O dono do voto

Infidelidade, que elegeu Tancredo, começou a cair em 1989

Autor

6 de outubro de 2007, 0h01

A revisão da jurisprudência no Supremo Tribunal Federal sobre a fidelidade partidária se desenha há pelo menos 18 anos, quando o tribunal se debruçou sobre a manutenção de mandatos de suplentes infiéis. Na ocasião, prevaleceu a tese da infidelidade partidária. Mas, já então, o ministro Celso de Mello, hoje o decano do STF, defendia o fim do mandato dos infiéis.

Em 1989, quando o infidelidade dos suplentes foi julgada, Celso de Mello acentuou que votos são “patrimônio dos partidos políticos”. Ele explicou que a filiação partidária é condição para que o candidato concorra nas eleições. “Em nosso direito eleitoral, as candidaturas representam um monopólio dos partidos políticos, inexistindo, em conseqüência, a possibilidade de candidaturas extrapartidárias.”

Celso de Mello considerou que o suplente, ao mudar de partido, perde o direito de assumir uma vaga aberta. O ministro também observou que o mesmo deveria acontecer com os titulares. No entanto, observou que não se podia falar de cassação, já que a Constituição Federal prevê as formas de cassação e a infidelidade partidária não é uma dessas causas. No julgamento, em 1989, também votaram pela fidelidade partidária os ministros Paulo Brossard e Sydney Sanches, já aposentados. Como Celso de Mello, Brossard também estava no julgamento do Supremo que consagrou a fidelidade partidária, na semana passada. Ele atuou como advogado do PSDB e do DEM.

Cláusula de fidelidade

Em dezembro do ano passado, o Supremo se debruçou sobre a constitucionalidade da cláusula de barreira, que restringia a atuação dos partidos nanicos. Foi declarada a inconstitucionalidade da cláusula e, pelo menos, seis ministros apontaram, então, a fidelidade partidária como mecanismo para moralizar a vida partidária no Brasil.

Marco Aurélio passou pela questão muito sutilmente. Em seu voto, afirmou: “Surge incongruente assentar a necessidade de o candidato ter, em primeiro passo, o aval de certo partido e, a seguir eleito, olvidar a agreminação na vida parlamentar. O casamento não é passível desse divórcio”.

No mesmo julgamento, o ministro Gilmar Mendes, em dezembro também, alertou para a necessidade de o Supremo rever a sua jurisprudência que até então favorecia a infidelidade partidária. Para ele, “a mudança de partido se constitui, sem sombra de dúvidas, uma clara violação à vontade do eleitor e um falseamento grotesco do modelo de representação popular pela via da democracia de partidos”.

Gilmar Mendes afirmou, já na época, que a infidelidade era sim motivo para a perda do mandato. “Na verdade, embora haja participação especial do candidato na obtenção de votos com o objetivo de posicionar-se na lista dos eleitos, tem-se que a eleição proporcional se realiza em razão de votação atribuída à legenda.”

Troca de regimes

Na quinta-feira (4/10), depois de nove horas de julgamento, o Supremo finalmente consolidou seu entendimento a favor da fidelidade partidária. Foram oito votos pela fidelidade partidária. Apenas Eros Grau, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski entenderam que a infidelidade não é motivo para a perda do mandato pois a hipótese não está prevista na Constituição para a cassação.

Era esse mesmo o questionamento do ministro Celso de Mello em 1989. No julgamento de quinta, ele mesmo apresentou uma saída: a perda do mandado pela infidelidade não é uma cassação, mas uma expressão do candidato ao deixar seu partido por vontade própria.

A manifestação da corte a favor da fidelidade partidária é o início de uma reforma política que o Congresso Nacional teima em não fazer. Denota a redemocratização do país. A fidelidade ao partido era usada como ameaça durante a ditadura. O parlamentar que votasse contra a orientação oficial do partido corria o risco de perder o mandato.

Na abertura democrática, a infidelidade teve sua utilidade. Como lembrou o ministro Gilmar Mendes ao proferir seu voto na quinta feira, com a estrita observância da fidelidade partidária, Tancredo Neves não teria sido eleito presidente do Brasil, no ato que consumou a transição lenta e segura rumo à democracia. Hoje, o quadro político clama por fidelidade para começar a colocar ordem e emprestar coerência ao caótico quadro político-partidário.

Clique aqui para ler o voto do ministro Gilmar Mendes, no julgamento da cláusula de barreira em dezembro de 2006.

Leia o voto do ministro Celso de Mello, em julgamento de outubro de 1989.

MANDADO DE SEGURANÇA Nº 20.916 DISTRITO FEDERAL

VOTO

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: As concepções em torno da natureza do mandato representativo, no moderno constitucionalismo, evoluíram no sentido de, nele, vislumbra-se a existência de um duplo vínculo: o de caráter popular e o de índole partidária.


O mandato decorrente da investidura político-eleitoral constitui a expressão formal tanto de uma representação popular como de uma representação partidária.

Esse novo sentido do mandato representativo conduziu ao fortalecimento da vinculação partidária, cuja realidade não pode ser desconhecida na análise do tema do mandato eletivo.

Em nosso direito eleitoral, as candidaturas representam um monopólio dos partidos políticos, inexistindo, em conseqüência, a possibilidade de candidaturas extrapartidárias. O Código Eleitoral é peremptório ao preceituar, em seu art. 87, que somente podem concorrer às eleições candidatos registrados por agremiações partidárias.

O monopólio partidário das candidaturas é tão inquestionável que gera, como natural conseqüência, a nulidade, para todos os efeitos, dos votos dados a candidatos não registrados por Partidos Políticos.

Desse monopólio, resulta a exigência de prévia filiação político-partidária, como requisito ou pressuposto de elegibilidade. Trata-se de condição hoje expressamente alçada ao plano constitucional.

A nova Constituição brasileira, ao prescrever em seu art. 14, parágrafo 3º, as condições de elegibilidade, a serem observadas pelo legislador eleitoral, referiu-se à filiação partidária. Celso Ribeiro Bastos (“Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 2, p. 584, 1989, Saraiva), ao analisar o preceito constitucional referido, expressou juízo categórico, verbis: Estamos em um regime democrático com sustentação partidária. Aos partidos políticos cabe a intermediação entre o povo e os governantes. Para que este regime partidário prevaleça, torna-se necessária a filiação partidária”.

Esse aspecto torna extremamente significativa a participação dos partidos políticos no processo do poder. As agremiações partidárias, cuja institucionalização jurídica é, no Brasil, historicamente recente, atuam, no contexto para o qual foram concebidas, como corpos intermediários, posicionando-se entre a sociedade civil e a sociedade política.

Os partidos políticos, assim, tornam-se elementos revestidos de caráter institucional, absolutamente indispensáveis na dinâmica do processo político e governamental.

Por isso mesmo, a Lei Fundamental de Bonn, promulgada em 1949, já definia, claramente, a função política das agremiações partidárias: “Os partidos concorrem para a formação da vontade política do povo” (v. art. 21, nº 1).

A vinculação partidária do mandatário político é tão intensa — e condicionante —, que a própria ordem jurídica, uma vez mais, constitucionalizou o dever de fidelidade partidária (CF/88, art. 17, parágrafo 1º), o que não significam, porém, tenha sido reintroduzida em nosso Direito positivo a decretabilidade da perda do mandato por ato caracterizador de infidelidade partidária.

Contudo, é fato inquestionável que a exigência de fidelidade partidária traduz, na concreção do seu alcance, um valor constitucional, revestido de elevada significação político-jurídica, a que se deve dar conseqüência, sob pena de inibição de seu conteúdo eficacial.

Por isso mesmo, adverte José Afonso da Silva (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 349, 5ª. Ed., 1989, RT), a disciplina e a fidelidade partidárias condicionam a própria elaboração dos estatutos dos Partidos Políticos, que deverão prevê-las, ”dando conseqüências ao seu descumprimento e desrespeito”, especialmente porque o “ato indisciplinador mais sério é o da infidelidade partidária”. O ilustre constitucionalista admite, até, sanções expulsivas imponíveis ao filiado infiel, mas acentua a impossibilidade de decretação da perda do mandato por infidelidade partidária.b

A Constituição protege o mandato parlamentar. A taxatividade do rol inscrito em seu art. 55, que define em numerus clausus as hipóteses de perda do mandato, representa verdadeira cláusula de tutela constitucional destinada a preservar a própria integridade jurídica do mandato legislativo. Por isso mesmo, não há mais que aludir á perda do mandato representativo por ato de infidelidade partidária. Essa possibilidade — introduzida como sanção jurídica imponível ao parlamentar infiel pela Carta de 1969 — foi suprimida pela Emenda Constitucional n. 25, de 1985, deixando de ser renovada pela Constituição vigente, promulgada em 1988.

Outra, porém, é a situação do suplente, que, precisamente por não titularizar mandato legislativo, não dispõe das prerrogativas institucionais concedidas aos congressistas e nem sofre as incompatibilidades a estes impostas. Ambas as situações — a dos parlamentares e a dos suplentes — são reciprocamente irredutíveis e juridicamente inconfundíveis.


O estatuto dos congressistas reside na própria Constituição. A condição jurídica do suplente é disciplina por lei.

O sistema jurídico-eleitoral da representação proporcional estabelece um vínculo especial entre a comunidade dos eleitores e as agremiações partidárias que se tornam destinatárias precípuas dos votos por eles manifestados.

Destinam-se os votos, dessa maneira, sempre, à legenda partidária, inobstante a designação nominal de um dos seus candidatos pelo eleitor. Os votos computados constituem, em nosso Direito positivo, um patrimônio dos partidos políticos.

O candidato não eleito, que ostente a condição de suplente, está necessariamente condicionado, em sua expectativa de assumir o mandato, pela preservação da atualidade do vínculo partidário com a agremiação sob cuja legenda disputou o processo eleitoral.

Desfeito o vínculo — cuja restauração só opera efeitos ex nunc —, aquela expectativa de direito não mais poderá transformar-se em direito subjetivo do antigo filiado à investidura no mandato eletivo.

Com a extinção do vínculo, o antigo filiado perderá a sua condição de suplente da antiga agremiação partidária e, assim, por não mais preservar a atualidade dessa suplência, demitir-se-á do direito de suceder ao titular do mandato que, por razão qualquer, teve, nele, cessada a sua investidura.

A mera condição de alguém como suplente não lhe permite patrimonializar o direito de assumir o exercício do mandato eletivo.

Os mandatos representativos estão fortemente impregnados de caráter partidário. É uma realidade político-jurídico que não pode ser recusada. Esta própria Corte — quando da cassação do registro do Partido Comunista do Brasil — já havia acentuado tal aspecto: “… Cassado o registro de partido político, necessariamente se extinguem os mandatos dos parlamentares por ele registrados” (Revista Forense, vol. 131/61). Ou, ainda: “É legítimo o ato da Mesa de Casa Legislativa, de extinção do mandato de parlamentar filiado a partido político que teve seu registro cassado” (Revista Forense, vol. 131/106).

O eminente Ministro Luiz Gallotti, quando Procurador-Geral da República, em parecer exaustivo sobre a matéria, assinalou que “a cassação do registro de partido político acarreta a perda do mandato dos eleitos sob sua legenda, porque os deputados e senadores no sistema constitucional brasileiro não representam apenas o povo, mas, também, os partidos a que se filiaram” (Revista Forense, vol. 125/74).

Esses aspectos justificam a tese do impetrante, no sentido de que a preservação dos vínculos com o Partido Político, sob cuja legenda foi disputado o processo eleitoral, constitui requisito de investidura do .suplente no mandato parlamentar.

Trata-se de entendimento perfeitamente compatível com a exigência político-jurídica de fortalecimento das agremiações partidárias.

Por isso mesmo, a relação de contemporaneidade entre a abertura da vaga, a sua imputação a determinado partido político e a integridade do vínculo partidário constituem fatores determinantes da concretização, em direito subjetivo, de uma situação de mera expectativa, até então.

Assim, voto pela concessão do mandado de segurança.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!