Direito a intimidade

Não se pode quebrar sigilo só porque é única via de investigação

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23 de novembro de 2007, 23h00

Existe luz no fim do túnel para advogado criminalista, que defende cliente vítima de quebra de sigilo ilegal, solicitado pelo Ministério Público Federal e deferido pelo juiz, empenhados ambos em dar satisfação ao clamor público, mesmo quando isso significa violar a Constituição. A ministra Maria Thereza de Assis Moura, do Superior Tribunal de Justiça, decidiu frear esse tipo de atitude e determinou que o MP não pode pedir quebra de sigilo bancário ou fiscal, simplesmente por não existir outra forma de investigação. Por incrível que possa parecer, isso existe.

Os sócios da empresa Emesa S/A foram acusados de evasão de divisas por terem mandado ilegalmente dinheiro para o exterior por meio das chamadas contas CC-5 (que permitiam a remessa legal de dinheiro para o fora do país), entre 1992 e 1998. A Procuradoria da República do Rio de Janeiro instaurou procedimento administrativo-criminal, buscando a quebra do sigilo bancário e fiscal da Emesa, para comprovar suas suspeitas. A solicitação foi aceita, mesmo não existindo inquérito policial. Nesse caso, a “investigação” era conduzida pelo Ministério Público Federal.

O objetivo da Procuradoria da República era obter “mínimos elementos necessários à investigação”. O advogado da Emesa, Luís Guilherme Vieira, recorreu da decisão da primeira instância afirmando falta de fundamentação, mas o Tribunal Regional Federal da 2ª Região negou o recurso. Considerou a quebra de sigilo “indispensável para apurar a existência de indícios de irregularidade”.

No Superior Tribunal de Justiça, a ministra Maria Thereza de Assis Moura, conhecida pela defesa dos direitos fundamentais mesmo que isto resulte em sensação de impunidade por parte da população que desconhece as regras do Processo Penal, não acatou a decisão do TRF-2. Disse que o acórdão foi “proferido com argumentos vagos” e “sem amparo em dados fáticos que pudessem dar azo a procedimento tão drástico, com a invasão da intimidade do cidadão”.

Para a ministra, relatora do pedido de Habeas Corpus ajuizado por Luís Guilherme Vieira, “não se pode aceitar o argumento de que não há outra linha de investigação possível. Fosse assim, as portas estariam abertas para o poder estatal devassar a intimidade de todos, sem peias. Deve-se partir do fato para se alcançar a autoria. Não se admite investigar a vida dos cidadãos para, a depender da sorte, encontrar algum crime.”

“Toda intervenção na esfera íntima do cidadão deve ser encarada como exceção. Somente se justifica tal procedimento em caso de necessidade e atendendo-se aos requisitos legais, faticamente demonstrados”, considerou.

A decisão de declarar nula a quebra de sigilo autorizada pela Justiça também já foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal. “Meras ilações e conjecturas, destituídas de qualquer evidencia material, não têm o condão de justificar a ruptura das garantias constitucionais preconizadas no artigo 5º, X e XII, da Constituição Federal”, já entendeu o ex-ministro Maurício Corrêa, em março de 2002, ao julgar Mandado de Segurança com pedido de quebra de sigilo por Comissão Parlamentar de Inquérito. Essa tem sido a tendência dos Plenos do STJ e STF.

A 6ª Turma, por maioria de votos, concedeu a ordem para anular a decisão de quebra do sigilo fiscal decretada e decidiu que a prova colhida deveria ser envelopada, lacrada e encaminhada para a autoridade fiscal.

Ministro inconformado

No julgamento do HC no STJ, em agosto de 2006, também votaram os ministros Paulo Gallotti e Paulo Medina — hoje, afastado do Tribunal por suposto envolvimento num esquema de venda de decisões para favorecer o jogo ilegal. Gallotti votou pela manutenção da ordem de quebra de sigilo.

Medina acompanhou a ministra Maria Thereza e pareceu inconformado com o caso. “Apurar não é apurar de qualquer jeito, passando por cima, violentando a intimidade do cidadão. Apurar é usar a técnica mais científica possível, a mais aprimorada possível, é utilizar os recursos os mais aquinhoados possíveis, para conferir uma apuração com tranqüilidade, uma apuração sem publicidade prévia, uma apuração capaz de ensejar a punição que se quer e que se exige de quem está a delinqüir”, disse.

O então ministro ainda considerou que “o Direito Penal é o Direito da tríplice dolor: a dor do castigo, a dor da punição e a dor da apuração. Aqui, se assentou na dor da apuração. O poder estatal não deve romper, não deve devassar a intimidade de todos nós”.

“Quando observamos que autoridades, em quaisquer níveis, estão a estimular prisões, estão a incentivar apurações, estão a impulsionar a atuação das Polícias — federal e estaduais, em qualquer nível —, temos que nos preocupar um pouco e agir em nome da impunidade ou para combater a impunidade, mas devemos fazer isso em nome da garantia do cidadão”, disse.


Paulo Medina ainda usou o voto para desabafar sobre uma entrevista que o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, tinha dado para a revista Veja, Na reportagem, ele afirmava haver corrupção no Poder Judiciário. “É muito sério quando um homem, com o peso que tem o senhor ministro da Justiça, faz tal afirmação, porque esse fato enfraquece o Poder Judiciário, enfraquece o juiz, enfraquece a independência de cada um de nós. É quanto a essa manifestação que estou a discordar.”

“Penso que nós, ministros desta Casa, nós, advogados, nós, ministros políticos temos que estar unidos para corresponder à responsabilidade que é exigida de cada um de nós. Não podemos permitir que ninguém possa duvidar de nós, nem mesmo que autoridades de nível mais alto possam argüir um possível comprometimento do Poder Judiciário ou de seus membros”, desabafou.

Medina não imaginava, então, que menos de um ano depois de dizer essas palavras não totalmente desprovidas de sensatez, teria de se afastar da Corte, justamente por ser acusado de corrupção.

Leia a decisão

HABEAS CORPUS Nº 59.257 – RJ (2006/0106112-6)

RELATORA: MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA

IMPETRANTE: LUÍS GUILHERME VIEIRA E OUTROS

ADVOGADO: MARCELO LEAL DE LIMA OLIVEIRA

IMPETRADO: SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2A REGIÃO

PACIENTE: A K

PACIENTE: O P N

PACIENTE: E D P

EMENTA

INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE EVASÃO DE DIVISAS. QUEBRA DE SIGILO FISCAL. DECISÃO SEM MOTIVAÇÃO. REVOGAÇÃO.

1. Pedido e decretação de quebra de sigilo fiscal com o fim de colher mínimos elementos necessários à investigação.

2. Não foi declinado o fumus commissi delicti, pelo contrário, decretou-se a quebra a fim de buscá-lo.

3. Manifesta violação do art. 93, IX, da Constituição Federal.

4. Ordem concedida.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: "A Turma, por maioria, concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.Vencido o Sr. Ministro Paulo Gallotti que denegava a ordem." Os Srs. Ministros Nilson Naves, Hamilton Carvalhido e Paulo Medina votaram com a Sra. Ministra Relatora. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Paulo Medina. Dr. Luis Guilherme Vieira pelos pacientes.

Brasília, 22 de agosto de 2006 (Data do Julgamento)

Ministra Maria Thereza de Assis Moura

Relatora

RELATÓRIO

MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relator): Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário constitucional, com pedido de liminar, em favor dos pacientes acima mencionados, em que se afirma, resumidamente, o seguinte:

a) a empresa Emesa S/A, cujos sócios são os pacientes, teria, entre 1992 e 1998, de acordo com "dossiê" da Justiça Federal de Cascavel (PR), feito remessas de dinheiro ao exterior por meio das chamadas contas CC-5;

b) a Procuradoria da República do Estado do Rio de Janeiro, então, instaurou procedimento administrativo-criminal, buscando a quebra do sigilo bancário da Emesa, o que foi deferido pelo Juízo da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro (RJ);


c) a competência foi firmada perante a 3ª Vara Federal de Volta Redonda (RJ);

d) posterior requerimento de quebra de sigilo bancário dos pacientes visaria obter "mínimos elementos necessários à investigação";

e) não seria possível uma quebra de sigilo para se obter tais indícios mínimos;

f) o pedido foi deferido pelo Juízo; não existiria, até a presente data, inquérito policial;

g) não existiriam os "sérios indícios de prática criminosa relacionada à empresa Emesa", mencionados pelo Juízo;

h) tal decisum não apontaria onde se encontram citados indícios, além de estar sem fundamentação;

i) o writ originário restou denegado pelo e. Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por duas vezes;

j) o acórdão estaria fulcrado em "termos genéricos";

l) tanto o voto condutor, quanto o voto-vista não teriam demonstrado sob que fundamento se acusam os pacientes; segundo os impetrantes, "tudo não passa, é certo, de mero feeling ".

Liminarmente, pediu-se a sustação dos efeitos da decisão impugnada, até o julgamento do mérito do writ ou, alternativamente, caso o resultado da quebra do sigilo já tenha sido encaminhado ao Juízo, que seja lacrado para que ninguém possa ter acesso; no mérito, pleiteou-se seja declarada nula a decisão de quebra de sigilo fiscal dos pacientes.

Por fim, pediram os impetrantes sejam intimados da sessão de julgamento, bem como vista dos autos após o parecer ministerial e decretação de segredo de justiça nos presentes autos.

A liminar foi indeferida pelo Ministro Hélio Quaglia Barbosa, bem como o pedido de intimação para a sessão de julgamento e a vista dos autos após o retorno do Ministério Público Federal. Deferiu-se a decretação de segredo de justiça.

Diante da documentação acostada ao habeas corpus, dispensou-se a apresentação de informações. O Ministério Público Federal ofereceu parecer pela denegação da ordem, afirmando que "em situações como a presente, a conclusão a respeito de eventuais delitos só se faz possível através da quebra dos sigilos fiscal e bancário. Não há outra linha de investigação possível."

Sobrevieram dois pedidos de reconsideração do indeferimento da liminar. O primeiro foi indeferido pelo Ministro Peçanha Martins. O segundo continha, alternativamente, o requerimento de julgamento na sessão seguinte, uma vez que aos autos já foi juntado o parecer ministerial.

É o relatório.

VOTO

MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relator): A ordem deve ser concedida. Como salientava Carnelutti, o processo penal já configura, em si mesmo, uma pena para o réu. Os rigores da persecução penal são deveras estigmatizantes, daí a necessidade de cuidado no seu trato. Desde que se optou por um modelo de Estado de cariz democrático, em que se assinala a dignidade da pessoa humana como seu fundamento, toda intervenção na esfera íntima do cidadão deve ser encarada como exceção. Somente se justifica tal procedimento em caso de necessidade e atendendo-se aos requisitos legais, faticamente demonstrados.

Os autos cuidam de procedimento investigatório criminal em curso no Ministério Público Federal para elucidação de crime de evasão de divisas, perpetrado por meio de contas CC-5. O requerimento ministerial, fls. 88-89, bem assim, a decisão que determinou a quebra de sigilo fiscal dos pacientes, fls. 106-107, carecem de fundamentação.

Nas palavras do Procurador da República do Estado do Rio de Janeiro: "para a junção de mínimos elementos necessários à investigação, pleiteio a quebra do sigilo fiscal dos administradores do empreendimento, elencados à fl. 22, a fim de ser constatado se suas situações patrimoniais são compatíveis com os cargos ocupados e com os elevadíssimos recursos movimentados pela empresa gerida (ocorre seguidamente o uso de ‘laranjas’ em situações similares à presente)" (fls. 88).


O Juiz da 3.ª Vara Federal de Volta Redonda (RJ), assim decidiu: "Considerando que se encontram nos autos tão-somente os documentos fiscais da empresa EMESA S/A Ind. E Com. de Metais, referentes aos exercícios de 1993 e 1995, oficie-se à Delegacia da Receita Federal em Volta Redonda para ciência desta decisão e providências cabíveis, no sentido de que sejam remetidas a este Juízo as declarações do imposto de renda em nome da empresa, referentes aos anos de 1990 a 1992, 1994, 1996 a 2000, bem como de seus administradores, indicados no documento de fl. 22, referentes aos anos de 1999 e 2000, tendo em vista a data de ingresso destes na aludida empresa"(fls. 106).

Em sede de liminar, no habeas corpus n. 2005.02.01.002737-8, impetrado perante o Tribunal Regional Federal da 2.ª Região, o Juiz Federal Convocado França Neto deferiu liminar para sustar a quebra de sigilo fiscal, enfatizando: "vislumbram-se os requisitos em epígrafe para a concessão da liminar pleiteada, a uma, porque, inobstante a mera notícia de possível existência de fortes indícios de cometimento de ilícitos penais, ausente demonstração narrativa, ainda que mínima de que indícios fortes seriam estes; a duas, porque não se tem (não apontado), dentre os pacientes, quais seriam os efetivos executivos/administradores da empresa e; a três, porque não individuados os fatos específicos imputados a cada um deles" (fls. 96).

Cessada a designação do Juiz Convocado, no mérito, a ordem foi julgada e denegada, em acórdão relatado, então, pelo Desembargador Federal MESSOD AZULAY NETO, que enxergou fundamentação para a quebra. Constou do acórdão guerreado: "o afastamento, quanto aos dados fiscais em questão se faz necessário, na medida em que indispensável para a apuração da existência de indícios de irregularidades nas operações de remessas de divisas para o exterior, através das chamadas contas CC-5, não havendo que se falar em ausência de fundamentação da decisão que o decreta" (fls. 168).

A decisão de quebra do sigilo fiscal não se lastreou nos requisitos de cautelaridade. O acórdão do habeas corpus impetrado perante o TRF também foi proferido com argumentos vagos, sem amparo em dados fáticos que pudessem dar azo a procedimento tão drástico, com a invasão da intimidade do cidadão.

Não se pode aceitar também o argumento constante do parecer do Ministério Público Federal de que "não há outra linha de investigação possível". Fosse assim, as portas estariam abertas para o poder estatal devassar a intimidade de todos, sem peias. Deve-se partir do fato para se alcançar a autoria. Não se admite investigar a vida dos cidadãos para, a depender da sorte, encontrar algum crime.

Este Tribunal é extremamente rigoroso na preservação dos direitos e garantias fundamentais, senão vejamos:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. QUEBRA DOS SIGILOS BANCÁRIO E FISCAL. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO. ART. 93, IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O direito aos sigilos bancário e fiscal não configura direito absoluto, podendo ser elidido se presentes indícios ou provas que o justifiquem, desde que devidamente demonstrados na decisão do Magistrado. Decisão, in casu, sem fundamentação, em flagrante violação ao art. 93, inciso IX, da Constituição Federal. Ordem concedida. (HC 17911 / SP – Rel. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA – DJ 04.03.2002 p. 278)

Inclusive a Corte Especial já se pronuciou a respeito:

"A quebra dos sigilos bancário e fiscal é medida excepcional. Só há de ser concedida quando os fatos demonstrem a absoluta necessidade da sua realização e nos limites da competência do órgão investigador." (AgRg na Pet 1611 / RO – Rel. JOSÉ DELGADO – DJ 22.04.2003 p. 190)

Na mesma linha também segue o entendimento do Supremo Tribunal Federal:

"1. Se não fundamentado, nulo é o ato da Comissão Parlamentar de Inquérito que determina a quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico. 2. Meras ilações e conjecturas, destituídas de qualquer evidencia material, não têm o condão de justificar a ruptura das garantias constitucionais preconizadas no artigo 5º, X e XII, da Constituição Federal. Segurança concedida" (MS 24029 / DF – Rel. MAURÍCIO CORRÊA – DJ 22-03-2002 PP-00032 EMENT VOL-02062-02 PP-00298)


"QUEBRA DE SIGILOS BANCÁRIO, FISCAL E TELEFÔNICO DO IMPETRANTE COM BASE EM MATÉRIAS JORNALÍSTICAS. EXCEPCIONALIDADE DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DA VIDA PRIVADA DOS CIDADÃOS SE REVELA NA EXISTÊNCIA DE FATO CONCRETO. AUSÊNCIA DA CAUSA PROVÁVEL JUSTIFICADORA DAS QUEBRAS DE SIGILO. SEGURANÇA CONCEDIDA" (MS 24135 / DF – Rel.NELSON JOBIM – DJ 06-06-2003 PP-00032 EMENT VOL-02113-02 PP-00332 RTJ VOL-00191-03 PP-00919)

Nota-se, portanto, que a quebra violou o comando constitucional de motivação das decisões judiciais, conforme dispõe o art. 93, IX, da Constituição Federal. ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO ao tratar do direito à prova, ensina: "é no pronunciamento judicial relativo à admissão das provas que se encontra o núcleo do direito aqui examinado: é a efetiva permissão para o ingresso dos elementos pretendidos pelos interessados que caracteriza a observância do direito à prova; por isso, somente através de uma disciplina legal das hipóteses de rejeição das provas, acompanhada da exigência de decisões expressas e motivadas, e adotadas após o debate contraditório, pode estar satisfeita a garantia." (Direito à prova no processo penal, São Paulo, RT, 1997, p. 88).

A disciplina sobre as informações fiscais é clara: em princípio, o acesso é vedado; salvo, se concorrem os requisitos próprios de cautelaridade. Não foi declinado o fumus commissi delicti, pelo contrário, decretou-se a quebra a fim de buscá-lo. Não se delineou qual teria sido a suposta conduta de cada um dos pacientes, de forma a legitimar a medida extrema.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é torrencial no sentido de anular decisões desprovidas de fundamentação:

"A análise da estrutura formal do acórdão questionado evidencia que esse ato decisório revela-se desprovido da necessária fundamentação, que é reclamada e exigida, sob pena de nulidade, não só pela legislação processual penal (CPP, art. 381, III), como também pela própria Constituição da Republica (CF, art. 93, IX). – A exigência de motivação dos atos jurisdicionais constitui, hoje, postulado constitucional inafastável, que traduz poderoso fator de limitação ao exercício do próprio poder estatal, além de configurar instrumento essencial de respeito e proteção as liberdades publicas. Com a constitucionalização desse dever jurídico imposto aos magistrados – e que antes era de extração meramente legal – dispensou-se aos jurisdicionados uma tutela processual significativamente mais intensa, não obstante idênticos os efeitos decorrentes de seu descumprimento: a nulidade insuperável e insanável da própria decisão. – A importância jurídico-política do dever estatal de motivar as decisões judiciais constitui inquestionável garantia inerente a própria noção do Estado Democrático de Direito. Fator condicionante da própria validade dos atos decisórios, a exigência de fundamentação dos pronunciamentos jurisdicionais reflete uma expressiva prerrogativa individual contra abusos eventualmente cometidos pelos órgãos do Poder Judiciário." (HC 69013 / PI – Rel. CELSO DE MELLO – DJ 01-07-1992 PP-10556 EMENT VOL-01668-02 PP-00160 RTJ VOL-00140-03 PP-00870)

Resta evidenciado, pois, que a medida constritiva foi determinada sem a devida fundamentação, cristalizando-se constrangimento ilegal, a ser remediado por meio do habeas corpus. Se, ao longo das investigações, surgirem elementos a corporificar o fumus commissi delicti e indícios de autoria, aí sim, também a depender de acurada fundamentação, será possível efetivar-se a medida constritiva.

Pelo exposto, diante da violação do art. 93, IX, da Constituição Federal, concedo a ordem para anular a decisão de quebra do sigilo fiscal decretada contra os pacientes, devendo a autoridade coatora desentranhar, envelopar, lacrar e encaminhar de volta à autoridade fiscal as informações fiscais porventura já encaminhadas a Juízo.

É como voto.

VOTO-VENCIDO

O SENHOR MINISTRO PAULO GALLOTTI: Senhor Presidente, peço vênia à Ministra Relatora para denegar a ordem de habeas corpus.


A partir da constatação que se fez da necessidade da quebra do sigilo bancário da empresa em razão de investigação procedida para apuração de irregularidades com remessa de valores ao exterior, a pretensão do Ministério Público de serem investigados os seus administradores, ora pacientes, parece-me, um corolário absolutamente natural, resguardados evidentemente, no caso da quebra de sigilo, os dados na forma da lei.

Denego a ordem de habeas corpus.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO PAULO MEDINA: Eminentes Pares, encontrava-me em expectativa para ouvir o primeiro voto de S. Exa., a Sra. Ministra Maria Thereza e, coincidentemente, decidiu em um habeas corpus, e, nesse habeas corpus, S. Exa. foi mais além, trazendo-nos a lembrança de Carnelutti, trouxe-nos parcialmente, e vamos ampliar. O Direito Penal é o Direito da tríplice dolor: a dor do castigo, a dor da punição e a dor da apuração.

Aqui, S. Exa. se assentou na dor da apuração. Rompeu o procedimento desenvolvido: quebra de sigilo fiscal, quebra de sigilo bancário para estancar a prática da apuração. E disse também um fato que nos é muito importante, e ultimamente tenho pensado muito a respeito: o poder estatal não deve romper, não deve devassar a intimidade de todos nós. Fez isso afirmativamente, e o fez com bravura, e fez como o faz o advogado. Somos magistrados há tantas décadas, e sabíamos que vindo um advogado a integrar esta Turma, poderiam vir idéias novas, idéias mais fortes, idéias mais incisivas na defesa da liberdade na intimidade de cada um de nós.

Essa frase, para mim, é emblemática. Emblemática porque, quando observamos que autoridades, em quaisquer níveis, estão a estimular prisões, estão a incentivar apurações, estão a impulsionar a atuação das Polícias — federal e estaduais, em qualquer nível —, temos que nos preocupar um pouco e agir em nome da impunidade ou para combater a impunidade, mas devemos fazer isso em nome da garantia do cidadão, como disse o Sr. Ministro Nilson Naves, e em nome da Constituição.

O povo, intimidado pela falta de proteção, temeroso pela impunidade que aí está, pressiona os que estão no poder, ou os representantes dos que estão no poder para que realizem prisões a torto e a direito, sem provas, desnecessárias, ocasionando rupturas aos direitos individuais. Assim, V. Exa. vem e faz duas afirmações: a primeira, a de Carnelutti, quanto ao direito de apuração — não houve apuração; a segunda, se é defeso a devassa à intimidade do indivíduo.

Mas me preocupa, Sra. Ministra Maria Thereza, o comentário que farei neste instante, e a respeito do qual não há qualquer crítica, nem qualquer observação de confronto, ou qualquer arrefecimento do entusiasmo que tenho por aquele a quem me referirei agora: o Sr. Ministro da Justiça, que é um homem exemplar, advogado notável, criminalista que defendeu com bravura dezenas e centenas de causas, um homem que passa incólume pelo Governo, quando tantos não conseguem passar sem mancha ou sem notícia de nódoa. Por essas razões, a palavra do Sr. Ministro da Justiça é, para nós, fonte de convicção, de peso e de responsabilidade.

Li, hoje, matéria publicada na Revista Veja, em que S. Exa. Dizia que o Judiciário não vai bem, que há muito tempo a corrupção impera nesse Poder e que, atualmente, há muita corrupção. É muito sério quando um homem, com o peso que tem o Sr. Ministro da Justiça, faz tal afirmação, porque esse fato enfraquece o Poder Judiciário, enfraquece o juiz, enfraquece a independência de cada um de nós. É quanto a essa manifestação que estou a discordar.

Penso que nós, ministros desta Casa, nós, advogados, nós, ministros políticos temos que estar unidos para corresponder à responsabilidade que é exigida de cada um de nós. Não podemos permitir que ninguém possa duvidar de nós, nem mesmo que autoridades de nível mais alto possam argüir um possível comprometimento do Poder Judiciário ou de seus membros.

A manifestação de V. Exa., Sra. Ministra Maria Thereza, nesse momento importante, que é o da chegada de V. Exa. entre nós, torna-se emblemática. Emblemática porque defende a postura do advogado, do advogado que luta, que briga, que convence, que fulgura pela sua inteligência, e as tiaras que resplandecem esse fulgor do saber jurídico trazem também a ética quanto à apuração.


Apurar não é apurar de qualquer jeito, passando por cima, violentando a intimidade do cidadão; apurar é usar a técnica mais científica possível, a mais aprimorada possível, é utilizar os recursos os mais aquinhoados possíveis, para conferir uma apuração com tranqüilidade, uma apuração sem publicidade prévia, uma apuração capaz de ensejar a punição que se quer e que se exige de quem está a delinqüir.

Rendo minhas homenagens a V. Exa., Sra. Ministra Maria Thereza, e o faço sem opor críticas ao Sr. Ministro da Justiça, mas, sim, manifestando a preocupação, talvez equivocada, que tive ao ler, hoje, a entrevista veiculada na Revista Veja. Todos devemos estar unidos, engajados e coesos para apurar neste País o que se faz necessário apurar, para punir neste País quem necessariamente deva ser punido, mas não para permitir que alguém, integrante ou não do Poder Judiciário, possa toldar de insegurança, incerteza e dúvida o comportamento desse Poder.

Assim, renovo a V. Exa., Sra. Ministra Maria Thereza, minha profunda admiração.

Quanto ao fato concreto, observei o que disseram os Srs. Ministros Paulo Gallotti e Hamilton Carvalhido e a Sra. Ministra Maria Thereza. A Sra. Ministra Maria Thereza tem razão. Não se pode permitir a quebra do sigilo sem um dado mais palpável, sem um plus. No caso, não houve plus em relação a nada; não há o mínimo indício, a mínima prova. Nada há. Se nada há, como romper o sigilo? Se nada há a devassar a intimidade, o que buscar? O que buscar onde nada há a se encontrar? Essa foi a versão trazida. Nessas condições, entendo que se deva apurar, como muito bem disse o Sr. Ministro Hamilton Carvalhido. Que se desenvolva a pesquisa, a apuração de tantos outros atos que podem ser apurados e, depois de colhido o mínimo necessário, numa base concreta indispensável, que se rompa o sigilo.

Penso que se formos contrários a esse entendimento não estaremos sendo corretos, não estaremos caminhando, como devemos caminhar, em direção ao Estado Democrático de Direito.

Busquei homenagear a Sra. Ministra Maria Thereza e desculpo-me pela manifestação em relação ao Sr. Ministro da Justiça, manifestação esta que fiz, com absoluto respeito e com absoluta tranqüilidade, em defesa do Poder que integro há 40 anos.

Acompanho, portanto, o douto voto da Sra. Ministra Relatora, para conceder a ordem de habeas corpus.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

SEXTA TURMA

IMPETRANTE: LUÍS GUILHERME VIEIRA E OUTROS

ADVOGADO: MARCELO LEAL DE LIMA OLIVEIRA

IMPETRADO: SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2A REGIÃO

PACIENTE: A K

PACIENTE: O P N

PACIENTE: E D P

ASSUNTO: Sigilo Bancário / Fiscal / Telefônico – Quebra

SUSTENTAÇÃO ORAL

Dr. Luis Guilherme Vieira pelos pacientes.

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

"A Turma, por maioria, concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.Vencido o Sr. Ministro Paulo Gallotti que denegava a ordem." Os Srs. Ministros Nilson Naves, Hamilton Carvalhido e Paulo Medina votaram com a Sra. Ministra Relatora. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Paulo Medina.

Brasília, 22 de agosto de 2006

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