Tropa de Elite

Sociedade não deve proteger valores recorrendo a anti-valores

Autor

  • José Luís Oliveira Lima

    é advogado criminalista ex-presidente da CAASP e da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP e membro do Instituto dos Advogados e do Conselho Fiscal do Innocence Project Brasil.

16 de novembro de 2007, 15h16

[Artigo publicado originalmente no portal do jornal O Globo, de quarta-feira, 14 de novembro]

O país viveu, no último mês, duas polêmicas em especial: o roubo do Rolex do apresentador e empresário Luciano Huck e o lançamento do filme Tropa de Elite. No artigo publicado por Huck, em determinado momento, como sugestão para combater a violência nas grandes cidades, o apresentador propõe chamar o “capitão Nascimento” — um dos personagens centrais do filme de José Padilha.

Não vai bem uma sociedade que busca proteger seus valores recorrendo a anti-valores. Isso funciona como combater uma enfermidade com outra. Exagerada a dose, mata-se o paciente para curar uma gripe.

É de se questionar: vale aplaudir calorosamente o comportamento de uma tropa manifestamente criminosa, que de elite não tem nada? O filme, na verdade, é uma apologia à violência, à tortura, à falta de investigação policial. O “capitão Nascimento” e seus colegas de profissão deveriam estar presos e não sendo elogiados por sua conduta.

Pobre do país que tem uma polícia como a do filme e que acha que com “capitães Nascimentos” os índices de violência e criminalidade vão diminuir. O “capitão Nascimento”, na verdade, é um criminoso fardado, o que é bem pior que o criminoso comum — que não representa o Poder Público. Antes o bandido original, que pratica seus crimes sem uniforme do Estado para disfarçar sua conduta criminosa.

O cineasta José Padilha afirma que o filme não prega a violência, mas o que se vê na tela é outra coisa: um pseudo-herói buscando informações por meio da tortura. Um crime para tentar punir outro crime. Numa sociedade tão carente de referências positivas, o grande público parece se satisfazer com o que aparece.

O capitão que se apresenta como exemplo do grupo, com uma imagem de incorruptível, mostra determinação nas suas atitudes, perspicácia e pensamentos éticos, mas nada que possa ofuscar sua fria e realista motivação criminosa de matar e barbarizar seus inimigos. Será que os mocinhos dos nossos dias são lobos com pele de cordeiro? Talvez, em razão dessa falta de referências, onde se paga o mal com o mal, nossa sociedade consiga olhar generosamente para um capitão de atitudes tão antagônicas. No filme, o “homem bom” que é capaz de dar um óculos para um menino da favela que mal enxerga é o mesmo que, por mera vingança, mata um bandido desarmado.

Com o sucesso do filme, proliferam comentários do tipo: “bem, mas qual o problema de fazer o bandido sofrer? Polícia boa é essa que bate nos marginais”. Será que realmente precisamos de um “capitão Nascimento” patrulhando nossas ruas, como sugere o apresentador global? Será que estamos regredindo tanto que agora até admitimos a tortura e a ilicitude como instrumentos para estabelecer a “ordem”?

Veja a situação de um sujeito que nasceu e cresceu em um ambiente de absoluta miséria, desprovido de qualquer atenção do Estado, sem Educação e Saúde de qualidade, sem direito de progredir. O que oferecemos a esse sujeito já massacrado pela vida? O porrete? O fim do último de seus direitos básicos: o de se defender?

É claro que bandido deve ser punido. Mas para isso há o rigor da lei. Ao invés de aplaudir atitudes como a do “capitão Nascimento”, deveríamos repudiar ações desse tipo. O espetáculo muitas vezes disfarça crimes piores. A punição pura e simples sem que esteja assegurado o direito de defesa não torna nossa sociedade menos corrupta. No máximo nos transforma em bárbaros, que retornam ao velho estágio do “olho por olho, dente por dente”.

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    é advogado criminalista, membro do Instituto dos Advogados, ex-presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB-SP, ex-presidente da Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo – Caasp.

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