Propriedade intelectual

Entrevista: Ronaldo Lemos, coordenador do Creative Commons

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14 de outubro de 2007, 1h00

Ronaldo Lemos - por SpaccaSpacca" data-GUID="ronaldo_lemos.png">Centro do debate, e de críticas, sobre direitos autorais, o Creative Commons é um projeto que pretende equilibrar dois direitos aparentemente conflitantes: a propriedade intelectual e o acesso amplo.

O projeto foi criado pelo professor Lawrence Lessig, da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Através de uma licença Creative Commons, o autor da obra especifica como ela poderá ser usada por quem a adquire, sem os rigores das leis de propriedade intelectual ou de patentes.

Em entrevista para a Consultor Jurídico, o coordenador do projeto Creative Commons no Brasil, Ronaldo Lemos, defende a exploração dos direitos autorais pelo próprio autor. Segundo ele, há limitações para que o dono da obra exerça o direito sobre ela. Se antes era necessário a intervenção de intermediários, hoje, as tecnologias permitem o controle da obra pelo autor.

Mas as leis ainda são restritas. De acordo com o professor da FGV Direito Rio, a arrecadação dos direitos autorais de música só pode ser feita pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), um sistema que não diminui a quantidade de intermediários e apresenta falhas na distribuição do valor arrecadado.

Nas últimas semanas, o debate tem se concentrado na área musical. O ministro Gilberto Gil, que tem algumas de suas obras licenciadas pelo Creative Commons, tem sido acusado de não defender os direitos dos autores. O próprio projeto tem sido alvo de críticas por parte de músicos e associações arrecadadoras.

Entretanto, Ronaldo Lemos explica que o Creative Commons não se limita a pensar o direito autoral relacionado à música. Mais do que isso, o projeto se propõe a discutir as novas tecnologias e a possibilidade de se difundir o conhecimento das mais diversas áreas.

Para ele, é necessário uma mudanças nas regras, mas não sem antes realizar um estudo sobre os impactos que essas modificações poderão causar. “Sem uma análise racional, a mudança em um dispositivo da lei terá um caráter político”, constata.

Formado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado na Universidade de Harvard e doutorado também pela USP, Ronaldo Lemos teve uma carreira dupla de advogado e professor. “Comecei a trabalhar com internet porque eu percebia as contradições entre a prática jurídica durante o dia e a parte teórica durante a noite”, afirma. Atualmente, não advoga mais e leciona Propriedade Intelectual para alunos de graduação e pós-graduação da FGV Direito Rio, além de se dedicar a pesquisas nessa área.

Leia a entrevista

ConJur — Tem se falado muito no projeto Creative Commons em relação à música. Mas o projeto não discute apenas o direito do autor, há também uma preocupação com o acesso ao conhecimento. Não estão distorcendo a idéia do Creative Commons?

Ronaldo Lemos — O projeto não se restringe à música. Uma importante aplicação das licenças, através do Creative Commons, envolve o conhecimento científico, materiais didáticos e até projetos de arquitetura. Não pretendemos ampliar o acesso ao conhecimento ao máximo. Nosso objetivo é o equilíbrio entre proteção e acesso. A lei pendeu demais para um lado e se esqueceu de cuidar de outro. Na área do conhecimento científico é fundamental ter um modelo de licenciamento como o Creative Commons para garantir que a informação seja livremente acessível. Se a pesquisa é financiada por dinheiro público, é preciso que o conhecimento seja disponibilizado para a sociedade. As pessoas ligadas à música enxergam um debate muito imediato que tem a ver com a crise da indústria musical.

ConJur — Quais os outros aspectos do direito autoral que é preciso debater?

Ronaldo Lemos — A discussão tem se focado apenas em uma das crises pela qual o direito autoral vem passando, que é a da efetividade. Não conseguimos fazer cumprir o direito autoral. Mas, além desta, há outras duas, que é a crise de legitimidade, em que se questiona se o direito autoral é, de fato, o modelo ideal; e a econômica ligada ao modelo de negócios. Para o problema de efetividade, a resposta é polícia, repressão e maiores penas. Mas, pelo debate, fica a impressão de que, com investimento em leis mais severas e em reforço policial, a pirataria será resolvida. Não é verdade, pois a efetividade é apenas um dos aspectos.

ConJur — Além da pirataria, tem se discutido o poder do autor sobre sua obra. Qual o motivo de tanto barulho?

Ronaldo Lemos — Durante o século XX, quem exercia o direito autoral eram os intermediários. Fazia sentido, pois eram necessários recursos vultosos para fazer circular qualquer tipo de obra. Já no século XXI, devido à tecnologia digital, o investimento para a produção e circulação das obras deixa de ser o fundamental. A partir de agora, a questão é quem vai exercer os direitos autorais em nome do autor. Cabe ao autor tomar as decisões que considera mais importantes para sua obra. Ele não precisa mais de alguém para exercer os direitos por ele.


ConJur — Mas o autor ainda depende de intermediários.

Ronaldo Lemos — Sim. Pela lei, o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) tem a atribuição de recolher os direitos autorais em regime de monopólio. O curioso é que a lei não estabelece o monopólio para nenhuma outra área da cultura além da música. Toda vez que a música toca na televisão, no rádio, na academia, no shopping, em festa, é preciso emitir e pagar um boleto.

ConJur — Como é feito esse cálculo do direito autoral?

Ronaldo Lemos — Geralmente, cobra-se um percentual de 2,5% sobre o faturamento da emissora. Os cinemas também têm de pagar o Ecad. O interessante é que a produção do filme já licenciou a música e pagou o autor para usá-la. O sistema para arrecadar está pronto, e de certo modo, está funcionando, porque todo ano se arrecada mais. Em 2000, o Ecad arrecadou R$ 115 milhões. Em 2006, foram R$ 260 milhões. O problema é que o valor não chega de modo adequado aos respectivos membros das associações.

ConJur — Por que?

Ronaldo Lemos — Primeiro porque a distribuição do valor arrecadado é feito por uma amostragem junto às rádios. Mas a música que está tocando na rádio não é necessariamente a mesma da academia ou do shopping. Com a tecnologia digital, não é necessário ficar na amostragem, pois dá para saber exatamente quem tocou o quê e aonde. O segundo problema é que cada membro da cadeia cobra uma parte do serviço para arrecadar e distribuir. Só que esse valor não é atribuído pelo mercado, pois não existe concorrência.

ConJur — Se não há concorrência, há opção para o autor?

Ronaldo Lemos — Não há como trabalhar com outro escritório senão o Ecad. Pode-se optar por uma sociedade arrecadadora (União Brasileira de Compositores, Associação Brasileira de Músicos, etc). Mas estas também ficarão com uma parte do dinheiro pelos seus serviços. O valor será repassado para a editora do artista, que também ficará com uma parte. Só depois é que o artista recebe, quando recebe. São três intermediários nesse sistema.

ConJur — Há quem esteja satisfeito.

Ronaldo Lemos — Há um grupo de 200 artistas que está satisfeito. Mas há milhões de criadores intelectuais na área de música para quem a arrecadação deixa a desejar. Produzir música se tornou muito mais fácil do que era nas décadas passadas. Os novos criadores também precisam ser representados. O dilema que se coloca é como criar um mecanismo que consiga sustentar esses milhões de autores.

ConJur — Em que o projeto Creative Commons pode beneficiar essa nova geração de artistas que está surgindo?

Ronaldo Lemos — O Creative Commons permite cortar os intermediários e por isso é tão criticado. A licença de uso mais usada do Creative Commons veda o uso comercial. Isso significa que é possível colocar a música na internet e mandar para os amigos ou permitir que seja tocada em uma escola. Mas, se quiserem colocá-la na novela da Rede Globo, tem que recolher direito autoral.

ConJur — Mas é o Ecad quem continua a recolher os direitos autorais para a utilização comercial das obras.

Ronaldo Lemos — Mas o que o Creative Commons está começando a questionar é por que o artista não pode criar suas próprias regras. Por exemplo, licencia sua obra para fins não comerciais e do lado da música apresenta um link perguntando “Quer usar para fins comerciais? Clique aqui”. Ao clicar, aparece uma tabela de preços especificando o valor para incluir a música em um filme, para tocá-la em determinado lugar. Por que os artistas não podem se congregar em uma sociedade arrecadadora em que eles mesmos criem as regras do jogo?

ConJur — Não podem?

Ronaldo Lemos — Sim, eles podem criar uma associação. Mas como a lei só permite a arrecadação através do Ecad, resta se filiar ao escritório. Mas a associação terá outro problema. O estatuto do Ecad diz que o poder de voto dentro do escritório de arrecadação corresponde ao valor arrecadado no ano imediatamente anterior. A representação no Ecad funciona de modo a contemplar quem tem mais dinheiro. Quando a associação se junta ao Ecad o poder político inicial que possui é zero. O que estamos tentando mostrar é que há possibilidade de os artistas exercerem seus próprios direitos e, com isso, serem mais bem remunerados, além de ter condições de fiscalizar de uma forma mais precisa. O problema da arrecadação – e não sou eu quem digo – é que o Ecad é uma caixa preta. Existe um projeto de lei em tramitação no Congresso que pretende obrigar o Ecad a tornar suas contas públicas. Hoje, elas não são.

ConJur — Mas através do Ecad a fiscalização pode ser feita no Brasil inteiro. Não há esse benefício?


Ronaldo Lemos — É muito difícil fiscalizar, razão de existência do Ecad. O problema é que montaram uma estrutura que só fiscaliza. Melhoraram a arrecadação, mas o mesmo não foi feito quanto à distribuição. No mundo ideal, se o Ecad funcionasse plenamente, a gente nem estaria discutindo isso. Todos estariam satisfeitos. Tem de pensar em alguma solução, porque, do jeito que está, não agrada nem os próprios membros da instituição.

ConJur — É preciso mudar o sistema de arrecadação?

Ronaldo Lemos — Não sei. Primeiro é preciso fazer um estudo econômico que inclua a satisfação dos usuários do Ecad. Não queremos cometer o mesmo erro que tem se cometido. Todas as modificações na lei de propriedade intelectual não são feitas com base em um estudo de impacto. Sou contra uma mudança sem que seja feita uma análise ou ignorem os autores, possuidores do serviço.

ConJur — Não há estudos sobre isso?

Ronaldo Lemos — Não. Isso é que me deixa perplexo. Existe uma profusão de estudos sobre o setor bancário, de serviços públicos, petróleo, televisão. Já em relação ao serviço de arrecadação de direito autoral, não há nada. É preciso conhecer o que temos, quais as ferramentas, como elas estão funcionando para saber o que precisa aperfeiçoar.

ConJur — Como foi estipulado o prazo de 70 anos a partir da morte do autor para que as obras caiam em domínio público?

Ronaldo Lemos — A primeira lei de direitos autorais, de 1828, protegia o direito autoral por 10 anos desde a publicação. A segunda, pouco depois, estabelecia a proteção por 10 anos depois da morte do autor. A terceira lei mudou para 50 anos depois da publicação. Houve uma nova mudança e ficou estabelecido o prazo de 60 anos após a morte do autor. Por fim, aumentaram para 70 anos. É uma curva que só tem subido. Todas essas modificações não foram feitas com base em um estudo, mas devido a uma idéia que não tem comprovação econômica ou social. Na Inglaterra o prazo é de 50 anos depois da publicação. A obra dos Beatles vai começar a cair em domínio público em breve. A industria tem um lobby para estender o prazo, mas não só para as músicas como para texto, filme, foto, quadro. O mesmo aconteceu nos Estados Unidos com o Mickey Mouse. Como na Inglaterra a indústria começou a pressionar, o governo contratou um economista acima de todas as suspeitas, que realizou um estudo sobre o prazo de proteção. A conclusão a que ele chegou é que nada no mundo justificaria estender o prazo. O direito autoral existe para incentivar a criação. Se a obra já está criada, como é que se incentiva a criação de algo já criado?

ConJur — A regulamentação da internet também tem sido feita dessa maneira, sem estudos?

Ronaldo Lemos — Não tem lei especifica no Brasil para os crimes cometidos no mundo virtual. Aplicam-se as mesmas regras do mundo real, por exemplo, no caso de estelionato. A ordem natural das coisas, na maioria dos países, é primeiro regulamentar a internet a partir do Direito Civil. Depois, para o que não der certo, usa-se o Direito Penal. Este deve ser o último recurso, porque põe gente na cadeia. Só que hoje existe uma pressão muito grande para que se faça a regulamentação penal antes de fazer a civil. Não faz sentido querer regulamentar a internet, que é algo complexo e que muda todos os dias pelo Direito Penal. É um erro crasso.

ConJur — E as regras que já existem, é preciso mudá-las? Em que sentido?

Ronaldo Lemos — É preciso ter regras claras. Deve-se esclarecer o que as pessoas podem fazer. Como professor, não sei qual é o limite para distribuir material aos alunos em sala de aula. A lei permite a cópia de pequenos trechos para uso privado quando feita pelo próprio copista, sem intuito de lucro. O que é um pequeno trecho? É uma palavra, uma faixa? Não diz. Toda vez que me deparo com esse problema, fico insatisfeito com o regime. Não sou o único. Qualquer professor enfrenta esse dilema. Cria uma incerteza gigantesca no mercado. Se as regras não forem muito claras, afetarão a legitimidade do sistema como um todo.

ConJur — Em casos de obras literárias, como proteger o autor sem prejudicar o acesso?

Ronaldo Lemos — Uma das possibilidades que é adotada, por exemplo, na França, na Alemanha e na África do Sul, é a arrecadação de um valor a ser repassado para o autor toda vez que se tira uma cópia de sua obra. Se a cópia custa sete centavos, paga-se oito e um centavo vai para o direito autoral. No Brasil, isso nem é discutido, foca-se na crise de modelo de negócio. A estrutura antiga fica cada vez mais insustentável, porque hoje tem copiador em quase todo lugar. Em vez de criar um modelo novo, ficam no velho discurso de efetividade e dizem que se as pessoas cumprissem a lei, não haveria esse problema. Caímos, então, em uma questão econômica. O livro é caro. No Brasil custa 20 dólares, que corresponde mais ou menos ao preço nos Estados Unidos. Só que a renda do brasileiro é seis vezes menor. São vários interesses em jogo. Mas nada impediria, por exemplo, criar um sistema em que se remunerasse as pessoas por cada cópia efetivada. Temos que pensar em alternativas para que as pessoas façam as pazes com a tecnologia.


ConJur — Em um dos seus artigos, o senhor estabeleceu com clareza o que podia ser feito e, mesmo com condições específicas, é permitida a cópia. Isso não cria um conflito com a editora?

Ronaldo Lemos — Há editoras com diferentes restrições. O meu livro foi publicado pela editora da Fundação Getúlio Vargas, que é uma editora comercial. Ela não sabia o que era Creative Commons, mas foi feita uma conta para saber se valia a pena publicar. Colocamos no papel o número de pessoas que eu achava que iriam comprar o livro. Deu “x”. E quantas deixariam de comprar o livro, já que foi licenciado através do Creative Commons? Deu “y”. Quantas pessoas eu achava que comprariam o livro, porque, de alguma forma, tomaram conhecimento dele pelo fato de ter sido publicado com a licença do Creative Commons? Deu “z”. Como “z” foi maior do que “y”, então valia a pena. O público que compra o livro é aquele que quer o livro na estante. Há um público inesperado que descobre o livro, prefere ler com calma e o adquire. E há aqueles que pelo livro estar disponível, lê o que precisa e não quer saber mais. É um cálculo muito racional, não é algo dramático. Meu livro foi publicado dessa forma e vendeu praticamente duas vezes mais cópias físicas do que o número de download na internet. Essa discussão é mais sofisticada do que parece.

ConJur — Mas leitura pela internet ainda não é incômoda?

Ronaldo Lemos — As pessoas dizem que ninguém lê na internet. É mentira. Tem milhares de pessoas que passam o dia inteiro na frente do computador. Não se lê um romance como Guerra e Paz, do Tolstoi, na internet, mas lê uma informação aqui, outra ali, responde e-mails. Se somar o que foi lido durante o dia, é possível que se tenha lido capítulos de um livro. Talvez o problema não esteja na mídia, mas na linguagem utilizada. No Japão, por exemplo, acabaram de inventar o romance por celular. Não é pegar um livro e mandar para o celular. São escritores que se especializaram em escrever textos para as pessoas lerem no trem pelo celular. É um mercado que não existia, saiu do zero, e hoje gira em torno de 80 milhões de dólares anuais. A história é vendida e a pessoa lê os seus capítulos feitos sob medida para aquela mídia.

ConJur — O que muda é o tipo de negócio?

Ronaldo Lemos — No caso da música, o que está morrendo é o suporte e não a comercialização. A venda está se transformando. Hoje, a tendência mundial é deixar de vender a música como produto e passar a comercializar, por exemplo, a assinatura. Vários países têm experimentado cobrar um pouco mais pela assinatura de um provedor de internet em troca do conteúdo. O importante é experimentar novas possibilidades para que se descubra qual é o caminho. Ninguém sabe, estamos em um momento de transição. O que sabemos é que o modelo antigo não funciona mais.

ConJur — As escolas de Direito da Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro e em São Paulo assinaram um acordo com a Universidade de Yale para fazer uma pesquisa em conjunto sobre propriedade intelectual. Qual a importância de estudar o tema com uma universidade americana?

Ronaldo Lemos — Em 1996, os países que faziam parte da Organização Mundial do Comércio (OMC), dentre eles o Brasil, assinaram um tratado que uniformizou a propriedade intelectual no mundo inteiro, uma globalização das leis. As leis brasileira, americana e dos países europeus são baseadas na mesma matriz. O país que sair dela recebe sanções. A importância da parceria com a universidade de Yale é justamente derivada dessa globalização das normas de propriedade intelectual. O Brasil e os Estados Unidos enfrentam os mesmos dilemas sobre o acordo tríplice da OMC. É importante cooperar e ver as diferentes perspectivas, soluções e necessidade, com base nessa moldura global.

ConJur — Vocês já têm algum resultado?

Ronaldo Lemos — Já fizemos o primeiro rascunho da análise sobre o que pode ser feito pela lei brasileira, ou seja, quais são as exceções e limitações do direito autoral no Brasil. Fizemos a primeira versão e mandamos para os EUA, onde alunos e professores se reúnem para fomentar o debate. A expectativa é que, em março, tenhamos um trabalho feito por várias mãos. A segunda etapa é sobre a produção colaborativa; trata de software livre, mídia.

ConJur — Vocês também vão abordar patente de medicamento. Como está essa discussão?

Ronaldo Lemos — O acesso ao conhecimento e ao remédio é uma coisa só. A mesma briga do xérox do livro é a do medicamento anti-Aids na África. Mas medicamento envolve a vida, por isso é mais grave. Não ter acesso a um livro tem um efeito econômico de exclusão, mas não ter acesso ao remédio anti-Aids significa que seis milhões de pessoas podem morrer.


ConJur — Mas há diferença entre patente de remédio e direito autoral.

Ronaldo Lemos — O direito autoral não protege a idéia, mas a manifestação dela. É como um livro de receita. Quando protegido por direito autoral, não se impede ninguém de cozinhá-la. Se o livro de receita fosse protegido pela patente, quem o adquiriu ficaria impossibilitado de cozinhar. A patente vai direto na idéia. Então, mesmo que o conhecimento seja público, ninguém pode usá-lo a não ser o dono da patente.

ConJur — Quanto tempo dura a patente?

Ronaldo Lemos — Dura 20 anos. Mas há um detalhe. Em 2000, na rodada de Doha na Organização Mundial do Comércio, ficou estabelecido que sempre que houvesse um caso de saúde pública, em qualquer país membro da OMC, era permitido o licenciamento compulsório. As pessoas acham que as patentes de remédio foram quebradas. Não tem nada a ver com quebra de patente, pois é permitido pelo sistema internacional. A Tailândia, o Brasil e até mesmo os Estados Unidos já fizeram isso. Quando teve o ataque de antrax nos EUA, eles lançaram o licenciamento compulsório para fabricar o remédio contra o antrax. Se o Brasil tivesse quebrado a patente da droga anti-Aids, teria sofrido retaliação dentro da OMC. Não foi retaliado, porque não houve quebra de nenhum preceito internacional.

ConJur — Os tribunais estão se informatizando. O que o senhor acha das iniciativas para aproveitar as tecnologias e acelerar os processos na Justiça?

Ronaldo Lemos — Coletar depoimentos por videoconferência, por exemplo, é complicado. O argumento contra é a possibilidade de o preso ser coagido e o juiz não ter condições de saber se isso está acontecendo. Mas é uma perda de oportunidade, porque em vez de olharem para a tecnologia como uma possibilidade, já a descartam. Uma solução seria enviar um oficial de Justiça que se certificasse de que não haverá coação. Acho que o uso das novas tecnologias apresenta desafios, mas são contornáveis. Não precisa eliminar a possibilidade de usar a tecnologia só porque apareceu um problema.

ConJur — E quais as vantagens das novas tecnologias para a difusão do conhecimento?

Ronaldo Lemos — Para quem não tem acesso a nada, a tecnologia digital é uma benção. As lan houses levam computador para as favelas e o desafio é aproveitar o potencial de cidadania pouco explorado nesses empreendimentos para dar uma dimensão educacional, de governo eletrônico, serviços públicos a essa parte da população. Uma pesquisa de campo que fazemos no Jacarezinho, Antares, Rocinha e Cidade de Deus mostra que há uma geração nova na periferia que tem acesso ao computador, está no Orkut, MSN. Os meninos ficam encantados quando sabem que estão fazendo no computador a mesma coisa que um garoto rico dos Estados Unidos. Assistimos a apropriação da tecnologia por parte de quem não tem dinheiro. E o potencial disso é inesgotável e revolucionário.

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