Conflito de interesses

Juiz condena Rede TV! e dá bronca em programas sensacionalistas

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17 de novembro de 2007, 23h01

A liberdade de manifestação, conquistada a alto preço, não pode ser motivo para violação da intimidade e privacidade, princípios igualmente contemplados na Constituição Federal. O entendimento foi usado pelo juiz Carlos Dias Motta, da 17ª Vara Cível de São Paulo, para condenar a Rede TV! a pagar 200 salários mínimos (R$ 76 mil) de indenização para o modelo Carlos Alberto Cunha Gonçalves. Motivo: Carlos Alberto foi chamado de gay por entrevistados do programa SuperPop, apresentado por Luciana Gimenez.

De acordo com os autos, a Rede TV! exibiu em fevereiro de 2006, no programa SuperPop, reportagem para contar a história do Clube das Mulheres. Apresentador, diretor, dançarinos e outros convidados foram até o estúdio para dar entrevistas. Entre os assuntos tratados, foi abordado o homossexualismo entre os dançarinos. Carlos Alberto foi citado como um dos modelos que abandonaram o Clube das Mulheres por ser gay. Os convidados não chegaram a falar o nome do modelo – o trataram apenas pelo apelido — Carlucho. Mas fotos do modelo foram mostradas.

O modelo disse que foi atingido em sua intimidade e privacidade e entrou com a ação de indenização. A emissora, para se defender, afirmou que foi esclarecido, ainda no programa, que os dançarinos não eram homossexuais porque dançavam para mulheres e não para homens. Também argumentou que o nome completo do modelo não foi divulgado, nem foi dado destaque para seu apelido. Outro argumento foi de o de não houve ofensas, o que tiraria o direito dele receber indenização por danos morais.

O juiz, além de não acolher as alegações da Rede TV!, deu uma bronca nos apresentadores de programas sensacionalistas. “Programas de natureza notoriamente sensacionalista devem guardar o mínimo de respeito à dignidade da pessoa humana, pois a liberdade de manifestação, conquistada a alto preço, não pode ser motivo para violação imotivada e injustificada de princípios igualmente contemplados na Constituição Federal. Todo direito deve ser exercido com moderação, boa-fé e sem abuso, sob pena dele próprio com o tempo ser enfraquecido e sacrificado”, considerou.

Ele abordou, ainda, a diferença entre interesse público e interesse do público. Para o juiz, “não há confundir interesse público com mera curiosidade de determinadas pessoas a respeito de assuntos da vida alheia. Interesse público é aquele que contribui de alguma forma para a melhoria da vida das pessoas, para a evolução das relações sociais, para o fomento à cultura ou para o lazer, dentre outros critérios. Não atendia ao interesse público expor o autor àquela situação constrangedora e aos comentários maliciosos dos participantes do programa”.

“A ofensa não foi decorrente da simples referência do nome do autor no programa, mas do conteúdo dos comentários realizados. Está, portanto, caracterizada a existência de dano moral sofrido pelo autor, sendo, por ele, a ré civilmente responsável, por veicular o programa e dele auferir lucro”, concluiu.

A emissora já recorreu da sentença. Agora, o Tribunal de Justiça de São Paulo vai decidir se houve ou não violação à honra. Não há previsão para a data do julgamento da Apelação.

Processo 583.00.2006.149041-4

Leia a sentença:

Vistos. CARLOS ALBERTO CUNHA GONÇALVES ajuizou ação de indenização por danos morais, sob rito ordinário, em face de TV ÔMEGA LTDA., alegando que: é modelo profissional; por volta de 1990, começou a trabalhar no estabelecimento comercial denominado “Clube das Mulheres”, permanecendo até 1993; passou a desenvolver outras atividades; em 13.02.2006, a ré exibiu um programa apresentado por Luciana Gimenez, denominado “Superpop”, entrevistando integrantes do “Clube das Mulheres”; no curso da entrevista, o nome do autor foi citado diversas vezes, tendo sido exposto ao ridículo; disseram que é homossexual, tendo sido este o motivo de sua saída; teve a sua moral atingida; recebeu diversos telefonemas de amigos e conhecidos, surpresos com a entrevista; a ré agiu ilicitamente; sofreu danos morais; deve ser indenizado, no valor equivalente a 200 salários mínimos.

Citada, ofereceu a ré contestação (fls. 82/98), aduzindo que: o programa em questão tem matérias jornalísticas; participaram integrantes do “Clube das Mulheres” e alguns convidados, para mostrar a história do “Clube das Mulheres”; trata-se de programa ao vivo; foi esclarecido que os dançarinos não devem ser homossexuais, pois dançam para mulheres, e não para homens; um dos convidados, chamado Juninho, disse que já tinha se relacionado com um dançarino; esclareceram então que aquele dançarino saiu; ele foi identificado apenas como “Carlucho”; o nome completo do autor não foi divulgado; não foi dado destaque ao apelido do autor; os autores dos comentários não foram incluídos no pólo passivo do processo; não houve ofensas; o autor foi até mesmo elogiado; o autor continua atuando como modelo, inclusive em trabalhos de nu artístico; o autor não sofreu dano moral; o pedido é excessivo; o autor não pediu direito de resposta. Apresentou o autor réplica (fls. 118/128).


Em audiência preliminar (fls. 147/148), não foi obtida a conciliação. Foi prolatada decisão saneadora, com deferimento de produção de provas orais. Em audiência de instrução (fls. 184/185), as partes desistiram das provas orais e a ré desistiu do incidente em apenso. Em alegações finais, as partes reiteraram seus anteriores argumentos.

É o relatório.

DECIDO. Todas as questões dizem respeito ao mérito, que passa a ser examinado. O autor trabalhou durante diversos anos como modelo profissional. Atuou ainda como dançarino (“stripper”) no denominado “Clube das Mulheres”, no qual são exibidas apresentações de conteúdo erótico exclusivamente para o público feminino. Homens, normalmente jovens e musculosos, dançam e tiram a roupa, desempenhando papéis que, no imaginário feminino, supostamente poderiam conduzir as freqüentadoras a estados de exaltação e à realização de fantasias as mais variadas e até mesmo inconfessáveis. Conforme consta da petição inicial, o autor deixou o seu trabalho no “Clube das Mulheres” em 1993.

Recentemente, em 13 de fevereiro de 2006, a ré veiculou um programa denominado “Super Pop”, tendo como apresentadora a modelo Luciana Gimenez, no qual foi apresentada uma matéria sobre o “Clube das Mulheres”. Compareceram ao programa o criador do “Clube das Mulheres”, seu apresentador e diretor, alguns dançarinos e outros convidados. Dentre os assuntos tratados, foi abordado o tema referente a eventual homossexualismo entre os dançarinos. O nome do autor foi citado, razão da propositura desta ação. A gravação do programa foi trazida com a petição inicial (fls. 40), juntamente com transcrição dos principais diálogos alusivos ao autor (fls. 37/38). Pelo exame da prova, percebe-se claramente que as referências foram dirigidas ao autor, pois seu nome artístico foi utilizado (Carlucho).

Houve ainda referência expressa à sua aparição na capa da revista Playboy ao lado de uma determinada modelo (cópia da capa a fls. 35), bem como à sua participação na campanha publicitária de determinada marca de Jeans (fls. 36). Qualquer pessoa que conhecesse o autor, ainda que superficialmente, logo o identificaria pelas referências feitas no programa. E os comentários diretamente atribuíram ao autor a homossexualidade. O criador do “Clube das Mulheres” disse que este teria sido o motivo de o autor ter deixado de dançar no local. A apresentadora do programa chegou a perguntar a ele qual era o nome daquele dançarino, tendo o entrevistado repetido que era o autor (Carlucho).

Em primeiro lugar, não importa, para o exame desta causa, aprofundar detalhes acerca da opção sexual do autor. Tampouco importa fazer juízo de valor ou julgamento moral a respeito. São assuntos que dizem respeito à sua intimidade. Importa, contudo, verificar em que medida é permitida a divulgação de fatos da esfera íntima e privada de qualquer pessoa, bem como a forma desta divulgação. Até mesmo para pessoas renomadas, que levam deliberadamente a público assuntos particulares, ainda existe uma esfera de intimidade e privacidade a preservar, sob pena de ser violado o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal.

É preciso observar que não existem princípios absolutos. Diante de uma determinada situação, cabe ao intérprete e ao aplicador do direito identificar os princípios que estão em jogo, atribuindo peso a cada um deles a fim de verificar quais são prevalecentes e quais devem ceder. Mas este jogo concertado de princípios não deve ser motivo para o sacrifício excessivo e injustificado de qualquer deles. Mesmo o princípio não prevalecente deve ser preservado na maior medida possível. Assim é que, na espécie, conflitam, de um lado, os princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção à intimidade e da vida privada, e, de outro, os princípios da liberdade de imprensa e do direito a informação, todos de hierarquia constitucional.

Examinando a questão, leciona Edson Ferreira da Silva: “Mesmo nos casos de conflito com um interesse público qualquer, que de regra deve prevalecer sobre o interesse privado, às vezes o sacrifício da intimidade de alguém representa encargo excessivamente pesado e doloroso, para um benefício público pequeno ou inexpressivo, a exigir para cada situação juízo criterioso em termos de custo e de benefício” (Direito à intimidade, São Paulo: Editora Oliveira Mendes, 1988, p. 4). Prossegue o doutrinador: “Por isso entendemos que não deveria ser permitido noticiar nada de comprometedor a respeito de pessoas, sejam famosas ou não, que não fosse em prol de um interesse legítimo e superior do público à informação. Satisfeito esse pressuposto, a divulgação seria legítima; caso contrário constituiria atentado contra o direito à intimidade, sujeitando o infrator às sanções correspondentes, no âmbito civil e também criminal” (ob. cit., p. 56).


Não há confundir interesse público com mera curiosidade de determinadas pessoas a respeito de assuntos da vida alheia. Interesse público é aquele que contribui de alguma forma para a melhoria da vida das pessoas, para a evolução das relações sociais, para o fomento à cultura ou para o lazer, dentre outros critérios. Não atendia ao interesse público expor o autor àquela situação constrangedora e aos comentários maliciosos dos participantes do programa. Também nesta linha a manifestação de Edson Ferreira da Silva: “A utilidade pública da informação de modo algum se confunde com simples curiosidade do público em saber da vida privada dos seus ídolos, das mazelas de pessoas famosas ou de aspectos pitorescos da vida de alguém” (ob. cit., p. 68). Havia interesse da ré em veicular a matéria.

Os comentários em questão não foram realizados para atender ao legítimo interesse público, mas em razão da audiência e dos lucros dela resultantes. Mesmo programas de natureza notoriamente sensacionalista devem guardar o mínimo de respeito à dignidade da pessoa humana, pois a liberdade de manifestação, conquistada a alto preço, não pode ser motivo para violação imotivada e injustificada de princípios igualmente contemplados na Constituição Federal. Todo direito deve ser exercido com moderação, boa-fé e sem abuso, sob pena dele próprio com o tempo ser enfraquecido e sacrificado.

A circunstância de não ter sido a ação proposta em face da apresentadora e das pessoas que fizeram comentários acerca do autor não altera a responsabilidade da ré. Em razão do ilícito cometido (responsabilidade civil aquiliana), a responsabilidade civil dos ofensores é de natureza solidária. Cabia ao autor eleger a quem dirigir a ação, e o fez apenas contra a ré. Também o fato de o autor ter fotografias suas de nu artístico veiculadas na “internet” em nada altera o resultado deste processo.

São circunstância completamente diversas. Como já mencionado, a ofensa não foi decorrente da simples referência do nome do autor no programa, mas do conteúdo dos comentários realizados. Está, portanto, caracterizada a existência de dano moral sofrido pelo autor, sendo, por ele, a ré civilmente responsável, por veicular o programa e dele auferir lucro.

A indenização por dano moral deve ser fixada por arbitramento pelo juiz. Para este fim, devem ser consideradas as circunstâncias pessoais das partes, a intensidade da culpa, a gravidade do fato e as conseqüências do dano, dentre outros fatores. Deve também o juiz pautar-se pela eqüidade, agindo com equilíbrio, pois a indenização não tem o objetivo de enriquecer a vítima, mas não deve ser irrisória para o responsável pelo dano, para não perder suas funções punitiva, pedagógica e profilática.

A indenização tem natureza compensatória para a vítima, já que o dano moral não pode ser reparado. A indenização, ao mesmo tempo, deve desestimular o responsável à repetição do fato. Na espécie, é arbitrada em duzentos salários mínimos. Por fim, saliente-se que o autor não estava obrigado a exercer seu direito de resposta, o que por certo provocaria exposição ainda maior.

Ante o exposto, julgo PROCEDENTE o pedido, condenando a ré ao pagamento da quantia equivalente a 200 (duzentos) salários mínimos, com conversão nesta data e incidência de correção monetária a partir de então, além de juros de mora de 12% a.a. a partir da citação. Pagará ainda as despesas do processo e os honorários advocatícios que arbitro em 15% sobre o valor da condenação, tendo em vista os parâmetros do art. 20, § 3º, do Código de Processo Civil. P.R.I.

São Paulo, 3 de agosto de 2.007.

CARLOS DIAS MOTTA

Juiz de Direito

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