Agentes políticos

Fortalecimento da Defensoria traz vantagens para a democracia

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  • Marcelo Semer

    é desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo); autor de "Sentenciando Tráfico — O Papel dos Juízes no Grande Encarceramento" (Tirant lo Blanch) e "Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil" (ed. Contracorrente).

16 de outubro de 2007, 13h35

Enquanto os membros do Ministério Público empreendem uma batalha jurídico-política para retirar das polícias judiciárias a exclusividade na investigação criminal, que é prevista constitucionalmente, sua associação nacional (Conamp) contesta no Supremo Tribunal Federal a validade de lei que confere à Defensoria legitimidade para ações civis públicas.

Um equívoco, todavia.

Diferentemente da esfera penal, com fundo garantista, onde vale a regra da tipicidade para afastar procedimentos não previstos legalmente, no âmbito de ações coletivas, a exclusividade é deletéria. Não é consignada como garantia na Constituição e tampouco vem sendo consagrada nos tribunais.

E assim deve continuar.

Não há que temer possa a Defensoria Pública ser parte legítima na instauração de ações civis, como, aliás, já vem acontecendo, quase sem resistência. Ao revés, a notícia é bem-vinda. Neste ponto, a concorrência apenas aumenta e não subtrai direitos.

Não há sentido em exigir a interposição de milhares de ações idênticas para discutir uma mesma situação jurídica. A restritividade da jurisprudência em ações coletivas, aliás, foi justamente o que provocou a imensidão de “pedidos idênticos”, que hoje superlotam os tribunais, inclusive, e principalmente, o próprio STF. Seria um erro fatal de política judiciária, quase um suicídio da Suprema Corte, insistir na individualização dos conflitos, reduzindo a legitimidade daqueles que podem suscitar ações coletivas.

Mas a questão não é apenas de política judiciária. É também de construção da democracia.

Poucas instituições cresceram tanto quanto o Ministério Público desde a Constituição de 1988. O fortalecimento do MP tem sido vital para a construção do Estado Democrático de Direito, em especial no que tange à persecução da improbidade, descortinando ilícitos em administrações públicas de todos os níveis. Esse fortalecimento do Ministério Público foi construído com aumento de suas competências, autonomia administrativa de suas instituições e independência funcional de seus integrantes.

Não há porque imaginar que esse tripé não possa servir de modelo para outras carreiras jurídicas, tão essenciais para o estado republicano quanto o MP.

A Defensoria Pública é um bom exemplo, já gozando, como resultado de recente reforma constitucional, de autonomia administrativa, embora ainda com minguados quadros em todos os seus níveis, e tratamento profissional incondizente com a dignidade de suas responsabilidades. A aposta em gastos sociais, de fato, não tem sido a característica de nossos recentes governos.

Se o Ministério Público é o advogado da sociedade, a Defensoria vem a ser a advogada de quem ainda quer ingressar na sociedade.

A Defensoria nasce com o DNA da inclusão no sangue. E se a redução das desigualdades é um dos objetivos fundamentais da República, como impõe o artigo 3º, inciso III, da Constituição Federal, indispensável que ampliemos e fortaleçamos as instituições que podem exigir, na prática, a efetivação das igualdades.

Pela recalcitrância na omissão dos governos em fazer cumprir seu papel social, o país vem caminhando para a exigência judicial das políticas públicas — muitas vezes, contudo, apenas em ações individuais que podem acabar justamente por retirar o caráter público e universal das prestações do Estado.

E a população carente, forçoso reconhecer, grosso modo ainda está fora das melhores experiências da Justiça brasileira, inclusive dos Juizados Especiais, repleto de causas sobre aumento de planos de saúde, mensalidades escolares, assinaturas telefônicas, acidentes de veículo e agora atrasos e cancelamentos de viagens aéreas.

Quem mais necessita, continua, contudo, mais ausente da Justiça. Talvez as camadas mais populares ainda não tenham o conhecimento suficiente para transformar suas necessidades, que não são poucas, em ações judiciais. Espera-se profundamente que esse quadro mude com o crescimento institucional da Defensoria, em especial na proposição de ações civis públicas, que possibilitem o acesso de muitos ao Judiciário. Exigências a serem feitas não faltam.

A autonomia administrativa e independência funcional são também imprescindíveis, como foram ao Ministério Público. Se quisermos uma instituição que possa exigir políticas públicas dos governantes, tão indispensáveis neste país repleto de pobreza por todos os lados, não se pode pensar em uma que se paute pela submissão aos chefes do Poder.

Mas a Defensoria não é a única que merece esse aprimoramento institucional, para alavancar nossa democracia republicana.

A autonomia teve um resultado muito positivo ao Ministério Público, outrora tão vinculado a interesses e pretensões do Executivo. Como à Defensoria, a autonomia deve a fazer bem também às procuradorias estaduais e municipais, como se pretende com a PEC 82 em andamento no Congresso Nacional, com parecer já favorável de sua Comissão de Constituição e Justiça.

Por tudo o que se tem visto ultimamente no país, a reparação dos ilícitos administrativos é objetivo quase inacessível em ações judiciais — os exemplos são incontáveis e o prejuízo com a corrupção considerável, inclusive para diminuir o estoque de recursos para as ações sociais.

Imprescindível, então, fazer dos advogados públicos, que não são, nem devem se portar como advogados dos governantes, agentes políticos do Estado para que, com independência e autonomia, possam servir com ainda mais ênfase, como primeiro e decisivo obstáculo à prática de ilícitos, através do controle interno de legalidade. Para a preservação do patrimônio público dos malversadores, vale, mais do que nunca, a regra de que prevenir é melhor do que tentar remediar.

O fortalecimento das instituições jurídicas deve representar vantagens para a democracia, na medida em que a coisa pública seja preservada dos administradores inescrupulosos e o acesso do povo à Justiça seja efetivamente implementado. Defensores e procuradores serão bem-vindos como novos agentes políticos da República.

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