Assistência gratuita

Meio jurídico não sabe definir padrões de pobreza

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19 de novembro de 2007, 13h34

O tema da assistência jurídica defendido pelo governo passa pela estatização e monopólio de pobre, inclusive em relação às verbas destinadas à assistência dos mesmos e sem a participação dos carentes. É o mesmo que criar um órgão de defesa das mulheres comandado exclusivamente por homens ou um órgãos de defesa dos negros, porém comandado apenas por brancos. Isso viola a autonomia.

A rigor, o meio jurídico nem sabe definir o que seria pobre, inclusive não há um controle efetivo sobre a população atendida e os resultados obtidos. Nem mesmo existe um banco de dados para monitorar o serviço ou uma informação sobre dados básicos como renda mensal familiar per capita, natureza da demanda, resultados obtidos, grau de escolaridade e outros dados fundamentais. Em suma, é uma visão meramente patrimonialista e que acaba muito mais por gerar mercado de trabalho para a classe média do que atender aos pobres. Afinal, quem é o pobre? O meio jurídico responde com tradicional vocação para nada se definir: “é o que não pode pagar as custas”. Ora, mas qual a prioridade?

Esse discurso monopolista pode estimular debates como criar delegacias de polícia e varas exclusivas para “proteger” e julgar pobres, mas comandadas pelas elites. Ademais, o modelo proposto pelo governo caminha no sentido de que as pobres jamais aprenderão a ler, pois serão obrigados a terem alguém que leia seus direitos (ou deveres) para os mesmos.

Com a devida vênia é como dizer que os interesses do MST (Movimento dos Sem Terra) serão defendidos por um órgão autônomo controlado pelos membros da UDR (União Democrática Ruralista), pois têm mais estrutura para ser um órgão de Estado e não de governo.

Afinal, se a classe média controla um órgão público para atender aos pobres há nitidamente um conflito de classes. Seria o mesmo que um sindicato de pedreiros ser comandado pelos engenheiros.

No modelo do governo os pobres são tratados como crianças, sem autonomia, sem direito de escolha e até mesmo de crescerem. Recentemente a Defensoria do Distrito Federal vangloriou-se de uma ação em que sua cliente obteve judicialmente um valor de R$ 100 mil por danos em razão de uma cirurgia plástica estética mal sucedida. Ou seja, nem é mais o cliente, mas sim o órgão público que ajuíza ação. Ora, se alguém pode pagar cirurgia plástica será que não pode pagar um advogado particular ou as custas do processo? Será que nenhum advogado particular trabalharia esta ação para receber ao final?

Então qual a prioridade? Se não tem prioridade, é claro que haverá filas. Há outro caso noticiado na GloboNews de um dentista no RJ que foi atendido pela Defensoria em um financiamento de seu carro zero quilômetro e tinha renda superior a dez salários mensais. Também no Espírito do Santo um médico candidato a vereador foi atendido pela Defensoria em questões eleitorais. Além disso, duas revistas jurídicas já noticiaram casos de atendimento a pessoas não carentes.

Temos também casos de Ações Civis Públicas para atender pessoas que fazem concursos, mas sem comprovar a carência. O ex-deputado Hidelbrando Pascoal também foi atendido pela Defensoria, e há outros políticos. No Juizado Especial é comum que se atenda pessoas da classe média e até alta. Também se vê imagens televisivas de Defensores “inspecionando” cadeiras cativas em estádios em Minas Gerais e questões ambientais. Ora, e se o dano ambiental foi provocado pelo Movimento dos Sem Terra?

Em contrapartida também vem atendendo familiares de vítimas de acidente aéreos enquanto os pobres ficam na fila. Isso aumenta a tensão em razão de defensores poderem ser filiados a partidos políticos e também existir um verdadeiro exército de defensores visitando gabinetes na Câmara dos Deputados e que fazem falta no atendimento ao público.

Os casos multiplicam-se e não há controle algum e apesar do art. 5º da Constituição Federal exigir a comprovação da carência, a defensoria nega-se a juntar ficha sócio-econômica nos processos. Quando muito perguntam informalmente aos seus clientes, mas não há nenhum mecanismo que possibilite a checagem.

Por exemplo, em uma ação de alimentos ajuizada pela Defensoria certamente terá um pai pobre como devedor e será defendido por quem? Logo, o mesmo órgão que alega proteger os pobres poderá oprimir determinada parte. E essa é a regra mais comum, pois o comum é o pobre litigar com pobre e em relações de família.

Por qual motivo não se discute a municipalização do atendimento em questões familiares através de mediação e envolvendo outros segmentos como assistentes sociais, psicólogos, cidadãos comuns e agentes comunitários de justiça? Isso não interessa aos bacharéis em Direito, pois querem ter o controle das verbas e do serviço.

Esse modelo estatizado e centralizado acaba por pleitear aumentos de salários para si em vez de aumentar o salário mínimo dos pobres, ou seja, concentração de renda em vez de divisão. E o pobre não tem nem tem direito de voto na Defensoria, aliás nem mesmo os servidores votam para Defensor Geral, apenas os Defensores votam, ou seja, acaba focando no seu eleitorado.


Pelo IBGE quem tem renda mensal familiar acima de três salários mínimos já é classe média. E pelo Fórum Social para a América Latina quem tem renda per capita familiar acima de R$ 240 já não é mais pobre. No Brasil, quem tem renda superior a 10 salários mínimos mensais está no patamar de 7% da população e quem tem renda acima de 20 salários mínimos mensais está na pirâmide de 1% da população. Logo, este pessoal da pirâmide social deveria lutar para reduzir as desigualdades de renda e aumentar a distribuição de renda aos pobres e isso é praticamente ilusório no meio jurídico, principalmente judicial.

A assistência jurídica no Congresso busca um discurso de órgão político, e que não pode ser de governo, mas de Estado. Mas, para se ter um papel de Estado em setor específico da sociedade é preciso que esse grupo excluído fique no comando.

Assistência jurídica é para assessorar e não para controlar pobres, por isso importante que se discuta o modo de atuação. Na assistência jurídica quem decide é o pobre se for por mandato e representação processual, mas se o modelo for de substituição processual quem mandará será o Defensor e não pobre.

Citemos, por exemplo, o INSS e o Programa Bolsa Família que transferem renda para os pobres e acesso a direitos básicos sem necessidade de serem órgãos com poder de polícia.

De acordo com a proposta governamental é o mesmo que a Sudene (órgão para desenvolvimento do Nordeste) ser comandada exclusivamente por pessoas oriundas da região sudeste.

Curiosamente enquanto “chove” gratuidade para ações para danos morais nos fóruns, na prática não se consegue obter gratuidade, por exemplo, para se registrar o único imóvel de moradia. No cotidiano criam tantas dificuldades que o cidadão ou paga ou desiste. Nem se fala em como remunerar os peritos. E os peritos? E a área como serviço social e psicologia ficarão como apoio e as sobras.

O modelo estatizado de Defensoria tem outro problema pouco refletido que é o fato de se ter pobres nas duas polaridades da ação.

Ou seja, em breve teremos que criar a Defensoria do Autor e outra para atender ao Réu. Afinal, essa é a retórica no processo penal em que há um órgão para acusar e outro para defender. E mesmo assim há o problema de que se entenderem que a Defensoria é que pode ajuizar Ação Civil ex-delicto, então ela defenderá o réu no processo penal e se não obter êxito também ajuizará a Ação Civil ex delicto contra o seu cliente no processo penal?

Essa é uma das grandes questões de se permitir à defensoria atuar em nome próprio em vez de representação processual. Ou seja, a parte passa para uma posição de coadjuvante ou mera expectadora. E o assistente jurídico passa a mandar no seu cliente. Na evolução futurística poderemos defrontar com debate sobre a possibilidade de se ajuizar ação de divórcio em nome próprio da defensoria, mesmo sem a concordância das partes, como acontece no direito muçulmano.

Pode a defensoria ajuizar Ação Civil Pública em nome próprio? E a entidade carente fica onde? Pode ajuizar ação penal privada em nome próprio? E quem vai defender o réu? Atua em nome próprio em questões de vítimas de direitos humanos e quem defende o réu? Afinal, se tem vítima é porque tem autor. Os criminosos da favela e os invasores do Movimento Sem Terra como ficariam?

Essa questão de afastamento do cliente fica clara no Projeto de Lei da Defensoria que está preocupada em sentar no mesmo plano do Ministério Público, mas nada diz em relação ao cliente. Em vez de aproximarmos e inovarmos com uma nova visão, busca tornar-se tão autoritária como as Instituições Jurídicas já existentes.

Infelizmente, não há espaço para se discutir o modelo. Apenas se diz enfaticamente que a proposta do governo irá salvar os pobres. Ora, mas o que os pobres irão pedir judicialmente ninguém menciona.

Afinal, o problema não é de acesso ao judiciário, mas de saída e de leis que beneficiam apenas uma elite. E os bacharéis em Direito integram esta elite.

Se quiséssemos realmente que os pobres tivessem acesso aos direitos deveríamos criar varas com exclusiva atuação de pessoas oriundas do MST, do Movimento dos Sem Teto e outros setores excluídos. No mais é dominação. Para os pobres seria muito útil que se concedesse isenção de impostos para os produtos da cesta básica para quem tivesse uma renda mensal familiar inferior a três salários mínimos, por exemplo.

Paradoxal é que enquanto discutimos a privatização dos presídios queremos estatizar e monopolizar a assistência jurídica.

Sem dúvida é importante que o Estado tenha obrigação de prestar assistência jurídica, mas não pode ser uma atividade privativa do Estado sob pena de se tornar um órgão de opressão e seleção dominado pela classe média.


No entanto, destaca-se que em Santa Catarina gasta-se bem menos que o Rio de Janeiro com assistência jurídica, porém tem um IDH bem melhor e uma quantidade de condenações proporcionalmente bem menor que o Rio de Janeiro. Um modelo estatizado e centralizado corre o risco de agilizar as condenações, pois quem manda não é o cliente.

A descentralização trás vantagens enormes ao usuário, pois em conciliação com a iniciativa privada haveria possibilidade de atendimentos noturnos e aos finais de semana de forma permanente, além da notória ampliação da possibilidade de se escolher o advogado de confiança.

A Defensoria deve ser fortalecida, mas precisamos discutir o modelo e é essencial cinco pontos:

a) atuar apenas por representação processual e apenas na assistência jurídica

b) junte ficha sócio econômica de seus clientes

c) não pode ter monopólio

d) quando estiver em uma polaridade da ação, na outra será entidade diversa ou advogado privado.

e) prioridades de atendimento de conhecimento público

Diante desses impasses, após verificar grandes desvios de finalidade, passa-se às seguintes proposições:

1) Regulamentar a necessidade de a gratuidade judicial ser baseada em um requerimento contendo a renda familiar mensal, o grau de instrução, o número de pessoas na casa e assinado pelo cidadão, pois isso permitiria um raio-X do público alvo.

2) Fixar a obrigatoriedade de o Estado, União e Municípios investirem 1% das receitas correntes líquidas em assistência jurídica, podendo ser usada descentralizadamente desde que obedeça a finalidade.

3) Criar o Fundo de Assistência Jurídica e um Conselho para gerir esta verba e estabelecer prioridades, inclusive estimulando as melhores práticas aprovadas pelos próprios usuários.

4) Implantar um sistema integrado de Assistência Jurídica, incluindo

voluntariamente entidades como municípios, ONGs, faculdades de Direito, Convênios e Defensorias (estes se quiserem)

5) Implantar agentes comunitários de justiça, nível médio, remunerados nas próprias comunidades para mediarem os pequenos conflitos e fazerem levantamento de dados.

6) O governo também implantaria linhas de crédito para pagamento de honorários advocatícios e custas para as pessoas que o desejassem.

7) Os pobres participariam dos Conselhos com poder decisório e poderiam escolher o advogado de sua confiança, seja público ou privado, afinal esse é o princípio básico da ampla defesa.

8) Investir verbas nos meios extrajudiciais de conciliação e mediação.

9) Acabar com a regra de adiantamento das custas e fixar a

obrigatoriedade do Judiciário comunicar à Advocacia do Estado e à Receita as isenções concedidas.

10) Criação de Conselhos Municipais de Assistência Jurídica com participação dos usuários e dos prestadores do serviço, pois é um serviço essencial.

11) Implantação de uma Secretaria Nacional de Assistência Jurídica para tratar do tema de maneira mais flexível, inclusive os meios extrajudiciais de acesso ao direito.

12) Permitir que as despesas com honorários advocatícios sejam abatidas no Imposto de Renda, ainda que haja um limite.

Estas são breves exposições de um trabalho mais amplo em que inclusive analisa custos e prevê no futuro um risco grande de termos uma polícia autônoma e varas judiciais para “protegerem” os pobres, mas todas comandadas pelo pessoal do “asfalto”, o que acabaria sendo órgãos de repressão em vez de proteção. Assistência jurídica é muito importante, mas sem monopólio e com a efetiva participação do pobre (cliente).

Logo, precisa ser descentralizada e atuar apenas por representação processual com mandato que pode ser revogado em caso de divergência. Caso contrário, o efeito será o reverso, inclusive com o risco de o cliente pobre ser preso por desacato ao discutir mais energicamente com o seu advogado do Estado, o que raramente aconteceria com o privado.

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