Direito x dever

Fugir de uma prisão decretada não é direito de ninguém

Autor

  • Bruno Calabrich

    é mestre e doutorando em direito; procurador regional da República. Autor de "Investigação Criminal pelo MP: fundamentos e limites constitucionais" (São Paulo: RT 2007).

2 de outubro de 2007, 12h45

Surpreendeu a muitos a declaração feita recentemente pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, por ocasião da prisão em Mônaco do banqueiro Salvatore Cacciola, condenado no Brasil a 13 anos de prisão. Segundo o ministro “o acusado tem o direito natural de fugir”. A frase foi divulgada por quase todos os principais veículos da imprensa nacional. Mas será que é mesmo direito de todo acusado, em face de quem foi legalmente decretada e executada uma prisão, fugir?

A todo direito corresponde um dever. Esse dever pode tocar tanto a um sujeito individualmente considerado quanto a todos indistintamente. Para cada direito que a ordem jurídica reconhece a um indivíduo, há, para todos os demais indivíduos, o dever correspondente de respeitar esse direito. O exercício regular de um direito é um ato lícito, e a ninguém é dado opor-se ao exercício regular desse direito. Assim agindo, pratica — aquele que se opõe ao exercício regular do direito — um ato ilícito. O senso popular tem pleno apoio na dogmática jurídica: “o direito de um acaba onde começa o direito do outro”.

Em formula sintética, pode-se dizer que a licitude de qualquer ato jurídico é reconhecida pelo ordenamento jurídico de cada país — sua Constituição e suas leis. Mesmo que se afirme que, ao legislador, cumpre apenas o dever de positivar os direitos que, em verdade, preexistem ao ordenamento, por serem naturais do homem (como afirmavam os jusnaturalistas), é fato insuperável que, num Estado Democrático de Direito, esses direitos hão de estar declarados, reconhecidos, ainda que de forma implícita nos textos escritos, extraído de suas normas fundantes ou de seus princípios.

Não é possível que um ato seja, ao mesmo temo, e dentro de um mesmo ordenamento, lícito e ilícito. Ou um ato é licito, porque o ordenamento assim o reconhece (expressa ou implicitamente), ou é ilícito.

Pois bem: se, quando decretada uma prisão, fosse direito de todo e qualquer acusado (ou investigado, ou condenado) fugir, não seria dado a ninguém, nem ao Estado, opor-se ao exercício regular desse direito. A ação do Estado que prende (ou que impede a fuga), seria sempre ilícita. Num ilogismo inevitável, ter-se-ia que toda e qualquer prisão no Brasil é ilegal.

Afirmar que a fuga é um direito de qualquer acusado é afirmar que a fuga é um ato lícito. Ocorre que, no Brasil, segundo nossa Constituição e nossas leis, a fuga é um ato ilícito, com sanções que vão além do pronto restabelecimento da prisão daquele que fugiu.

De fato, o Estado tem o direito — melhor dizendo, tem a função ou o poder-dever – de, existindo a necessidade concreta de uma prisão, efetuá-la. Essa necessidade deve estar documentada numa decisão judicial devidamente fundamentada. Não à toa, o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 estabelece que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”.

Pois bem: havendo decisão judicial — que mantém uma prisão em flagrante ou decreta a prisão de alguém —, é direito (poder-dever) do Estado executar, cumprir essa decisão, prendendo o acusado, investigado ou sentenciado. O mandado, a ordem de prisão, nada mais faz que materializar esse direito ou poder-dever do Estado. Se ao indivíduo não toca um dever específico de “se entregar” — é o Estado que tem o dever de prendê-lo —, igualmente não há para o indivíduo o direito de resistir a essa prisão, seja com violência ou ameaça, seja com a simples fuga. Muito pelo contrário, uma vez preso (aqui a palavra prisão tem o sentido de apreensão ou captura), o indivíduo tem o dever de acatar a ação do Estado, não praticando nenhum ato que caracterize um desrespeito a esse dever de apreendê-lo e de mantê-lo sob custódia.

A eventual violação ao poder-dever do Estado de efetuar uma prisão legal caracteriza um ato ilícito que tem como sanção imediata a recaptura daquela que foge, independentemente de que seja proferida uma nova decisão. Mas não é essa a única sanção.

A Lei de Execuções Penais é clara ao estabelecer a fuga como falta disciplinar grave (artigo 50, II, da lei 7.210/84). Vale ressaltar que a LEP se aplica tanto ao condenado por decisão transitada em julgado quanto ao preso provisório (artigo 2º, parágrafo único, artigo 39, parágrafo único, e art. 44, caput e parágrafo único, todos da lei 7.210/84). Fugir é uma infração disciplinar do preso — um ato ilícito, portanto — punível administrativamente na forma dos artigos 53 e seguintes da Lei de Execução Penais. E o Código de Processo Penal prevê a fuga como causa para o quebramento ou perda da fiança e para a decretação de revelia do acusado (artigos 327, 328, 341, 343, 344 e 367 do CPP). Em casos mais graves, quando há uso de violência ou ameaça, a oposição do indivíduo a sua prisão pode caracterizar até mesmo um ilícito de natureza penal: o crime de resistência (artigo 329 do Código Penal) ou o crime de evasão mediante violência contra a pessoa (artigo 352 do Código Penal). A fuga, como se nota, é um ato ilícito, juridicamente reprovável, embora nem sempre criminoso, e que pode ser sancionado por diversos meios, todos expressamente previstos em lei.

Com a afirmação de que “a fuga é um direito natural”, talvez se queira referir à condição imanente a todo ser humano de “busca da liberdade”. Mas nem toda a liberdade é lícita. Razões há para que, em determinadas situações concretas, conforme sedimentado em nossa Constituição e em nossas leis, alguém deva ser privado de sua liberdade de ir e vir. E, uma vez preso, não tem o direito de fugir.

Fugir (de uma prisão legalmente decretada) não é direito de ninguém, embora a liberdade de ir e vir seja um desejo imanente a todo ser humano. E de desejo a direito vai uma grande diferença.

Autores

  • é mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, ex-coordenador do Núcleo Criminal do Ministério Público Federal no Estado do Espírito Santo e procurador da República em Sergipe.

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