Cadeia no Pará

Caso da menina presa com homens virou jogo de empurra-empurra

Autor

  • Roberto Delmanto

    é advogado criminalista formado pela Faculdade de Direito da USP foi membro do Conselho de Política Criminal e Penitenciária do Estado de São Paulo e do Ilanud (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinqüente).

30 de novembro de 2007, 17h58

[Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo desta sexta-feira, 30 de novembro]

O mundo inteiro ficou chocado com a reportagem exibida pela CNN repercutindo a denúncia veiculada pela mídia brasileira sobre o perverso sistema policial e judiciário do Estado do Pará. E não é por menos. Impossível haver realidade mais grotesca: uma adolescente de aproximadamente 15 anos, apreendida por tentativa de furto, foi jogada em uma cela superlotada de homens, sendo abusada sexualmente por 26 dias.

A atrocidade praticada pelos detentos, movidos por instintos sexuais reprimidos pela privação da companhia feminina, acrescida de perversões das mais terríveis (a menina foi queimada com cigarro em regiões de seu corpo, teve o cabelo cortado e sofreu hematomas, por sorte não engravidou), não é menos repugnante da praticada por aqueles que a jogaram e a mantiveram naquele calabouço medieval.

Os delegados de polícia conhecem muito bem as delegacias em que trabalham, bem como os juízes e promotores de cidades pequenas como Abaetetuba — até porque estes têm o dever legal, previsto nos artigos 66, VI, e 68 da Lei de Execução Penal, de fiscalizar mensalmente as cadeias.

Logo após o episódio ser revelado, começou o “jogo de empurra”, típico dos que buscam justificar omissões, ora alegando desconhecimento dos fatos, ora que a culpa é do “sistema”.

O delegado-geral da polícia do rstado, em audiência no Senado, em vez de esclarecer os fatos, insinuou que seria a adolescente a culpada pelos estupros e torturas que sofrera, dizendo que ela deveria ter uma “debilidade mental” por não afirmar ser menor e tampouco denunciar os abusos.

Como se a autoridade policial não tivesse, ela, o dever de averiguar a identidade e a qualificação da pessoa presa, bem como o de vigiar o que acontece na cadeia que administra. Como se os delegados não soubessem que o inevitável ocorreria ao jogar essa menina no meio daqueles que se mostraram verdadeiras feras enjauladas.

Depois disso, o delegado-geral pediu exoneração, a qual foi aceita, tendo a governadora do Pará, Ana Júlia Carepa (PT), agradecido “pelos serviços prestados [pelo delegado] com ética e dedicação” (Folha, 29/11).

Furtando-se à responsabilidade, um dos delegados envolvidos declarou à mídia que a culpa não é deles, mas, sim, do sistema carcerário e, mais uma vez, da menor, que não teria declarado a sua idade.

A delegada de polícia responsável pela prisão foi flagrada pela mídia afirmando que sabia da condição ilegal de manter uma mulher com homens, chegando a afirmar que não teria controle do que é humano ou desumano diante da precariedade da delegacia.

A juíza da comarca, ao ser informada, cerca de longos dez dias após a prisão com homens, teria negado o pedido de transferência da adolescente, que ficou 26 dias nessas condições. E o promotor de Justiça da comarca, que certamente se manifestou nos autos desse pedido de transferência? Da parte deles, por enquanto, há inconfessável silêncio.

A governadora do Pará atribuiu a responsabilidade do ocorrido aos governos anteriores, por estar no cargo há somente 11 meses (“Tendências e Debates”, 28/11).

Buscando minimizar o estrago político, bem como prevenir, quiçá, eventual pedido de intervenção do governo federal com base no artigo 34, VII, b, da Constituição da República para assegurar a observância dos “direitos da pessoa humana”, baixou decreto proibindo o que já é proibido pelo artigo 82 da Lei de Execução Penal: mulher não pode ficar presa com homem. Anunciou, ainda, a demolição da malfadada carceragem, como se tal conduta simbólica apagasse o passado recente e, pior, como se o estado do Pará possuísse vagas sobrando para presos, vindo a agravar ainda mais a superlotação carcerária.

Demagogia à parte, gostaríamos de ressaltar que o artigo 13, parágrafo 2º, a, do Código Penal viabiliza a responsabilização criminal das autoridades públicas de escalões superiores que, tendo consciência da ilegalidade e o dever de agir para fazê-la cessar, omitem-se em evitar a tortura, o estupro e o atentado violento ao pudor.

Diz esse dispositivo: “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância”.

Resta a triste constatação de que muitas mulheres no Pará foram submetidas à mesma situação e estariam, agora, sendo transferidas para o único presídio feminino do estado, o que comprova que o caso dessa jovem não foi um episódio isolado, mas um retrato de uma contínua e institucionalizada violação dos direitos humanos.

Título alterado ás 22h45 desta sexta-feira (30/11)

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    é advogado criminalista formado pela Faculdade de Direito da USP, foi membro do Conselho de Política Criminal e Penitenciária do Estado de São Paulo e do Ilanud (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinqüente).

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