Direito à privacidade

Tecnologia deve servir ao cidadão sem ferir seus direitos

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13 de outubro de 2007, 12h09

NO livro 1984, de George Orwell, as pessoas são vigiadas por um sistema onipresente que tudo vê e controla. Atualmente, a segurança eletrônica e algumas leis podem tornar o “big brother” uma realidade. O importante em toda tecnologia é servir a seus propósitos sem constituir uma ameaça aos direitos fundamentais dos cidadãos, como a privacidade e a intimidade.

O Siniav (Sistema Nacional de Identificação Nacional Automática de Veículos), o chip de monitoramento eletrônico que deve ser instalado na frota de carros em São Paulo, propõe-se a coibir infrações, dar fluidez ao trânsito e limitar os problemas no licenciamento dos veículos -medidas certamente corretas. Porém, abrem perspectiva para a quebra da proteção à privacidade do motorista.

Em 1890, dois juristas americanos, Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis, publicaram um estudo considerado um marco na história do direito moderno. Sustentaram que novos inventos e métodos comerciais reclamavam o surgimento de um novo direito fundamental do cidadão, construído a partir de direitos clássicos de proteção à pessoa e à propriedade, que eles denominaram direito à privacidade, correspondente, nas palavras do juiz americano Cooley, ao direito de ser deixado em paz.

Passados pouco mais de cem anos, vivemos a necessidade da criação de um novo direito do cidadão, curiosamente nascido a partir daquele direito à privacidade que acabou consagrado no último século, fundado nas mesmas razões de desenvolvimento tecnológico e de métodos comerciais, agora por causa da tecnologia e pautado naquela mesma expressão singela, mas marcante, de que nos deixem em paz, direito esse que se constitui na proteção do cidadão diante do tratamento automatizado de seus dados -nas palavras dos espanhóis, direito à autodeterminação informativa.

O recolhimento de informações privadas por sistemas automatizados sem que o cidadão saiba que seus dados são compilados; a troca de informações por órgãos públicos ou empresas, ampliando o volume de dados; a capacidade de armazenamento de milhões de informações; a contínua diminuição dos custos de geração, transmissão, arquivamento e tratamento de dados; e, finalmente, por mais simples que possam parecer individualmente alguns dados, os resultados cada vez mais complexos dos tratamentos informatizados, com efetivo risco de violação à privacidade e à intimidade dos cidadãos, tornam imperiosa a consagração desse novo direito no Brasil.

No caso do chip para os carros, as autoridades estaduais e municipais confirmam que pode armazenar número de série do veículo, placa, chassi e código Renavam e tem capacidade de mapear o trajeto realizado. Preocupa-nos, neste primeiro momento, a captura e o armazenamento de dados, podendo expor a privacidade das pessoas. Armazenados os dados, podem vir a sofrer tratamento automatizado, com resultados devastadores para a privacidade do motorista.

Além disso, permitindo a tecnologia a transmissão de informações entre o chip e as antenas, existe a preocupação de que terceiros possam interceptar a comunicação, apropriando-se dos dados, inclusive para monitoramento das vias por onde um determinado veículo costuma passar. Interesses escusos não faltarão.

A afirmação das autoridades de que as informações serão mantidas em sigilo na CET por si só não é satisfatória, uma vez que não basta para garantir que esse banco de dados não será acessado por terceiros. Lembremo-nos dos CDs vendidos em praças públicas com nossas declarações do Imposto de Renda. Mas, mais do que isso, não garante que, no futuro, não será modificada sua finalidade inicial.

A tecnologia a ser empregada -“radio-frequency identification” (RFID)- utilizará uma rede de 2.500 antenas espalhadas por toda a cidade.

Hoje, o sistema será empregado para ações ligadas ao trânsito, mas, uma vez instalada a infra-estrutura, nada poderá assegurar que, dentro de dois ou três anos, seu uso não extrapolará esses objetivos iniciais. Essa é uma preocupação legítima de todos os cidadãos que se vêem a cada dia mais “vigiados” pelo Estado.

[Artigo publicado na seção Tendências/Debates da Folha de S.Paulo , neste sábado (13/10)]

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