Dever de informar

TV Globo não precisa pagar indenização por relatar acidente

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9 de outubro de 2007, 0h00

O princípio do acesso à informação pública está intimamente vinculado à liberdade de imprensa e está proclamado nos textos constitucionais brasileiros. Com este entendimento, o juiz Vitor Frederico Kümpel, da 27ª Vara Cível Central de São Paulo, livrou a TV Globo de pagar R$ 700 mil de indenização por danos morais porque veiculou reportagem sobre mortes em acidentes de trânsito, exibindo como exemplo um motorista indiciado por homicídio doloso ao dirigir bêbado.

O motorista, em agosto de 2001, atropelou e matou o “marronzinho” Lucio Formigioni Filho. No processo, o acusado alegou que estava com depressão profunda e tomava remédios fortes e que, antes dos fatos, havia ingerido um copo de cerveja e desmaiou no volante.

De acordo com o processo, o acontecimento virou notícia nacional em jornais e programas de TV. O acusado foi preso em flagrante e o processo, distribuído pela 1ª Vara do Júri da Barra Funda.

De acordo com o autor, após a sua liberdade provisória ser concedida, a Globo, por meio do repórter Marco Uchoa e sua equipe, dirigiram-se até a sua casa. Alegaram que queriam conversar sobre o acidente sem qualquer compromisso.

Ao entrar na casa do autor, ele e sua mulher afirmaram que estavam deprimidos, mas como o repórter disse apenas que era uma entrevista, o autor prometeu conversar sem qualquer filmagem.

Segundo ele, após alguns dias, apareceu no programa Globo Repórter, que informou seu nome, mostrando a sua família, bem como os familiares da vítima e dois amigos. Alegou que a reportagem relatou o crime praticado pelo autor, distorcendo tudo aquilo que este relatou ao repórter.

Diante disso, recorreu à Justiça. Alegou que ficou doente, seu pai morreu cinco dias após o programa ter ido ao ar, a sua vida ficou comprometida, pois não tinha mais condições de sair de casa, os filhos passaram por grandes humilhações, sua mulher sofreu grandes constrangimentos no trabalho e ele perdeu os clientes, pois trabalhava com transporte escolar.

A TV Globo, para se defender, alegou que a matéria jornalística é totalmente verídica e imparcial, com inegável interesse coletivo e amparada pelo legítimo direito/dever da imprensa em informar, principalmente o tema em questão, onde relatou apenas situações de extrema gravidade acerca de acidentes de trânsito.

Solicitou que a fita VHS fosse vista pelo juiz para que ele pudesse entender o real contexto da reportagem contestada, em especial para que ele reconhecesse o seu caráter eminentemente jornalístico e a isenção de qualquer sensacionalismo.

Ao verificar o conteúdo da reportagem, o juiz entendeu que a Globo apenas noticiou um acontecimento jornalístico envolvendo o autor, sem qualquer tipo de inverdade ou mesmo adjetivação desnecessária. “O conteúdo da fita contradiz as alegações do autor”, disse.

Ressaltou que a imagem do autor foi gravada em sua própria casa, para ilustrar reportagem que envolveu notório interesse público, o que não precisa de qualquer tipo de autorização, segundo ele.

Para o juiz Frederico Kümpel, as alegações de que o autor ficou doente depois do programa, do trauma criado na sua mulher e filhos e da morte do seu pai nada tem a ver com a conduta da TV Globo que apenas o referiu em seu programa sem nenhuma conotação pejorativa. “A ré apenas relatou os fatos.”

O juiz destacou que a matéria jornalística, além de verídica e imparcial, é de inegável interesse coletivo e amparada pelo legítimo dever da imprensa de informar. Entendeu que divulgação da imagem do autor e a narração dos fatos estão amparados pela liberdade que a imprensa tem.

Por fim, o juiz esclareceu que não houve violação ao direito à imagem ou qualquer ofensa à honra do autor. Por esse motivo, negou o pedido de indenização por danos morais.

Leia a decisão

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Processo 06.156448-0

27ª Vara Cível Central de São Paulo/SP

VISTOS.

PAULO SÉRGIO DI GIACOMO moveu ação de indenização por danos morais, pelo rito ordinário, contra GLOBO COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES S/A.

Na inicial (fls. 02/10), afirmou que o autor no dia 10 de agosto de 2001 se envolveu em um acidente de trânsito, ocasião em que atropelou e matou o marronzinho Lucio Formigioni Filho que operava o tráfego da Companhia de Engenharia de Tráfego.

Na ocasião, o autor estava com depressão profunda e tomava remédios fortes, sendo que antes dos fatos, havia ingerido um copo de cerveja e desmaiou no volante.

Diante do acontecimento, virou notícia nacional, em jornais e programas televisivos, sendo que o requerente foi preso em flagrante, sendo o processo distribuído pela 1ª Vara do Júri da Barra Funda, sendo o mesmo denunciado por homicídio doloso.

Após a liberdade provisória ser concedida pela justiça, a ré, por meio do repórter Marco Uchoa e sua equipe, dirigiram-se até a casa do autor alegando que queriam conversar sobre o acidente sem qualquer compromisso. Ao entrar na casa do autor, sua mulher e este, afirmaram que estavam deprimidos, mas como o repórter disse apenas que era uma entrevista, o autor prometeu conversar sem qualquer filmagem.


Contudo, após alguns dias, o autor apareceu na televisão, no programa Globo Repórter, sendo informado seu nome, mostrando a sua família, bem como, os familiares da vítima e dois amigos, relatando que o acidente foi um crime praticado pelo autor, distorcendo tudo aquilo que este relatou ao repórter.

Diante disso, o autor ficou doente; seu pai veio a falecer cinco dias após o programa ter ido ao ar; a sua vida ficou comprometida, pois não tinha mais condições de sair de casa; os filhos passaram por grandes humilhações; sua esposa sofreu grandes constrangimentos no trabalho, diminuindo sua produtividade e culminando com sua demissão; o autor perdeu os clientes, pois trabalhava com transporte escolar.

O autor foi preso arbitrariamente em flagrante e ficou detido por 4 meses.

Houve impronúncia pelo Primeiro Tribunal do Júri, desclassificando-se o crime, na medida em que o juiz decidiu que o acusado não queria o resultado morte e sequer assumiu o risco de produzi-lo.

A requerida não colocou a verdade no ar, editou a matéria a bel prazer. Discorreu sobre o direito à imagem.

Pediu a procedência da ação para condenar a ré à indenização por dano moral em 2.000 salários mínimos.

Juntou documentos (fls. 11/39).

Houve resposta.

Citado regularmente (fls. 47), a ré ofereceu contestação (fls. 65/75), na qual alegou que a matéria jornalística é totalmente verídica e imparcial, imbuída do inegável interesse coletivo e amparada pelo legítimo direito/dever da Imprensa em informar, principalmente o tema em questão, onde relatadas situações de extrema gravidade acerca de acidentes de trânsito.

Pugnou pela assistência da fita VHS, possível de aferir o real contexto da reportagem impugnada, em especial o seu caráter eminentemente jornalístico e a isenção de qualquer sensacionalismo.

Conforme confessado pelo próprio autor, o mesmo foi responsável pela morte do funcionário da CET após ter ingerido uma grande quantidade de álcool. Tal fato não poderia passar despercebido pela equipe da ré, especialmente no contexto “Globo Repórter”, o qual enfocou o relevante tema da ingestão de bebida alcoólica e acidentes de trânsito.

A ré apenas noticiou um acontecimento jornalístico envolvendo o autor, sem qualquer tipo de inverdade ou mesmo adjetivação desnecessária.

A imagem do autor foi gravada em sua própria casa, para ilustrar reportagem que envolveu notório interesse público, o que prescinde de qualquer tipo de autorização. Na exígua cena em que aparece o autor não se vislumbra nenhuma colocação pejorativa capaz de denegrir a reputação, a dignidade ou o decoro.

Pediu a improcedência da ação.

Juntou documentos (fls. 50/63).

Réplica (fls. 78/81).

As partes foram instadas a se manifestar sobre as provas a produzir (fls. 82).

O autor requereu a produção de prova testemunhal (fls. 84).

A ré pugnou também pela prova testemunhal, oral e documental (fls. 86).

Saneador (fls. 87).

Foi realizada audiência de instrução e julgamento (fls. 90), momento em que foi colhida a oitiva de uma testemunha do autor, em termo próprio.

Alegações finais da ré (fls. 97/98) e do autor (fls. 100/104).

É o relatório.

FUNDAMENTO e DECIDO

A ação é improcedente. Trata-se de ação de natureza condenatória em que o autor Paulo Sergio Di Giacomo pretende que a ré, Globo Comunicação e Participações Ltda. lhe pague a quantia de R$700.000,00 (setecentos mil reais) por danos morais.

Em relação à aparição do autor no programa Globo Repórter da Rede Globo, cabe ressaltar o seguinte: este juízo assistiu à fita anexada aos autos do referido programa que tratou da questão das mortes em acidentes de trânsito no Brasil. Essa era a temática. Foi narrado, entre outros casos, o acidente em que foi dito que o autor dirigia sob efeito da combinação de álcool e antidepressivo; acidente no qual atropelou o “marronzinho” Lucio Formigioni Filho que operava o tráfego da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) e que culminou com a sua morte.

Observando o vídeo, verifica-se que a aparição do autor na televisão se deu por um período de 23 (vinte e três) segundos. Abriu o portão de sua casa/residência, o repórter adentrou e as imagens se passaram em um cômodo que parecia uma “sala”. Mas, tal não importa.

Relatou ao repórter poucas palavras. Disse que “não tinha essa imagem, viu um cone caído na minha frente, viu alguma coisa desse tipo e de repente um estrondo e o que o deixou muito mal é que não teve a intenção de jogar o carro contra a vítima”. Proferiu, portanto, essas palavras, no tempo de 23 (vinte e três) segundos.

O repórter não fez nenhum comentário ou manifestação. No programa, em relação ao caso do autor, tendo em vista que o Globo Repórter enfocou outros casos relacionados ao tema, foi dito da sensação de impunidade pela família da vítima e que o autor esperava a decisão em liberdade e que nem havia sido cassada a sua carteira.


Houve depoimentos de pessoas, principalmente, as ligadas às vítimas de tais acidentes.

Dessa forma, a insurgência do autor em relação à ré não prospera, na medida em que as cenas que se passaram na televisão não se coadunam com o narrado na petição inicial. O próprio autor disse que seria somente uma entrevista e foi realmente o que ocorreu, nem se ouviu a fala do repórter. Também não passou nenhuma cena em que o autor tenha caído em prantos. Igualmente, não foi passada nenhuma imagem da esposa do autor ou seus familiares.

Dessa forma, o documento (vídeo) contraria a fala do autor a fls. 04: “…… relatando para o autor que deram seu nome completo, mostrando ainda ela e seus filhos, bem como os familiares da vítima e dois amigos, que relataram o acidente foi um crime praticado pelo autor, distorcendo tudo aquilo que foi conversado com o repórter Marco Uchoa”.

Nota-se, pelas imagens do programa, que não houve a alegada aparição da mulher e filhos. Os familiares da vítima deram simplesmente o seu depoimento diante da trágica morte de Lucio Formigioni Filho.

As alegações do autor de que ficou doente depois do programa; além de ter criado um trauma para sua esposa e filhos; que o seu pai veio a falecer cinco dias após o programa; que não tinha condições de sair de casa; que seus filhos passaram por humilhação na escola; que houve demissão de sua esposa do banco em que trabalhava; que perdeu clientes etc. nada tem a ver com a conduta da ré que apenas o referiu em seu programa, haja vista o tema a ser abordado, sem nenhuma conotação pejorativa ou incriminadora. A ré apenas relatou fatos.

O próprio autor noticiou na petição inicial que foi denunciado por homicídio doloso. O fato de ter sido preso em flagrante, ficar detido por quatro meses vivendo em uma cela (fls. 04), como demonstra em seu relato, não tem qualquer ligação com a ré.

Aliás, não foram exploradas nenhuma dessas informações no programa. Pode-se perceber, ao assistir o vídeo anexado, que não houve veiculação de nenhuma inverdade e, tampouco, informações distorcidas.

Os tristes consectários narrados pelo autor não podem ser imputados à ré, mas sim, aos próprios fatos ocorridos, na medida em que, estando em depressão e administrando remédios fortes, como dito pelo próprio autor, este não poderia ter ingerido bebida com teor alcoólico e, muito menos, ter dirigido após isso.

Os documentos juntados na demanda criminal dão conta de que o autor não ingeriu apenas um copo de cerveja, pois o laudo de verificação de dosagem de álcool em seu sangue apontou resultado de 2,2 g por litro de sangue, sendo que o permitido é apenas 0,6 g por litro. Portanto, estava em estado de embriaguez, exatamente o foco do programa televisivo, visto tratar do tema: “mortes em acidentes de trânsito no Brasil e ingestão de bebida alcoólica”.

Assiste razão a ré. Como bem dito em sua defesa: “… a matéria jornalística ora em discussão, além de totalmente verídica e imparcial, está imbuída do inegável interesse coletivo e amparada pelo legítimo direito/dever da Imprensa em informar, principalmente o tema em questão, onde relatadas situações de extrema gravidade acerca de acidentes de trânsito” (fls. 66/67).

Vale lembrar que o princípio do acesso à informação pública está intimamente vinculado à liberdade de imprensa e está proclamado nos textos constitucionais brasileiros. Fala-se em “direito à informação jornalística”, considerada mais ampla e abrangente de que qualquer espécie de mídia possível para a divulgação de opinião, crítica ou notícia.

Inevitável que desse contexto surge o complexo paradoxo que deve ser sopesado, ou seja, o respeito à moral e aos direitos da personalidade em contraposição ao direito de prestar informação de cunho jornalístico, denotando distintamente dois bens jurídicos: a liberdade de expressão e a violação de natureza moral e até material por aqueles que se sentem violados por condutas na mídia em geral.

A figura da imprensa corresponde, em verdade, a um direito da própria sociedade, denotando a sua missão pública, pois inegável a repercussão de sua veiculação que acaba por influenciar a sociedade em seus mais variados comportamentos. Saliento essa vertente da notícia pois deve se direcionar ao bem maior da coletividade.

No caso presente, a ré agiu de maneira correta, na medida em que simplesmente, estribada no interesse público que ressaltei, apenas informou os telespectadores, de maneira legítima. A uma porque a informação foi verdadeira e, a duas, a veiculação da informação era imprescindível para passar o conteúdo da notícia.

Não houve intenção de macular o nome de outrem, não houve imprudência na forma da publicação da notícia, portanto, não podemos falar em danos morais, na medida em que ausente qualquer nexo de causalidade entre a conduta da ré e os danos alegados pelo autor, que, como já dito, se ocorreram, são consectários da própria tragédia em si.

Dessa forma, a divulgação da imagem do autor e a narração dos fatos estão amparados pela liberdade que tem a imprensa, no seu intuito de informar o público, o que se permite em uma sociedade democrática e livre. Portanto, a ré procedeu de modo correto, noticiando um acontecimento jornalístico, sem cometer qualquer sensacionalismo (basta verificarmos a fita de vídeo dando conta do programa exibido).

Não havendo que se falar em desautorização da transmissão da imagem do autor; não havendo que se falar em violação ao direito à imagem ou qualquer ofensa à honra, pois como dito já no início da presente fundamentação, inexiste caráter pejorativo, mas, simplesmente, informação de fatos verdadeiros, com caráter jornalístico empreendido pelo programa Globo Repórter.

A ré, dessa forma, exerceu um regular direito, não podendo ser-lhe imputada qualquer conduta dolosa ou culposa a gerar a pretendida indenização de R$700.000,00 (setecentos mil reais).

Assim, a improcedência é de rigor.

Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE a ação de indenização por danos morais, pelo rito ordinário, que PAULO SÉRGIO DI GIACOMO moveu contra GLOBO COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES S/A e condeno o autor ao pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios que fixo (CPC, art. 20, § 3º) em 20% (vinte por cento) do valor da causa, observado o disposto no artigo 12 da Lei 1.060/50 para o autor.

Extingo o feito nos termos do inciso I do artigo 269 do Código de Processo Civil.

P. R. I. C.

São Paulo, 25 de setembro de 2007.

VITOR FREDERICO KÜMPEL

Juiz de Direito

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