Direito de defesa

A presunção da culpa no Estado Democrático de Direito

Autor

9 de outubro de 2007, 17h15

O ininterrupto crescimento da criminalidade, no Brasil, causa indignação da sociedade, farta de promessas não cumpridas pela classe política. Nesse ambiente de desesperança, as propostas baseadas em análises meramente emocionais proliferam e ganham apoio social. Seja pelo desconhecimento técnico das razões que geram a violência, seja pela dificuldade de implementar soluções verdadeiras para o tema, que passam pelo aumento dos gastos com segurança pública, por parte dos governos federal e estadual, e por políticas sociais, especialmente voltadas para educação, emprego, lazer e distribuição de renda.

E, por isso, a sociedade exige penas mais duras. Com assevera o professor Klaus Günther os integrantes da sociedade que “exigem punição mais dura também se enxergam como vítimas de uma ordem de distribuição injusta, porque têm menos do que na realidade merecem e dirigem sua indignação acerca do déficit no seu balanço pessoal de justiça não contra a ordem de distribuição percebida como injusta, mas contra o autor do ilícito individualmente”1.

Além da exigência por penas mais duras, percebe-se um nítido movimento que objetiva a redução dos direito individuais, inscritos na Constituição da República. Sob o pretexto de combater a crescente criminalidade, boa parte da sociedade apóia medidas que não foram vistas nem na época da ditadura militar.

Nesse triste contexto, em que se procura solapar o direito de defesa, tramita no Senado Federal Projetos de Lei 209 e 225, que alteram a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98). Dentre várias modificações, merece destaque a nova redação do §2º, do inciso I, do artigo 1º: “Incorre na mesma pena quem: utiliza na atividade econômica ou financeira bens, direitos ou valores que sabe ou deveria saber serem provenientes de infração penal”.

A hipótese trata da última fase da lavagem de dinheiro, ou seja, a utilização do bem, direito ou valor “lavado” na atividade econômica ou financeira. A novidade é a inclusão do “deveria saber serem provenientes de infração penal”.

De início, lembre-se que a atividade econômica, segundo o Professor Aclibes Burgarelli, em seu sentido mais amplo, “encerra no seu conteúdo, como espécie, três segmentos fundamentais, dentre os quais a atividade mercantil. Além desta, tem-se a atividade de produção, de circulação de bens necessários, úteis ou desejados por um mercado de consumo; tem-se a atividade financeira, por meio da qual se utiliza a moeda como forma de ser propiciado o crédito, mediante certa remuneração (juros) e tem-se a atividade de prestação de serviços ou de tecnologia” 2.

Integram, pois, a atividade econômica os prestadores de serviço, incluindo os profissionais liberais como o advogado, o médico, o dentista, dentre outros.

Penso que no crime de lavagem de dinheiro, é impossível a aplicação do “deveria saber”, por ofensa aos princípios da presunção de inocência, da proteção à intimidade e privacidade e, no caso dos advogados, ao direito de defesa.

Importa destacar que a presença do “deveria saber” ou “deve saber” não é nova no direito penal brasileiro, constando dos artigos 130, 140 e 180, todos do Código Penal, sendo longa a discussão a respeito de o “deve saber” ser uma forma de dolo eventual ou de conduta culposa.

Não consigo verificar o “deve saber” como forma de dolo eventual, mas de culpa “stricto sensu”, seguindo a lição dos mestres Nelson Hungria e Heleno Cláudio Fragoso. No dolo eventual o agente sabe e, praticando determinada conduta, assume o risco de produzir o resultado. Não é o caso do deve saber, em que a dúvida é manifesta e não é esclarecida por uma das modalidades da culpa. Dessa forma, só por esse motivo, já seria inaplicável, a meu ver, o “deveria saber” ao crime de lavagem de dinheiro, só previsto na forma dolosa.

Mas, mesmo para àqueles que admitem o “deve saber” como forma de conduta dolosa, por dolo eventual, importa esclarecer que, ainda assim, é ilegal sua aplicação no crime de lavagem de dinheiro.

A lavagem de dinheiro, como se sabe, é o processo pelo qual determinada pessoa busca dar aparência de licitude a um bem, direito ou valor provindo de um dos crimes antecedentes, previstos no artigo 1º, da Lei 9.613/98.

Por ser um crime doloso, só é punido o agente que tem conhecimento da origem criminosa e pratica um ato inerente a este processo, seja ocultando o valor para afastá-lo da origem, seja praticando atos de dissimulação para obter a aparência de licitude, seja ainda, utilizando na atividade econômico-financeira, depois dos procedimentos de dissimulação.

Pois bem. O professor Damásio de Jesus, ao comentar a receptação dolosa em que o agente “deve saber” da origem criminosa da coisa, o aceita como forma de dolo eventual asseverando que ele é interpretado em sentido estrito “não envolvendo conhecimento e sim probabilidade”. Assim, “em face das circunstâncias, ele deveria ter pleno conhecimento da proveniência ilícita” 3.

Acontece, porém, que na lavagem de dinheiro será impossível ao prestador de serviços, notadamente ao advogado, analisar circunstâncias do cliente, sem prejulgá-lo; ou seja, para ter pleno conhecimento, em face das circunstâncias, será necessário aplicar a presunção da culpa e investigá-lo.

Lembre-se que enquanto na receptação o agente recebe o produto criminoso, aceitando o preço e tendo condições de analisar todas as circunstâncias que cercam o negócio, na prestação de serviços o preço é estabelecido pelo prestador e não é possível analisar todos os aspectos da vida do cliente, sob pena de ofender sua privacidade e sua intimidade.

Imagine-se, assim, um advogado tributarista que atende a uma pessoa taxada, pelo fisco, de sonegadora; no projeto de lei, a sonegação também será crime antecedente. Dessa forma, para não assumir o risco de ser acusado de que deveria saber da origem criminosa do dinheiro, será necessário julgar o cliente ou presumir sua culpa e, de qualquer forma, quebrar seu sigilo para saber se os honorários serão pagos com o dinheiro “limpo” ou se com o produto da “sonegação”.

Pior ainda, será o caso dos criminalistas: imagine-se a defesa de um traficante. Só será possível aceitar a causa se restar comprovada a origem do dinheiro. Sim, porque ainda que o advogado receba o dinheiro na conta de sua pessoa jurídica, advindo de uma conta corrente bancária, ainda assim, não haverá de faltar acusadores afirmando, no caso de condenação do sujeito, que o advogado deveria saber da origem ilícita, pois foi o primeiro a analisar o caso.

E o médico? Imagine-se uma cirurgia plástica que altere as características da face de uma pessoa. Pobre do médico se o paciente for um mega-traficante: enfrentará um processo.

Enfim, um rematado absurdo.

É evidente que os exemplos possuem um toque de extremismo, mas não menos certo é que a experiência profissional mostra que atos extremos não são, nos dias atuais, verdadeiramente exceções. O risco é concreto.

Trata-se, então, de ferir de morte o direito de defesa e o princípio da presunção de inocência.

E não se diga que estou a defender o recebimento de quantias ilícitas, como pagamento por prestação de serviços. Quem recebe honorários, obedecendo às formalidades legais, deve presumir que o dinheiro do cliente, vindo de sua conta-corrente, passou pelo controle das normas que combatem a lavagem de dinheiro nos bancos.

Não há obrigação, além das regras formais que norteiam o recebimento de valores e a conseqüente oferta à tributação, sob pena de ofensa ao princípio da presunção de inocência, e de invasão à privacidade e à intimidade. A manutenção dessa redação prejudicará, não tenho dúvida, o direito de defesa.

Esperam-se atitudes concretas e efetivas da Ordem dos Advogados do Brasil. E que não faça como a publicamente cansada OAB/SP, que se limita a protestar por meio do jornal da categoria, sem agir, de forma concreta, para a solução dos problemas inerentes ao direito de defesa.

Notas de rodapé

1- GÜNTHER, KLAUS. Crítica da Pena II. Revista Direito GV, São Paulo, v.3, n.1, p.137-149, jan-jun 2007.

2- BURGARELLI, ACLIBES. Reflexões sobre Sociedades Simples no Direito de Empresa .Disponível em:www.professoramorim.com.br. Acesso em 24-09-20007.

3- JESUS, DAMÁSIO E. DE. O “sabe” e o “deve saber” no crime de receptação. Boletim IBCCRIM n. 52- Março/1997.

Autores

  • é advogado criminalista, mestre em Direito Processual penal pela PUC-SP, coordenador e professor do curso de especialização em direito penal econômico da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (GVlaw).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!