O mundo é das mulheres

É inconstitucional decisão que não aplica Lei Maria da Penha

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29 de novembro de 2007, 14h59

A Lei Maria da Penha revelou que a crise que vem minando a concepção patriarcal e milenarmente cristalizada do masculino aportou no Judiciário. A irreversível conscientização da sociedade, porém, vem rompendo o silêncio que por séculos ocultou a discrepância entre um Judiciário hermético e estacionário e o sentimento de justiça latente. Novos episódios, revelados pela imprensa, tornam visível a separação entre uma sociedade cidadã e vigilante e as decisões de juízes apegados ao princípio da igualdade formal.

Ao negar as medidas protetivas, previstas na Lei Maria da Penha, em defesa de 12 mulheres em situação de risco, um juiz afirmou que esta lei “é um conjunto de regras diabólicas, um mostrengo tinhoso” e inconstitucional. Antes, uma decisão de segundo grau já havia salientado que a lei “fere o direito fundamental da igualdade entre homens e mulheres e o princípio da proporcionalidade”. Estas decisões revelam o inconformismo pelo fato da lei ter elevado à categoria de violação dos direitos humanos a violência doméstica contra a mulher e o mesmo não ter feito em relação ao homem.

O Constituinte de 1988 exortou o legislador ordinário a adotar providências em defesa das vítimas da violência doméstica. Apesar de signatário da Cedaw e da Convenção de Belém do Pará, o Brasil negligenciava a questão da violência contra a mulher não dispondo de legislação específica. Precisou que o país fosse condenado pela OEA para que o legislador ordinário acordasse da sua cruel indolência e aprovasse, finalmente, a Lei 11.340/2006, que não é o primeiro instituto legal a selecionar e preferir certo segmento social para oferecer proteção.

Ao sustentarem a inconstitucionalidade da lei por não abarcar também uma suposta “violência doméstica contra homens”, os juízes esqueceram-se de uma regra elementar: em direito, o supérfluo é errôneo. Para além da igualdade formal do “todos são iguais perante a lei”, o artigo 3º da nossa Magna Carta reafirma como objetivos fundamentais da República a remoção dos obstáculos econômicos e sociais que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos e todas na organização política, econômica e social do país. Porque todos e todas devem ter as mesmas possibilidades concretas de exercer o próprio direito, os poderes públicos devem intervir para eliminar os privilégios e principais disparidades, eventualmente criadas pelo sistema econômico e social, através de leis que estabeleçam tratamento diferenciado a favor dos mais débeis, afim de reequilibrar o jogo e alcançar o bem-estar e a justiça social.

Homens e mulheres não nascem fisicamente iguais e nem são criados igualmente. É a polis, por meio do nomos, leis, costumes, opiniões, modo de pensar que torna possível uma ordem social igualitária. Como advertia Hannah Arendt, a igualdade é um construído convencional, que requer tratamento diferenciado para realizar-se plenamente. Decididamente, ao adotar medidas específicas de proteção exclusivamente à mulher, a lei se aproxima da moderna doutrina jurídica da Eficácia Horizontal dos Direitos Humanos a qual obriga o estado a intervir para proteger certas pessoas contra a violação desses mesmos direitos na esfera privada. Portanto, inconstitucional não é a lei, mas as decisões judiciais que denegam sua aplicação.

Quanto às manifestações de que a Lei é um “monstrengo tinhoso”, “o mundo é masculino”, “a idéia que temos de Deus é masculina” e a “desgraça da humanidade começou no Éden, com Eva”, por si só anulam o substrato empregado para sustentar a inconstitucionalidade da lei. Ora, se o Mundo é dos homens, que dominam a terra e tudo que nela existe e seu aliado incondicional é ninguém menos, que Deus, Um homem, e, se é certo que o direito surge, precisamente, para regular o poder do forte e proteger a parte débil do contrato, não faz sentido a pretensão invocada para acusar a lei de inconstitucional. Seguramente, o choque não se dá entre a lei e a Constituição, mas entre esta e a concepção patriarcal de mundo.

O mito de Adão e Eva foi invocado numa apologia à visão antropológica patriarcal e unidimensional que se tornou dominante no Ocidente depois da Inquisição que, desprezando o arquétipo da alteridade imanente ao cristianismo, mandou pra a fogueira cerca de 100 mil mulheres. Em “As Incômodas Filhas de Eva na Igreja da América Latina” a filósofa e teóloga, Ivone Gebara, nos dá uma pista para compreender a origem da misoginia: a absolvição de Adão e a condenação de Eva se explicam pela percepção profunda de seu poder como “mãe dos viventes”. Eva, a mãe da raça humana, é um símbolo maior para a própria humanidade homem/mulher, porque na sua expressão feminina, é humanidade que desencadeia as forças da vida, imensas, abissais, obscuras, indomáveis, sedutoras, ora silenciosas, ora estrondosamente barulhentas e que escapam da compreensão e controle da razão, daí a exigência de submeter e dominar essa força misteriosa.

Ressalte-se que a Igreja Católica do Brasil condenou o patriarcalismo na Campanha da Fraternidade de 1990, promovida pela CNBB, quando escolheu o tema “Mulher e Homem — Imagem de Deus”. O texto básico da Campanha esconjura a sociedade estruturada a partir da lógica do masculino e denuncia as diversas formas de violência doméstica e sujeição da mulher. Em 1992, a Conferência de Santo Domingo afirma que Deus é feminino e masculino e que o rosto de Jesus Cristo está na face da mulher que sofre a violência doméstica e a discriminação social.

Leonardo Boff considera que uma das funções importantes da razão cristã é des-construir as realidades, é desfazer os imaginários construídos em função de interesses de grupos e confrontar o ser humano com a sua “realidade Fontal”. Somente assim, afirma, podemos descobrir nossa dialética fundamental, pois cada ser é dia-bólico [desagregador] e ao mesmo tempo sim-bólico [que congrega], cada um é Adão, cada um é Cristo, cada um é águia que voa alto e, simultaneamente, é galinha que cisca cá embaixo. Somos seres pro-testantes, que se abrem ao Outro, que se abrem ao mundo, que se abrem à totalidade. Temos raiz e abertura, somos como as árvores fundadas no chão que nos dá a força para enfrentar as tempestades, mas também temos copa, que interage com os ventos, com as chuvas, com o sol e as estrelas. Sintetizamos tudo isso e transformamos em mais vida, conclui profeticamente.

A Lei Maria da Penha é um complexo e moderno diploma jurídico de alcance indiscutível que vem abalando os pilares da concepção de vida patriarcal. A par da conversão da violência doméstica contra a mulher em violação dos direitos humanos, essa lei abraçou as relações homoafetivas. Dispôs, também, de um amplo leque de medidas preventivas e protetivas e enumerou e definiu o que para a lei é considerada violência física, sexual, patrimonial e moral. Formulou uma definição do assédio moral doméstico, definição que, sem dúvida, deverá ser tomado como paradigma na formulação da lei de combate ao assédio moral no trabalho.

Num certo sentido, portanto, podemos dizer que a Lei Maria da Penha é diabólica, porque desagrega a estrutura de pensamento patriarcal sedimentada ao longo de milênios e coloca a questão feminina como uma questão da humanidade inteira, e, ao mesmo tempo é simbólica, já que desafia e propõe uma nova antropologia cujo primado é a relacionalidade dos seres entre si e com o mundo, e um feminismo que, longe de se reduzir à decepcionante superposição de papéis sociais, busca um novo pacto que une os princípios do masculino e do feminino a partir do respeito às qualidades pessoais de cada um na construção de uma humanidade diversa e harmônica.

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