Tempo morto

Processos passam 95% do tempo nos cartórios judiciais

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16 de novembro de 2007, 23h00

Pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas para a Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça apontou que os cartórios são responsáveis por 80% dos atrasos nas ações judiciais. Os alvos da pesquisa foram quatro cartórios paulistas. Dois na capital e dois no interior.

O estudo, que durou oito meses, foi feito em 2006 e se baseou em entrevistas com funcionários e análises dos processos. Descontados os períodos em que os autos são levados ao juiz ou retirados para vista e manifestação, os processos ficam nos cartórios por um período equivalente a até 95% do tempo total de processamento. Fase considerada como “tempos mortos”, em que o processo aguarda rotinas a serem praticadas pelos funcionários. É para estes “tempos mortos” que se pretende diagnosticar e apontar soluções.

A pesquisa se restringiu a São Paulo porque, segundo o estudo, o estado paulista possui o maior número de processos estaduais na movimentação processual brasileira. O Ministério da Justiça constatou que, em 2003, os processos originários da Justiça paulista representaram 48,9% de toda a movimentação processual no país. Tal representatividade leva a pesquisa a afirmar que as falhas apontadas pelo estudo não são exclusivas dos cartórios paulistas e que todos os estados e municípios, em maior ou menor medida, comungam de características semelhantes.

A advogada Maria Regina Machado Melaré, vice-presidente da OAB-SP, reconhece a desorganização estrutural dos cartórios do Judiciário, mas pondera: “Não podemos dizer que todos os cartórios sejam ineficientes. Alguns funcionam, outros não. O que temos que entender é por que alguns cartórios funcionam melhor do que outros”. A pesquisa da FGV mostra que entre as causas do problema estão a falta de equipamentos, falta de informatização e treinamento, problema de relacionamentos pessoais dentro do ambiente de trabalho e a falta de gerência.

Os cartórios não contam com administradores profissionais nem com ferramentas técnicas para planejar, organizar, controlar, dirigir e coordenar os recursos humanos, financeiros, materiais e tecnológicos com base científica. Isso pode ser apontado como responsável, dentre outras disfunções, por filas, tempos de ciclos extensos e indesejados, controles em duplicidade, falta de informação ou informação sem credibilidade, estresse e falta de realização profissional dos recursos humanos, diz a pesquisa.

O desânimo no ambiente cartorário é total. Do escrevente auxiliar ao juiz. O ritmo lento do sistema judiciário tomou conta das expectativas profissionais. Porém, mesmo com a falta de incentivo financeiro e profissional, os serventuários se dizem heróis da Justiça. Carregam sobre os ombros, em média, 8.750 processos, por cartório (dentre os pesquisados). Uma média de 500 processos por escrevente. “O Tribunal só anda por causa do servidor”, garante Maria Irene Manghini Rizzo, da Associação dos Serventuários de Justiça dos Cartórios Oficializados do Estado de São Paulo (ASJCopes).

A pesquisa da FGV revelou, porém, que muitos cartórios não dispõem de computadores suficientes para os funcionários e, em outros casos, o serventuário não é treinado para trabalhar com o sistema, o que torna o equipamento uma peça meramente decorativa. A vice-presidente da OAB-SP lembra quando foi ao primeiro cartório informatizado da capital paulista. “Achei que teria um atendimento melhor, mas, para a minha surpresa, a fila se estendia até do lado de fora. Do que adianta colocar um computador se as pessoas não foram treinadas para trabalhar com ele?”

Em alguns cartórios, diz a pesquisa, os registros ainda são feitos nas velhas fichas de cartolina, em protocolos obsoletos, cadernos, tudo no mais rudimentar procedimento, em descompasso com a era da informatização. A falta de confiança no sistema, conseqüência da falta de treinamento, causa demora e eventuais erros nos registros dos procedimentos. Uma mesma rotina é registrada em ficha, em agenda e no computador. Ou seja, três funcionários fazem a mesma coisa três vezes. É a “cultura do balcão” e a “cultura do papel” vencendo a era digital.

A falta de planejamento e as rotinas complexas colaboram para o estado de torpor em que se encontram os cartórios e o que leva os processos a mofar em mesas, prateleiras e escaninhos. Sem contar nas inúmeras pastas e livros que as normais internas do tribunal exigem. Fora isso, alguns cartório possuem outras pastas próprias. Um dos cartórios analisados possuía, além de todas as exigidas, mais 28 pastas diferentes para arquivar os procedimentos. Se tudo fosse levado para dentro de um computador, localizar um processo levaria minutos e não dias ou meses.

“É um absurdo se levar cinco ou seis meses para juntar uma petição!” desabafa a vice-presidente da OAB-SP. Márcia Melaré lembra ainda uma situação inusitada. “O caos chegou a tanto que o diretor de um Fórum autorizou, temporariamente, uma equipe da OAB a fazer parte dos trabalhos dos serventuários. A OAB era contra, mas aceitamos fazer isso para ajudar os nossos colegas.”

A pesquisa revelou que alguns procedimentos levam até quatro vezes mais que o tempo esperado. Da distribuição até a remessa dos autos ao tribunal paulista, um processo de rito ordinário duraria 209 dias. A média, porém, é de 872 dias. Em algumas situações, a lentidão no andamento processual não é apenas conseqüência dos problemas estruturais, mas provocada deliberadamente, como a publicação das sentenças.

A publicação e a juntada representam 51,4% do tempo total em cartório. Uma publicação pode demorar até 61 dias após a sentença. Alguns funcionários admitiram que atrasam propositalmente o agendamento da publicação no Diário Oficial para controlar o fluxo de petições e, assim, equilibrar o fluxo de serviço do cartório.

Milhares de processos, falta de estrutura, servidores sobrecarregados e sem estímulo são ingredientes para uma receita de fracasso. O cartório, embora invisível para muitas pessoas, é — como se viu — uma peça fundamental para o andamento da Justiça. Tão fundamental que não são raras as vezes que escreventes, diretores e até estagiários redigem decisões (inclusive liminares e sentenças) que serão apenas assinadas posteriormente pelo juiz. É a chamada “preparação de decisões” ou “despacho em preto”. Em um dos cartórios analisados, o juiz permaneceu por uma hora por dia na mesa do diretor conferindo e assinando cerca de 80 minutas — o que leva a crer que a conferência não é rigorosa, afirma a pesquisa. O juiz, aliás, é uma peça considerada de pouca importância para os serventuários entrevistados.

Diante de tantos problemas, o relatório mostra também que em um ambiente onde o diretor e o juiz são próximos dos funcionários e onde há melhor gerência e cooperação mútua, o “tempo morto” do processo no cartório pode diminuir. A informatização e o treinamento de pessoal seriam muito bem-vindos, também.

O advogado Kozo Denda acredita que em três anos teremos um cenário bem diferente em termos de agilidade processual, o que é positivo para muitos que deixam de recorrer aos seus direitos por causa da morosidade.

“Com mais agilidade, a impunidade, que hoje tem como uma das causas a morosidade da justiça, tende a diminuir e, com isso, as pessoas vão pensar bem antes de agir de má-fé.” Nesta questão, Denda abre um parênteses. “O governo, por outro lado, não tem interesse em agilizar a justiça já que ele é um dos maiores clientes dos tribunais. Agilizar a justiça quebraria o Estado.”

A assessoria de imprensa do TJ paulista foi procurada na quarta-feira (14/11) para comentar a pesquisa, mas informou que, por ser véspera de feriado, não seria possível ao tribunal se manifestar.

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