União homoafetiva

Advogada deve pagar pensão alimentícia a ex-companheira

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28 de novembro de 2007, 17h45

Uma advogada está obrigada a pagar pensão alimentícia de dois salários mínimos para a ex-companheira, que é dona de casa. A liminar que impõe a obrigação foi concedida pela juíza Olinda de Quadros Altomare Castrillon, de Tangará da Serra, interior de Mato Grosso. A pensão provisória deve ser paga todo dia 10 de cada mês. A audiência de conciliação está marcada para o dia 16 de janeiro de 2008.

A dona de casa alegou que viveu durante sete anos com a advogada e fazia os trabalhos domésticos. Argumentou, ainda, que era mantida por ela e dividiam a mesma casa na cidade de Juína (MT). Em maio de 2007, segundo a dona de casa, a advogada terminou o relacionamento e pediu para ela ir embora. Por isso, foi à Justiça pedir pensão alimentícia.

“Embora a Carta Magna não tenha contemplado expressamente a união homoafetiva como relação familiar, conduz com tranqüilidade a esta conclusão, especialmente quando considerados os princípios basilares da dignidade humana, da igualdade substancial, da não discriminação (inclusive por opção sexual) e do pluralismo familiar, consagrando diferentes modelos de entidade familiar”, afirmou a juíza, que também concedeu assistência judiciária gratuita para a autora da ação.

A advogada tem um prazo de 15 dias para contestação, que começará a contar a partir da audiência de conciliação, se não houver acordo.

Leia a liminar:

Processo nº 1067/2007 (2ªVara Cível)

Ação de declaração e dissolução de união homoafetiva, c/c divisão de bens, alimentos e dano moral

Vistos etc,

A requerente sustenta que manteve uma união homoafetiva com a requerida por 07 anos, auxiliando nos trabalhos domésticos e sendo mantida por esta, pois dividiram a mesma casa na cidade de Juína até que, em data de 13 de maio de 2007, a requerida pôs fim ao relacionamento pedindo para que a requerente saísse de casa.

Requer a fixação liminar de alimentos provisórios, juntando aos autos os documentos de fls. 57/89.

Decido:

Primeiramente há de se salientar que, embora inexista lei especial a tutelar os relacionamentos homoafetivos, a ausência de regramento específico não quer dizer ausência de direito, pois existem mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os preceitos constitucionais (art. 4ª da LICC).

É inconteste que o relacionamento homoafetivo é um fato social que se perpetuou através dos séculos, não podendo o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo amor, assumem a feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não a diversidade de gêneros.

Há de se considerar que o afeto é a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, em atitude manifestamente preconceituosa e discriminatória.

É necessário deixarmos de lado as aparências para nos atermos à essência.

A família não se define exclusivamente em razão do vínculo entre um homem e uma mulher ou da convivência dos ascendentes com seus descendentes. Também pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, merecem ser reconhecidas como entidades familiares. Assim, a prole ou a capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, descabendo deixar fora do conceito de família às relações homoafetivas.

Estando presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas características.

A Desa. Maria Berenice Dias, integrante do R. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manifestou-se no Livro “Homoafetividade – o que diz a Justiça”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, pp.13/14, da seguinte fora:

“A correção dos rumos foi feita pela Constituição Federal, ao outorgar proteção não mais ao casamento, mas à família. Como bem diz Zeno Veloso, num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito. Restou o afeto inserido no âmbito de proteção do sistema jurídico. Limitou-se o constituinte a citar expressamente as hipóteses mais freqüentes – as uniões estáveis entre um homem e uma mulher e a comunidade de qualquer dos pais com seus filhos – sem, no entanto, excluir do conceito de entidade familiar outras estruturas que têm como ponto de identificação o enlaçamento afetivo. O caput do art. 226 é, consequentemente, cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade. Assim, não há como deixar que reconhecer que a comunidade dos filhos que sobreviveram aos pais ou a convivência dos avós com os netos não constituem famílias monoparentais.? Da mesma forma não é possível negar a condição família às uniões de pessoas do mesmo sexo. Conforme bem refere Roger Raupp Rios, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a um ser humano, em função da orientação sexual, significa dispensar tratamento indigno a um ser humano.” (grifo nosso).

A Constituição Federal consagra, em seu artigo 1º, inciso III, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, princípio este de direito natural, positivado em nosso ordenamento jurídico, que ressalta a necessidade do respeito ao ser humano, independente da sua posição social ou dos atributos que possam a ele ser imputados pela sociedade.

O direito constitucional brasileiro reconhece, através do princípio da dignidade da pessoa humana, que a pessoa humana tem uma dignidade própria e constitui um valor em si mesmo, que não pode ser sacrificado a qualquer interesse coletivo.

Este princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos, e, em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever de tratamento igualitário dos próprios semelhantes.

Este dever configura-se pela exigência de o indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria.

A concepção dessa noção de dever fundamental resume-se a três princípios do Direito Romano: honestere vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudicar ninguém) e sum cuique tribuere (dê a cada um o que lhe é devido).

Assim, se o ser humano constitui por si próprio um valor, que deve ser respeitado e preservado, é fundamental que qualquer tipo de relacionamento de seres humanos, desde que lícito, deve ser reconhecido pelo ente estatal, uma vez que os valores humanos fazem parte de seu próprio substrato emocional e intelectual.

Como corolário desse princípio, a nossa Carta Magna proclama o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à intimidade (art. 5º,caput) e prevê como objetivo fundamental, a promoção do bem de todos, ” sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV). Dispõe, ainda, que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º XLI).

Assim, a intenção da Carta Magna é a promoção do bem dos cidadãos, que são livres para ser, rechaçando qualquer forma de exclusão social ou tratamento desigual.

Portanto, a Constituição Federal, calcada no princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade, se encarrega de salvaguardar os interesses das uniões homoafetivas, e quanto à tutela específica dessas relações, aplica-se analogicamente a legislação infraconstitucional atinente às uniões estáveis.

Tratando-se a questão por analogia pode-se dizer que a união homoafetiva se assemelha a uma união estável e não a uma sociedade de fato como afirmam alguns julgadores, porque a “affectio” que leva estas duas pessoas a viverem juntas, a partilharem os momentos bons e maus da vida é muito mais “affectio conjugalis” do que “affectio societatis”. Estas pessoas não estão ali para obterem resultados econômicos com a relação, mas sim para trocarem afeto, e esta troca de afeto é que forma uma entidade familiar.

A família hoje se justifica exclusivamente pela busca da felicidade, da realização pessoal dos seus indivíduos, e esta realização pessoal pode dar-se dentro da heterossexualidade ou da homossexualidade, o que é uma questão de opção ou de determinismo que de qualquer forma deve ser respeitada.

Assim, é certo e incontroverso que o Direito de Família pós-modernidade não pode distanciar-se da legalidade constitucional, impondo uma estrita obediência às premissas postas na Carta Magna, que irradia os valores fundamentais da ordem jurídica brasileira.

O artigo 1º, inciso III da Constituição Federal estatuiu como princípio fundamental da República a dignidade da pessoa humana, elevando o ser humano ao ápice de todo o sistema jurídico, servindo (o princípio) como mola de propulsão da intangibilidade da vida do ser humano, dele decorrendo o necessário respeito à sua integridade física e psíquica e às condições básicas de igualdade e liberdade, além da afirmação da garantia de pressupostos materiais mínimos para que se possa viver.

Ora, a fundamentalidade do princípio da dignidade da pessoa humana impõe uma nova postura aos aplicadores do direito, que devem, na interpretação e aplicação de normas e conceitos jurídicos, prosseguir na luta contra tudo que ameace a completa integridade humana.

Este entendimento civil-constitucional, construído para a proteção da pessoa humana é que sobreleva afirmar a possibilidade de alimentos nas uniões homoafetivas, e não são poucos os motivos que, emanando da Lei Maior, justificam tal assertiva, conforme fundamentos acima expostos.

Primeiro, porque, embora a Carta Magna não tenha contemplado expressamente a união homoafetiva como relação familiar, conduz com tranqüilidade a esta conclusão, especialmente quando considerados os princípios basilares da dignidade humana, da igualdade substancial, da não discriminação (inclusive por opção sexual) e do pluralismo familiar, consagrando diferentes modelos de entidade familiar. Segundo porque a família moderna tem o seu ponto de referência no afeto, no amor, evidenciando como verdadeiro direito à liberdade de autodeterminação emocional, que se encontra garantida constitucionalmente. E, terceiro, porque a justificativa básica da obrigação alimentar é o princípio constitucional da solidariedade social (art. 3º), tornando evidente que a ratio essendi dos alimentos é à busca da afirmação, no plano concreto, da própria dignidade humana.

Assim, mesmo não estando contemplados no artigo 1.694 do novo Código Civil, que prevê sua possibilidade apenas entre parentes, cônjuges ou companheiros – entendo que os alimentos são devidos na união homoafetiva, eis que decorrem, logicamente, de princípios constitucionais, especialmente do dever de solidariedade social e da afirmação da dignidade da pessoa humana, que não pode ser vislumbrado como valor abstrato, desprovido de concretude.

Assim, se a relação homoafetiva, como qualquer outro relacionamento heterosexual, lastreia-se no afeto e na solidariedade, não há motivo para deixar de reconhecer o direito a alimentos em favor daquele que necessita de proteção material.

Considerando que no caso em análise estão demonstrados, em juízo provisório, os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, bem como a necessidade da companheria/requerente que sempre exerceu atividades domésticas, e da possibilidade da companheira/requerida que é advogada atuante, entendo cabível a fixação de alimentos provisórios em favor da requerente.

Portanto, recebo a presente ação para ser processada e julgada perante a Vara da Família desta Comarca, designando a data de 16/01/2008, às 13:30 horas para audiência de conciliação, e fixo os alimentos provisórios no valor correspondente a 02 salários mínimos vigente, a ser pago até o dia 10 de cada mês, diretamente para a requerente.

Consoante julgamento proferido nos autos de Procedimento de Controle Administrativo nº 165 pelo Conselho Nacional de Justiça, doravante, será o juiz competente para a causa que decidirá sobre a concessão ou não da Justiça Gratuita. Assim, passo a apreciar tal pedido.

A Lei nº 1.060/50 prescreve que:

“Art. 4º – A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.

Parágrafo primeiro – Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais.

Diante do exposto, defiro o pedido de assistência judiciária gratuita feito pela parte autora em sua petição inicial. Anote-se.

Cite-se a requerida para comparecimento, ciente que o prazo de 15 dias para contestação começará a fluir a partir da audiência de conciliação acima aprazada, caso infrutífera uma solução amigável.

Intime-se a autora, bem como seu patrono.

Cientifique-se o digno representante do Ministério Público.

Intime-se.

Expeça-se o necessário.

Cumpra-se.

Tangará da Serra, 28 de novembro de 2007.

Olinda de Quadros Altomare Castrillon

Juíza de Direito em substituição legal

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