satisfazer a todas as exigências do estado social é aquele do qual participou o povo inteiro; que toda a participação, por menor que seja, é útil (…)”. Como, porém, “é impossível a participação pessoal de todos, a não ser numa proporção muito pequena dos negócios públicos, o tipo ideal de um governo perfeito só pode ser o representativo” (página de rosto).

[2] Pluralidade orgânica de pessoas, foi dito, seja no sentido de uma duradoura ou consistente identidade de propósitos, seja quanto à personalizada formalização jurídica da agregação em si.

[3] Sobre o conceito de pólis, ver “Dicionário de Política”, da autoria conjunta de Norberto Bobbio, N. Matteucci e G. Pasquino, Editora Universidade de Brasília, 2ª edição.

[4] Constituição Federal de 1988, art. 103: “Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: VIII – partido político com representação no Congresso Nacional”. Lei nº. 9.882/99, art. 2º: “Podem propor argüição de descumprimento de preceito fundamental: I – os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade”. Inclua-se, aqui, a propositura do mandado de segurança coletivo, que, já dissemos, antessupõe representação partidária no Congresso Nacional (alínea a do inciso LXX da Constituição Federal).

[5] Eis os textos: “Art. 106. Determina-se o quociente eleitoral dividindo-se o número de votos válidos apurados pelo de lugares a preencher em cada circunscrição eleitoral, desprezada a fração se igual ou inferior a meio, equivalente a um se superior”. “Art. 107. Determina-se para cada partido ou coligação o quociente partidário, dividindo-se pelo quociente eleitoral o número de votos válidos dados sobre a mesma legenda ou coligação de legendas, desprezada a fração”. “Art. 108. Estarão eleitos tantos candidatos registrados por um partido ou coligação quantos o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido”.

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